Keiko (10 anos) – Japão

Keiko vivia feliz na sua pequena vila até aquela manhã de Verão.

Tal como todos os dias, tinha-se levantado, cumprimentado os pais e tomado banho. Estava a caminho do rio para ir buscar água para o almoço quando sentiu uma dor nos pulsos e, quando olhou, viu sangue a escorrer das feridas em forma de cruz.

Inocentemente, contara à mãe depois de chegar a casa. Esta, pensando que era algum tipo de mau presságio, pedira-lhe para não contar a ninguém e esconder as feridas com ligaduras. Se alguém lhe perguntasse, ela devia dizer que se tinha aleijada no trabalho de campo.

- Percebes-te, Keiko? – perguntou a mãe, enquanto enrolava pedaços de pano à volta dos seus pulsos com força – E tenta usar roupas com mangas compridas. Se eles descobrirem, vão tentar sacrificar-te.

Assutada, a menina tinha feito exactamente o que a mãe lhe dissera mas as feridas não pareciam querer cicatrizar. Um ano depois, no mesmo dia, duas cruzes apareceram-lhe nos pés e, mais uma vez, ela dissera à mãe.

Esta disse-lhe para repetir o que tinha feito com as feridas nos pulsos mas as coisas complicaram-se quando, um ano a seguir, apareceu-lhe as feridas na testa, enquanto trabalhava no campo com as outras mulheres da aldeia.

- Oh, meu Deus, Keiko! – exclamara uma das mulheres, ao ver a cena – O que é que se passa?

Depois de passar a mão pela testa e ver o sangue nos dedos, Keiko olhou para a mãe que começava a entrar em pânico

- Ontem tropecei e bati com a cabeça numa pedra. – mentiu Keiko – Pensei que já tinha parado de sangrar, mas parece que estava enganada.

- Tens de ter mais cuidado. – avisou outra mulher, rindo-se – Se te aleijares a sério, não vais conseguir ajudar a tua mãe.

Keiko riu-se e amarrou ligaduras à volta da cabeça e continuara a mentir .

No entanto, quatro anos depois…

- Porque é que as tuas feridas não param de sangrar? – perguntou a mãe com as lágrimas nos olhos, enquanto trocava as ligaduras da filha de dezasseis anos – O padre chamou-te para te apresentar ao teu noivo. O que é que vai acontecer se ele descobrir!?

- Não se preocupe mãe. – pediu Keiko – Tenho a certeza que ele não vai descobrir.

Mas descobriu quando viu as ligaduras.

- As pessoas têm-me dito que já andas com as ligaduras há algum tempo. – mencionou o padre – Será que posso ver as feridas?

- Eu sou só muito trapalhona. – justificou Keiko, começando a ficar nervosa.

- E eu tenho a certeza de que não é nada de sério. – disse o padre – Mas, mesmo assim, gostaria de ver. Pode ser que te possa ajudar com alguma coisa.

Keiko hesitou. Sabia que não adiantava negar-se. Por isso tirou as ligaduras da cabeça (já que essas eram as únicas visíveis) e levantou o cabelo para mostrar as marcas que tinha desde os doze anos.

- O que é isso!? – perguntou o padre, horrorizado.

- A…a minha mãe castiga-me desta maneira. – mentiu Keiko, esperando que a mãe a ajudasse se eles lhe fossem perguntar.

Mas o padre viu claramente que ela estava a mentir e pediu aos seus ajudantes que a agarrassem.

- Esperem! – implorou Keiko, enquanto os homens procuravam por mais ligaduras. Não demorou muito até começar a chorar quando eles encontraram as feridas nos seus pulsos e pés – Eu posso explicar! Por favor!

- Há quanto tempo é que tens essa ferida!? – perguntou o padre.

- Por favor! – repetiu Keiko, enquanto soluçava.

- É uma maldição! – gritou um dos homens que a segurava – É por isso que as colheitas não têm sido boas.

- É por isso que o rio está seco! – adicionou outro.

- Temos de sacrificá-la. – disse o rapaz que seria o seu noivo.

- Tens razão. – concordou o padre.

Nessa noite, Keiko tinha sido “purificada” e enterrada viva, sob os olhares dos seus pais, do seu noivo e de toda a aldeia.

Depois disso, a sua alma tinha ficado presa àquele mundo e depois a Madalena, quando descobrira que ela também herdara aquelas feridas e, mesmo assim, mesmo depois de ter dito aos pais e a outras pessoas, ninguém a via como a carregadora de uma maldição. Pelo contrário. Tomavam-na como alguém sagrado e protegiam-na contra os perigos no mundo.

Mas ela parecia sofrer, mesmo com toda aquela protecção. Presa por memórias que não eram delas, à espera daquele que aparecia no único sonho que lhe pertencia. Daquele homem que chorava.

Mesmo que tivesse pena dela, quando Madalena chegara aos dezassete anos, Keiko começara a criar pesadelos na mente dela. Mas ela era poderosa e não demorara muito tempo a descobrir como selar Keiko.

Rosette tinha aparecido, anos depois de Madalena e, sendo coincidência ou não, conhecera o mesmo homem com quem Madalena sonhara e, tal como a sua antecedente, tinha-se apaixonado por ele.

A única diferença entre elas era que aquele homem tinha-se apaixonado por Rosette. O que não tinha acontecido com Madalena.

Estavam apaixonados e Rosette também era protegida, mesmo antes de ter as ferida. Divertira-se mas estava a perder vida, a sofrer por causa do irmão e por rejeitar o que sentia pelo demónio… Mesmo que dissesse alguma coisa, sabia que não iria viver durante muito mais tempo. Não adiantava de nada.

Era o que ela pensava e Keiko conseguia ver toda a mágoa dentro dela. Aos dezassete, tinha dado a sua vida para matar o demónio que ameaçava destruir o mundo que conheciam.

Apesar de querer vê-los, recusara-se a visitar o irmão, e as amigas. E morrera nos braços daquele que amara desde criança.

Mas depois voltara. Não era justo.

Não era justo!

Actualmente

Com as sobrancelhas franzidas e os braços esticados, Rosette continuava a apontar a arma para Aion.

- Eu não quero problemas. – disse Aion, continuando a sorrir – Só vim buscar o Chrno. Eu preciso dele e tenho a certeza de que ele também quer vir comigo.

- Não vou deixá-lo ir! – exclamou Rosette.

- Se não queres separar-te dele, podes vir comigo. – sugeriu Aion.

- Nem pensar! – disseram Keiko e Rosette ao mesmo tempo.

- Assim sendo, limito-me a levar o Chrno. – disse Aion, encolhendo os ombros.

No entanto, quando deu um passo em frente, viu as armas a serem apontadas para si.

- Ele vai voltar para mim, Rosette. – avisou Aion, como se fosse uma coisa inevitável – Não adianta o quanto o prendas, ele pertence ao meu lado.

E desapareceu com Keiko.

Como medo de que tivesse ido ao quarto de Chrno, Rosette apressou-se a voltar mas ele continuava lá, cercado pelos dois médicos.

- O que é que se passou? – perguntou o médico mais velho.

- Nada de importante. – respondeu Rosette, voltando a sentar-se ao lado de Chrno – E como é que ele está?

- Na mesma. – respondeu o médico – Não sei se será um desperdício de tempo estarmos aqui à espera. Talvez devesses levá-lo para as catacumbas do Convento. Eu podia ir lá vê-lo todas as semanas se quiseres.

- Ele não é uma ameaça. – garantiu Rosette, que sabia exactamente do que é que o médico tinha medo – Está preso, não está?

- O padre disse-me que ele é um demónio de nível 9. – revelou o médico – Se ele libertar o seu poder, nem as correntes nos vão valer.

- Ele… - Rosette esfregou a testa com o polegar e o indicador – Eu conheço-o, está bem? Ele não vai fazer mal a ninguém.

Os médicos resignaram-se porque também era a vontade do padre que ele ficasse ali. No entanto, se ele não recuperasse a memória, seria uma ameaça para toda a gente naquele hospital.

Só os olhos crentes de Rosette impediam-no de tranca-lo naquele quarto e anunciar a sua presença ao director do hospital.

Depois de os médicos lhe darem autorização para sair do quarto, Azmaria levantou-se cuidadosamente e perguntou onde é que Rosette estava. Amigavelmente, a enfermeira indicou-lhe o caminho e até levou-a à porta do quarto mas disse-lhe que ela não estava autorizada a entrar, por isso Azmaria teria de entrar sozinha.

A medo, Azmaria bateu à porta e entrou.

Quando viu Chrno, demorou alguns segundos a reconhecê-lo, com os cornos e aquela roupa. Mas tinha a certeza de que era ele, depois de olhar durante alguns segundos.

- Azmaria, não devias estar de pé. – disse Rosette, levantando-se quando se apercebeu da presença dela – Podes ficar doente outra vez.

- Eu estou bem. – garantiu Azmaria – Vim porque queria dar-te isto.

Azmaria tirou o relógio do pescoço e entregou-o a Rosette.

- Isto…eu já não preciso disto. – disse Rosette, com um aperto no peito. Mas, mesmo assim, colocou-o. Olhou para Chrno e franziu as sobrancelhas – Eu não estou morta, Chrno. Essas memórias são falsas.

1920 (Depois do pôr-do-sol)

Chrno lembrava-se da primeira vez que ela tinha morrido. Exactamente quando o sol se tinha posto, como se a luz do mundo tivesse morrido ao mesmo tempo que ela.

Quando sentiu a mão que ele segurava a perder a força, começou a chorar. Sabia que ela tinha morrido. Continuou dessa maneira, agarrado a ela, até o seu coração começar a abrandar.

Com cuidado, endireitou-a e viu o sorriso ligeiro que ela tinha na cara, apesar de o seu rosto estar molhado. Suavemente, limpou as lágrimas da cara dela e depois as suas.

Porque é que ela estaria a sorrir? Será que ele conseguiria sorrir daquela maneira?

Sabia que não iria para o mesmo sítio que ela tinha ido. Nunca mais a iria ver e não lhe tinha dito aquilo que queria dizer. Não havia nada que o fizesse sorrir naquele momento.

Quando viu os primeiros raios do sol que anunciavam o novo dia, apercebeu-se de que tinha estado a chorar a noite toda e achou que era injusto que Rosette não pudesse ver aquilo.

Apercebendo-se de que estava prestes a morrer quando sentiu uma pontada no peito, entrelaçou os dedos nos dela e encostou a cabeça de Rosette à sua.

Fechou os olhos e, segundos antes de morrer, percebeu porque é que Rosette sorrira.

Ahh~ pensou Chrno, sorrindo ao lembrar-se daquela noite no festival “Será que ela também viu isto?”

Actualmente

Azmaria e as outras tinham-nos encontrado no dia seguinte, depois de um agricultor que os tinha visto na semana anterior ter informado a Ordem.

No entanto, elas não estavam preparadas para os ver mortos, por que o agricultor garantira que eles estavam vivos.

Mas as memórias que tinha daquele dia não eram iguais às memórias que tinha da suposta segunda morte de Rosette. Quando pensava bem, algumas coisas não fazem sentido.

“Isso é porque não são reais” disse uma voz na sua cabeça “Foste tu que morreste e não ela.”

“Fui eu que morri?”

Chrno lembrava-se das catacumbas, da água benta, de ouvir o Padre a falar com o selador…e depois a faca.

Sim, tinha sido ele a morrer.

Chrno abriu os olhos e viu Rosette a dormir na cama que se encontra ao lado da cadeira aonde ele estava preso.

O colar que ela tinha ao pescoço estava apagado mas ela estava claramente a respirar.

Chrno sorriu e tentou levantar-se, mas as correntes impediram-no e acordaram os dois médicos que se encontravam a dormir num sofá de dois lugares, mais afastado da cama e da cadeira.

- O que é que se passa? – perguntou Chrno, apercebendo-se de que estava na sua forma adulta e de que tinha os cornos.

- Devo chamar o Padre Remington? – perguntou o médico mais novo, levantando-se ao mesmo tempo que o seu mentor.

- Não, espera. – respondeu o médico mais velho, aproximando-se cuidadosamente de Chrno – Sabe onde é que está? Lembra-se do que lhe aconteceu?

- Eu fui morto. – respondeu Chrno, já que não se lembrava de mais nada depois disso.

Viu o médico mais velho a olhar para o mais novo e depois a olhar para ele outra vez.

- Aquela Rosette. – começou o médico, apontando para ela – É real?

- Sim, claro. – respondeu Chrno, franzindo as sobrancelhas – Porque é que eu estou preso?

O médico mais velho olhou de novo para o mais novo e aproximaram-se para falarem sem que ele ouvisse.

Entretanto, Chrno virou a atenção para Rosette.

Ainda não sabia no que é que ela estava a pensar antes de morrer.