Chrono Crusade - After Heaven

Capítulo 15 - Humanos Desprezíveis


Rosette olhou para o relógio apagado e só desviou os olhos quando ouviu pessoas a falarem.

Quando viu o Padre Rammington a percorrer o pátio apressadamente com Chrno ao colo, ela deu um passo em frente, pronta para chamar por ele. Mas parou imediatamente quando viu o sangue que escorria para o chão a cada passo que o Padre dava e Bobby a correr atrás deles.

Subitamente, o mundo dela parou quando se apercebeu porque é que o relógio estava escuro.

Com as pernas a tremer, correu em direção a Rammington que, ao vê-la, ordenou imediatamente que se afastasse. Consequentemente, Bobby agarrou Rosette.

- O que é que se passa!? – gritou Rosette, deitando Bobby ao chão – O Chrno…

- Vai chamar a Irmã Charlotte! – exclamou Rammington antes que Rosette se aproximasse mais. Não seria bom se ela visse Chrno naquele momento – Pede-lhe para ir ter ao teu quarto o mais depressa possível.

Rosette hesitou, mas fez o que ele lhe disse.

Enquanto isso, Rammington apressou-se para o quarto onde deitou Chrno na cama, manchando os cobertores brancos de vermelho. Retirou o casaco com o qual o tinha cobrido mas teve que desviar os olhos ao ver a pele queimada.

Já se teria desfeito em pó negro se fosse um demónio de nível menor.

Um par de minutos depois, Rosette entrou no quarto, acompanhada pela Irmã Charlotte e Bobby. Rammington abanou a cabeça, pensando que o selador devia ser um idiota para estar no mesmo quarto de Rosette, depois de ter feito aquilo a Chrno.

- O contrato foi desfeito. – foi a primeira coisa que Rosette disse quando entrou no quarto – O que é que se passa? – no entanto, quando o viu, ninguém precisou de responder-lhe. Lentamente, ajoelhou-se ao lado da cama e tocou-lhe na face queimada – Chrno?

Rammington suspirou e olhou para Bobby.

- Acho melhor saíres. – aconselhou Rammington – Depois de a Rosette se recompor e começar a fazer perguntas, não vais querer estar aqui.

Bobby obedeceu e, mal saiu, Rammington olhou para Charlotte.

- O que é que aconteceu aqui? – perguntou Charlotte, dando uma olhadela a Chrno.

- Foi torturado. – respondeu o Padre, olhando para Rosette que continuava com a mão na face dele, sempre a murmurar “Chrno, Chrno…”. Estava claramente em estado de choque.

- Por muito que olhe, parece que lhe espetaram uma faca na garganta. – disse Charlotte – Ele não foi torturado. Foi morto.

- Ele está bem! – exclamou Rosette subitamente, assustado o Padre e a Irmã. Com os olhos dilatados e as mãos a tremer, ela levantou-se e agarrou-se a Rammington – Ele só precisa de descansar! Ele consegue recuperar sozinho.

- Rosette…o contrato foi desfeito e ele não tem cornos. – lembrou Rammington – Não há maneira de ele se conseguir recuperar.

- Então, se eu encontrar os cornos…

- Ele está claramente morto, Irmã Rosette. – disse Charlotte, sem piedade – Não há mais nada a fazer a não ser enterra-lo, amanhã.

- Está tudo bem. – Rammington abraçou Rosette, apesar de ela não estar a chorar – Nós vamos enterra-lo à beira do lago.

Rosette ficou com Chrno durante a tarde inteira, só para garantir que ele não se sentiria abandonado quando acordasse.

Eventualmente, obrigaram-na a sair.

- Já vou. – respondeu Rosette, para Rammington, que a tinha ido chamar.

Lentamente, tirou o relógio e colocou-o à volta do pescoço dele. Com cuidado, cobriu-o e seguiu Rammington, vendo-o trancar a porta do seu quarto.

Depois de convencer Rammington que estava ótima e conseguia ir para casa sozinha, Rosette saiu mas só conseguiu chegar a casa depois de se perder duas vezes. O sol já se tinha posto.

- O jantar já está pronto, menina. – informou Fiore, mal Rosette entrou em casa – Os seus pais e o seu irmão estão à sua espera. Devemos esperar pelo seu amigo?

- Obrigada, Fiore. Mas o Chrno não vem. – murmurou Rosette, arrastando-se até à sala de jantar. Sentou-se e olhou para os “pais” – Desculpem o atraso.

E, sem dizer mais nada, começou a comer.

- Onde é que está o teu amigo? – perguntou o pai, fazendo com que Rosette largasse o garfo – Não devíamos esperar que ele chegasse?

- Ah, ele não vem. – Rosette olhou para o homem e sorriu – Amanhã é o funeral dele.

Rosette voltou a pegar no garfo e ouviu os restantes membros da família a largarem os deles.

- Por Deus, Claire! – exclamou a mãe – O que é que aconteceu hoje!?

- Estás bem? – perguntou Joshua, esfregando as costas da irmã.

- Estou ótima. – respondeu Rosette, olhando para o irmão – Porque é que perguntas?

- Porque estás a chorar. – disse Joshua, olhando para ela com pena.

- O quê? – Surpreendida, Rosette levou uma mão à cara e sentiu-a húmida. Nem se tinha apercebido – Wow! O que é isto? – ela levantou-se – Peço desculpa, eu vou para a cama mais cedo.

- Claire…

A lua vermelha brilhava no céu, trazendo mau presságio.

No entanto, as únicas pessoas que sabiam o que significava, ou estavam a dormir ou estavam mortas.

Um corvo negro pousou no beiral do quarto de Rosette, onde o corpo de Chrno permanecia imóvel. Ao lado da cama, o sorriso de Aion brilhava tanto quanto os cornos que trazia nas mãos.

- Querem voltar ao vosso dono, huh?

Primeiro foi o coração que reiniciou.

Depois as memórias, apressaram-se a preenche-lo, da mais antiga à mais recente.

A mão de Aion, os cornos partidos, as lágrimas de Madalena, a promessa com Rosette…a primeira vez que amara alguém daquela maneira. E tudo acabara com o pôr-do-sol.

Quando abriu os olhos, iluminado pelo sol da madrugada, Chrno lembrou-se exatamente do que tinha acontecido e do que Aion lhe tinha implantado na cabeça, juntamente com aqueles cornos. Levantou-se, apalpando com cuidado os cornos que tinha na cabeça. Ao ouvir o relógio tilintar, olhou para baixo e confirmou que ele estava apagado.

Com passos largos, dirigiu-se para a porta, deitou-a abaixo como se fosse um pedaço de papel e continuou a andar, causando o pânico às Irmãs que o viam a passar.

Quando saiu para o pátio, não demorou muito a avistar Bobby, e não demorou mais de dois segundos a chegar à beira dele e a levantá-lo no ar com um braço.

O choque de Bobby ao ver Chrno em pé só conseguia ser comparado ao medo que sentiu ao ver a raiva nos olhos do demónio e os cornos na sua cabeça.

- Tu mataste a Rosette. – murmurou Chrno, numa voz soturna, apertando a garganta de Bobby, ligeiramente – Só porque ela tinha um contrato com um demónio…

- O quê!? – exclamou Bobby, tentando diminuir o aperto que Chrno exercia sem misericórdia na sua garganta – Eu matei-te a ti!

Sem paciência para as mentiras dele, atirou-o e Bobby foi parar ao outro lado do pátio. Lentamente, caminhou em direção ao portão e arrombou-o sem sequer tocar nele, ativando o alarme.

- Eu vou voltar.

Rammington assistia às câmaras de segurança ao lado de Charlotte, com uma mão na testa. A Irmã ao seu lado não demonstrava preocupação, mas estava branca como as paredes daquela sala. A certo ponto, até teve de se sentar.

- Padre Rammington. – disse Charlotte, obtendo a atenção do Padre – Diga-me que não temos um demónio de nível cinco à solta.

- Não, Irmã Charlotte. – negou Rammington – Nós temos um demónio de nível nove à solta. Descontrolado.

- O quê!? – Charlotte levantou-se mas teve que se sentar outra vez, quando sentiu uma tontura – Utilizaram a escala de dez para classificar aquele demónio.

- Não só o fizeram, como também o classificaram como o único demónio de nível nove atualmente conhecido. – acrescentou Rammington – Mas…os cornos…não percebo. Estavam perdidos. E ele parece confuso. O Bobby disse que ele pensava que a Rosette estava morta.

- Como é que pôde deixar um demónio de nível dez continuar no Convento!? – exclamou Charlotte.

Rammington ignorou a Irmã e continuou a pensar. Se ele tinha os cornos de volta e memórias “novas”, aquilo devia ser obra do Aion. Provavelmente tinha ido confirmar se Rosette estava morta. E, se estava descontrolado, a próxima visita não seria nada amigável.

O que lhe interessava era Rosette e Joshua, no final de contas. Se ele continuasse a pensar que Rosette estava morta, não queria pensar no que ele poderia fazer.

Saiu, pronto para ir atrás dele, mas parou quando sentiu aquela presença atrás de si.

- Aion. – disse Rammington.

- Anjo. – devolveu Aion.

- O que é que fizeste com o Chrno? – perguntou o Padre, virando-se para encarar o demónio de frente – Que tipo de memórias é que puseste na cabeça dele?

- Vocês e os vossos níveis para nos classificarem sempre me fizeram rir. – disse Aion, ignorando as perguntas de Rammington – Quando transformar um demónio de nível nove num demónio de nível dez, terão que reconsiderar.

- Isso é impossível! – exclamou o Padre.

- Madalena está morta, Rosette está morta…pelo menos na cabeça dele. – lembrou Aion – Sem as duas humanas, o céu é o limite. Não, nem o céu será um limite, desta vez. Quem precisa de santas quando tenho um anjo caído revoltado contra a humanidade?

- O Chrno não é um objeto que possas usar! – gritou Rammington – Se ele se descontrolar…

- Será um espetáculo divertido de ver. – concluiu Aion – Podem preparar as pipocas.

E Aion desapareceu, antes de Rammington ter tempo de o parar.

Chrno estava de momento em frente à casa atual de Rosette e Joshua.

Em silêncio, encostou-se à parede, ao lado da janela, para não ser notado. Lá dentro, Joshua e Fiore encontravam-se a falar, vestidos de negro.

- Está pronto para o funeral, jovem mestre? – ouviu Fiore perguntar.

- Sim. – respondeu Joshua, fazendo Chrno franzir as sobrancelhas – Os meus pais também devem estar a chegar.

Não precisava de ouvir mais nada, decidiu Chrno, afastando-se. Para não dar nas vistas, escondeu os cornos. Aquele devia ser o seu castigo, pensou ele. Mas porque é que tinha de ser Rosette a pagar?

Quando saiu da propriedade, parou e olhou para o céu.

Qual era o plano Dele, afinal?

Chrno não sabia, mas sabia qual era o seu plano.

Rosette encontrava-se no seu quarto, com os olhos raiados e um vestido preto que Fiore lhe tinha emprestado.

Olhava continuamente para os pulsos, já há quinze minutos, perguntando-se se faria alguma diferença se os tivesse. Afinal, o sangue da santa só parecia funcionar para curar humanos e não demónios. Mesmo funcionasse em demónios, Chrno estava morto e não ferido.

Talvez Azmaria…

Não! Nem sequer sabia onde é que ela estava e, mesmo que soubesse, não queria usá-la tão facilmente.

- Facilmente. – murmurou Rosette, arrependida por pensar que a morte de Chrno era uma coisa simples.

As memórias da outra vida continuavam a passar-lhe pela cabeça. Tinha sido uma vida curta, mas preferia a vida curta, a uma vida longa sem Chrno ao seu lado.

Quando ouviu o que descobriu ser o dito “telemóvel” que a geração mais nova levava para todo o lado, levantou-se e começou a tarefa árdua de atender aquela maquineta.

Ao ouvir a voz do Padre, olhou automaticamente para o relógio. Estaria atrasada para o funeral?

‘Rosette, o Chrno está vivo! Vem imediatamente para aqui!” disse Rammington, indo diretamente ao assunto.

Imediatamente, Rosette largou o telemóvel e saiu do quarto.

Entretanto, Taylor mantinha-se sob custódia do Convento, proibido de fazer qualquer tipo de contacto com a Santa.

Claro que tinha tido direito a um telefonema, tal como numa prisão, onde dissera ao seu pai o que realmente tinha acontecido, em vez das mentiras que o Padre lhe tinha pedido para contar.

É claro que o pai iria tratar de tudo, agora.

Chrno olhava para a lápide onde Rosette tinha sido enterrada com ele, há muito anos atrás.

Passou a mão pelas letras e olhou para o lago que ficava a poucos metros de distância. – O que é que fazes aqui, Aion?

- É verdade que a santa está morta? – perguntou Aion, vendo Chrno anuir – Então porque é que não choras como choraste quando Madalena morreu?

A bola de raiva que tinha presa na garganta não o permitia, pensou Chrno. Mas, mesmo não o dizendo, Aion sabia exatamente no que ele estava a pensar.

- Queres matar os humanos que lhe fizeram isto? – perguntou Aion, mas ficou sem resposta – Pensei que achavas os humanos inocentes, depois de conheceres a Rosette.

- Os humanos são desprezíveis. – corrigiu Chrno, levantando-se – A morte da Rosette é prova disso.

- A culpa não foi tua, desta vez. É por isso que não consegues chorar. – Aion deu um passo em frente – Então, queres morrer, agora? – estendeu-lhe a mão – Ou queres vingar-te dos humanos que vos separaram.

- Eu não quero vingar-me dos humanos que lhe fizeram aquilo. – disse Chrno, aceitando a mão de Aion – Nenhum deles merece viver.