Decidiram esperar até o dia seguinte. Parecia que Harper iria fazer uma viagem até San Diego na tarde seguinte. Resolveram agir à noite e juntas. As três atravessariam o campo gramado escondidas pela sombra do prédio dos garotos e entrariam pelos fundos do prédio administrativo. Discutiam tudo isso no jantar aos sussurros.


- Mas se algum rapaz nos vir, vai alertar a segurança quase que imediatamente. – Jill se opôs ao plano de Sabrina.


- Se eu ouvir outra cantada essa semana... – resmungou Kelly.


- Não se preocupem. Se tudo correr como eu espero, eles estarão ocupados demais para observar as janelas. Preciso de três minutos de distração. – Sabrina olhou para Kelly.


- Ah não! Esse plano vai me custar mais que cantadas!


- Isso considerando que eles vão te deixar sair do prédio. – completou Jill rindo.


Kelly olhou em pânico a mentora do plano. Considerou o olhar inquisitivo que recebeu. Nem tentou a loira, que já estava se matando de rir imaginando a cena.


- Algum dia... – ameaçou.


- Considere um elogio. De nós três, é você quem tem as maiores chances de atrair a atenção de todos ao mesmo tempo usando seu charme sem igual. – incentivou Sabrina.


- Ah, isso até me faz querer dormir por lá mesmo! – ironizou Kelly, desistindo completamente de argumentar.


- Só agüente três minutos e saia correndo para nos encontrar. Resista ao impulso de ficar.


Jill levou o primeiro tapa repreensivo de Kelly.



- Sabrina, não pisa nessa tábua, está quebrada!


- Fala baixo e vamos logo!


Duas sombras se esgueiraram sorrateiramente pelo corredor do dormitório.



Kelly respirou fundo e abriu a porta do dormitório masculino. Ninguém naquele primeiro corredor. Virou à esquerda e começou a ouvir.


- ... estava de mau humor hoje...


- Viu aquela garota no jardim?


- Cara, você perdeu...


- Cadê o Mattews?


Vestida no mais discretamente provocante que pôde, Kelly apareceu no corredor:


- Ah! Rapazes? Devo ter me perdido... alguém pode me ajudar? Ainda não me acostumei com esse lugar...!


Lutando para não corar, observou as reações. Bocas se abrindo e olhares de cima a baixo. Pôs a cara mais cínica de inocência e esperou alguma resposta. Alguns balbuciaram algumas sílabas, paralisados demais para falar coisa com coisa.


E então, o que ela mais temia estava prestes a acontecer. Alguns começaram a se aproximar, tentar tocá-la e tudo o mais.


De repente, uma mão tocou seu ombro e outra a sua própria mão direita pelas costas. Kelly virou prestes a aplicar uma voadora e percebeu que era um só o rapaz. Tentava chamar atenção e guiá-la ao mesmo tempo.


- Oi, desculpa tudo isso, eu te levo até a saída.



- Jill, abre logo essa porta.


- Pronto, madame.


Um clic indicou que as duas podiam entrar em segurança. Jill guardou o útil clipe no bolso da jeans. Sabrina já abria uma gaveta de metal e iniciava sua busca.


- Jill, aqui vai de M a Z. Já achei a Majors. Pode parar de ver aí. Vou abrir a copiadora e pegar a ficha completa para lermos com a Kelly.


- Bri, olha só! Quer ver sua ficha? Eu achei a da Kelly aqui no A a L.


- Não deve ter nada de emocionante.


Jill folheou a ficha.



Ela estacou. Loiro, uma cabeça maior que ela e sem malícia no olhar. Poucas coisas a assustavam, mas Kelly se sobressaltou por seu coração estar batendo tão rápido.


- O-obrigada.


- Ei, Trevor! Posso muito bem acompanhá-la!


Trevor segurou com mais força a mão de Kelly.


- Ninguém encosta nela. Saiam do corredor e vão dormir. Que eu saiba, todo mundo aqui tem teste físico amanhã. Corner não vai gostar de atrasos.


Resmungando, todos que estavam por ali se retiraram. Após todas as devidas portas se abrirem e fecharem, Trevor se virou para a moça e começaram a andar.


- Desculpe! – ele soltou a mão de Kelly. – Isso foi meio atrevido, desculpe!


Kelly sorriu:


- Garanto que foi o menor dos males. Mas me conta, Trevor. Você parece ter autoridade por aqui.


- Isso dispensa apresentações, não? – ele sorriu um sorriso tão lindo quanto o de Kelly. – Ainda assim, sou Trevor Miles, tenho vinte anos e um dia serei coronel. Só treino minha habilidade de comandar. Pareço bom?


- Absolutamente perfeito.


Trevor corou e Kelly riu.


- O que foi? – perguntou espantado.


- Você... não faz o tipo tímido. – Kelly viu duas sombras se esgueirarem pelo gramado e começou a correr para a porta.


- Ei! Posso saber seu nome?


Kelly jogou a cabeça para trás e piscou:


- Recruta Garrett.



Kelly alcançou as outras duas ao abrirem a porta do dormitório feminino. Sorriu mas não trocaram nenhuma palavra. Achou que Jill parecia sem graça e Sabrina estranha. Haviam combinado de avaliar a ficha de manhã para evitarem problemas àquela hora da noite. Portanto, Kelly ficou no segundo andar e as outras subiram mais um lance de escadas.



Se encontraram em um horário livre de manhã, logo após o café. Harper chegara havia poucos minutos. Jill parecia normal, mas Bri ainda estava distante.


- Então, eu sobrevivi!


- Parece feliz. Mais do que devia para alguém que se expôs daquele jeito ontem. – Jill parecia desconfiada.


- Bem... digamos que eu ganhei um amigo valioso.


- O quê?! Um namorado?? Como você não me conta essas coisas?! – Jill gritou para quem quisesse ouvir.


- Ela disse amigo. – Sabrina respondeu numa voz distante e sem olhar para Kelly. Esta percebeu, mas logo Jill passou a desatar a ficha de Celinne e ela deixou passar.


- Tanto faz. Consta na ficha que Celinne não se retirou nem pediu baixa, nem sofreu acidente, nem foi pra casa. Ela só desapareceu. Acho isso muito estranho. Se ela quisesse pedir baixa, não precisava ser com a Harper. Ela não seria descoberta e poderia fugir com a valiosa manga. Fora isso, esteve algumas vezes na enfermaria por causa de cortes, mas nada muito grave e pouco sangue.


- Ocorreu a vocês que ela pode ter sido capturada e não fugido? – indagou Kelly pensando. – Assim, é claro que não teria tido tempo de pedir dispensa.


- O qu... quer dizer Harper? – Jill perguntou confusa. – Mas ela deveria ter dado baixa na ficha de Celinne para não despertar suspeitas, então.


- Talvez ela tivesse que sair correndo para cuidar de alguns negócios e esqueceu-se disso. – arriscou Kelly.


- É. – concordou Sabrina manifestando-se pela primeira vez – As fichas das pessoas podem nos dar muito o que pensar.


Jill lançou um olhar rápido para Sabrina.


Começando a achar que tinha algo a ver com aquela estranheza toda, Kelly perguntou:


- O que é que há com você, Bri? Desde ontem está esquisita. Se quer dizer alguma coisa, diz logo!


Sabrina fitou-a por um momento e Kelly sentiu raiva nos seus olhos. Parecia alguém que fora traída de alguma maneira.


Jill estava ainda mais sem graça do que no dia anterior. Baixou os olhos sem encarar Kelly.


- Se quer mesmo saber...


- Esquece, Bri! Para com isso! – Jill implorou.


- Não, eu vou falar, Jill. – Sabrina não tirou os olhos de Kelly. – Nós vimos a sua ficha ontem, Kelly.


- É? E daí? – Kelly estava intrigada agora.


- Conhece Peter Collins?


Kelly encarou-a.


- Não me lembro... ah, sim! Peter foi um amigo meu.


- Peter Collins matou uma mulher, Kelly. E você testemunhou em seu favor. – Sabrina parecia com muita raiva agora.


- Não, ele não matou. – Kelly respondeu calmamente. – Ele tentou salvá-la...


- Para de mentir! – gritou Sabrina de repente. – Collins era o maior ladrãozinho de carros do Texas! Ele cometia o maior roubo de sua vida quando a indesejável dona do veículo apareceu, ele a empurrou de um penhasco! E você o defendeu, impediu que esse verme fosse para a cadeia!


- Era mãe dele! – gritou Kelly parando de andar. – Ela tinha trocado de carro naquele dia e ele não sabia disso. Estacionou na estrada para fazer uma ligação. Foi quando Peter se aproximou e ela percebeu o que ele iria fazer. Não agüentando de desgosto, se jogou do penhasco.


- Muito conveniente, bela história ensaiada! – retrucou Sabrina aos berros.


- Não é invenção! – Kelly tinha lágrimas nos olhos. – Você não sabe... nunca esteve... sozinha, abandonada... nunca se sentiu só cercada de uma família que não ta nem aí pra você! Nunca precisou tanto de um amigo a ponto de... de gritar por um! De querer qualquer pessoa que a ouvisse, que visse suas lágrimas e te abraçasse ao invés de virar as costas e te chamar de fraco! Nunca... – Kelly parou para tomar fôlego.


- E você sabe? – Sabrina começava a se acalmar. Embora superficialmente, as lágrimas e palavras da outra a haviam tocado.


Kelly agora chorava convulsivamente.


- Ele não a matou... ele n-nunca f-faria... isso... a-a amava... – murmurou.


- Kelly... – começou Jill com pena.


- Espera. – Sabrina a impediu estendendo o braço. – Por que você entrou para a polícia? Não era suficiente roubar carros? Queria mais do que o Collins?


Kelly fitou-a entre as lágrimas. Após um momento, enxugou-as com as costas da mão e disse com a voz embargada porém firme:


- Sabrina... você mistura justiça com suas emoções. Embora Peter fosse um ladrão, nunca mataria alguém.


- Justiça, você diz? – disse Sabrina, olhando-a novamente com raiva e desprezo. – Eu sei o que é justo e o que faz parte de mim. Posso distinguir sozinha, obrigada.


- Então você vai entender isso. – Kelly deu as costas para as duas e foi caminhando. Parou perto da porta do refeitório e disse: - Desculpe, Jill. Por favor, não venha atrás de mim. Bri precisa de você. Não sejam orgulhosas demais para brigarem entre si. Eu já vi dor o suficiente nos seus olhos.


Entrou no refeitório e desapareceu.