- Por quê? Por quê?? – Jill perguntou de novo. Andando pelo campo no horário livre da manhã, Jill e Sabrina retomavam o assunto que mal as deixara dormir. Haviam abandonado o posto de observação às três da manhã, com muitas perguntas e nenhuma resposta concreta. Kelly fora fazer um curativo na enfermaria: sem conseguir dormir, tinha saído de seu quarto e tropeçara na tábua que Jill havia soltado mais cedo, ganhando um belo corte no tornozelo.


- Por que não podemos chamar a polícia? – insistiu Jill.


Sabrina riu ironicamente.


- Entenda: nós somos a polícia, e Harper também é. Estamos na polícia nesse instante, e quantas pessoas você acha que acreditariam em três recrutas de dezenove anos que mal podem controlar o trânsito?


- Eu não acreditaria... Espera, você está falando de nós, certo? – Jill se recusava a entender. – Mas que raios vamos fazer então?!


- Investigar e tentar...


- ... descobrir qualquer coisa que incrimine Harper – completou Kelly chegando nesse instante.


- Oi. – disse simplesmente Sabrina, sem olhar.


- Que susto, Kelly! Sua mãe não te ensinou a anunciar sua presença de modo normal? – Jill estava de muito mau humor por não dormir e por pensar demais em uma coisa que não entendia.


- Não, ela não me ensinou. – respondeu Kelly com um leve sorriso.


Pela primeira vez desde que passaram a andar juntas, Sabrina captou um sorriso que acompanhou os olhos verdes: triste. De relance, viu a outra abaixar a cabeça numa expressão vazia. Ela rapidamente virou os olhos e Kelly se recompôs. Família era o tabu, então?


- Está péssima – disparou Jill de repente, avaliando Kelly de cima a baixo.


- O corte foi tão feio assim? – respondeu Kelly, levantando a barra da calça para olhar o minúsculo curativo.


- Não, claro que não. – replicou Jill impaciente. – Veja essas olheiras! Você nunca dorme?


- Ah, isso aqui. Dormir não é meu passatempo favorito. – Kelly deu de ombros.


Jill trocou um olhar com Sabrina mexendo os lábios para formar a palavra “passatempo” sem emitir som e revirou os olhos.


- Dormir faz bem à saúde. – disse Sabrina sem dar a mínima para Jill.


- Vou pensar no assunto. – terminou Kelly, apressando o passo e deixando as outras duas para trás.



Haviam combinado de se encontrar mais tarde no jardim. Investigar, quem sabe. Jill queria sair por aí fazendo perguntas, opinião que Kelly compartilhava mas Sabrina achava muito arriscado. Teve que conter os ânimos das duas com argumentos nada convincentes, já que não tinha um plano.


Se separaram próximo ao portão de entrada: Jill e Kelly iam cumprir um turno na rua junto com alguns rapazes e o Sargento Hyde. Um homem corpulento e simpático, de grossas sobrancelhas e cabelos grisalhos raleando. Possuía modos forçados de gentileza mas um sorriso caloroso escondia esse traço estranho de quem já estivera no exército e enlouquecera um pouco por lá.



- Então, ela vira e diz: “Se andar mais um centímetro com esse carro, eu amasso o capô.” O cara mal andou milímetros, ela chutou o farol e o homem saiu voando dali. Assustadora guarda de trânsito!


Sabrina riu alto e Kelly desviou os olhos emburrada.


- Ele mereceu. – comentou irritada.


- Você quebrou o farol dele! – Jill comentou tentando censurar, mas não pôde conter o riso. – Levou uma bronca sorridente do Hyde.


- O Sargento não costuma sorrir muito enquanto repreende os outros. – disse Sabrina.


- Ah, mas a Miss Sedução aqui sorriu primeiro, quebrando o gelo. – respondeu Jill sorrindo maliciosamente para Kelly.


Ela voltou olhos irados para a outra mas não disse nada. Apoiou a cabeça em uma das mãos e cutucou um pepino com o garfo.


- Afinal, por que você queria aplicar uma multa nele? – perguntou Sabrina.


Jill gargalhou dessa vez e Kelly corou.


- Ele disse que Kelly devia usar seus atributos físicos para outras coisas ao invés de escondê-los num uniforme policial. Até ofereceu um emprego a ela!


Sabrina tentou não rir porque Kelly estava corando ao extremo e silenciosa demais. Mau sinal.


- Ah... bom, ele com certeza mereceu.- Foi o máximo que Bri conseguiu dizer sem rir.


Kelly fuzilou as duas e se defendeu:


- Não foi só isso: além do tipo de emprego que ele me ofereceu, enquanto me avaliava subiu na calçada, ok? Isso exige uma multa!


Voltou a desviar o olhar e Jill revirou os olhos num gesto de “agora-ela-quer-parecer-certinha”.


- E no fim, você nem multou o cara.- completou Jill.


- Não... mas tenho algo pra vocês.- Kelly sorriu misteriosamente.


- O quê? – indagou Sabrina curiosa.


- Enquanto eu me aproveitava de meus atributos para ganhar a confiança do nosso Sargento, descobri algo muito interessante.


- Que tipo de coisa? – Jill estava séria agora.


- Bem... parece que sua amiga Majors gosta de surrupiar as frutas da nossa comandante favorita. E mais: ela já foi pega fazendo isso, mas Harper não ficou sabendo. Interessante? Ouçam isso então: é a terceira garota que é vista mexendo nas árvores. As outras duas? Harper pegou. O que aconteceu a elas? Ninguém sabe.


Jill e Sabrina se entreolharam.


- Como ele sabe de tanta coisa? – perguntou Jill.


- Achei melhor não fazer mais perguntas. – respondeu Kelly – Mas que ele deve ser muito amigo da Harper pra saber de tanta coisa, isso ele deve.


- Tá na hora de abrir aquela manga.



Kelly aguardava as outras duas recrutas no jardim. Examinava os troncos, galhos caídos e frutas com disfarçado desinteresse. Várias pessoas ainda circulavam por ali pois a tarde só começara. Jill fora conversar despretensiosamente com o guarda do portão e Bri, buscar a manga. Kelly andava entre as árvores admirando a beleza colorida contida nelas, considerando que o país não era muito bom produtor tropical.


Era, sem dúvida, o local mais bonito da Academia. Tão verde e com aquelas árvores altas passava um sensação de proteção.


Como era horário livre, até mesmo rapazes caminhavam alegres e despreocupados pelo jardim. Kelly conseguiu levar duas cantadas e olhares cobiçosos, além de ocasionais espiadas por uma fresta de janela que ela sabia pertencer à sala de Hyde. Sorriu satisfeita, imaginando se poderia arrancar mais informações do sargento no dia seguinte.



Jill voltou primeiro. Parecia meio afoita, mas quando Kelly perguntou o que era, ela respondeu que esperaria Bri chegar para contar.


Assim que Sabrina apareceu, Jill já começou a contar tudo.


- O Tommy disse que nada de anormal aconteceu hoje. Perguntei se alguém tinha saído, ele disse que Harper saiu de carro mas voltou logo. A única coisa diferente foi que Celinne costuma conversar com ele nesse horário e não apareceu. Perguntei por ela enquanto voltava para cá e ninguém a viu.


- Você está de mãos vazias. – observou Kelly esperando Sabrina retomar o fôlego.


- Ah, sim. – respondeu ela. – A manga sumiu.


- Como?!


- Revirei cada pedaço daquele quarto. Nada, simplesmente desapareceu.


- Espera. – disse Kelly, pensando. – A manga sumiu. Celinne sumiu. Pelo que vocês me disseram, ela chegou aflita querendo esconder a manga no outro dia, certo?


- É, aquela coisa pesada foi bem difícil de esconder. – Jill comentou.


- Quer dizer... ela fugiu? – Sabrina perguntou olhando para Kelly.


Kelly olhou para as duas e respondeu:


- Sinto que a ficha de Celinne pode dizer melhor do que eu. Hora de invadir a sala de arquivos.