- Já está perfeita, Duncan. Pode ir. – disse Mrs. Crayon retirando todas as bandagens de Sabrina e sorrindo por trás dos grandes óculos.


- Obrigada, Mrs. Crayon. Sinto-me melhor agora. – Sabrina sorriu para a enfermeira ao passar pela porta.


Dirigiu-se a uma aula teórica sobre leis e estatutos, fez anotações e quase já esquecera Kelly, caso Jill não a tivesse lembrado no intervalo e a garota não tivesse esbarrado nela num jogo de vôlei.


No almoço, Jill parecia mais agitada que de costume e comeu tão rápido que engasgou-se diversas vezes.


- Não se esqueça do que falou ontem, hein! Lutar com a Kelly, brigar com ela, vencê-la.


- Jill, eu não sou inimiga da garota. Eu estava de cabeça quente ontem, você sabe disso. Não vou machucá-la por diversão. Você parece uma gângster às vezes.


- E quem disse que você vai machucá-la? Eu fiz minha aposta ontem, Bri. – provocou Jill de novo.


- Quer saber? Eu vou lutar com ela sim, mas só porque quero conhecê-la melhor. Essa Garrett poderia ser uma boa colega. – Sabrina pensava sempre pelo lado racional. Escolhera andar com Jill porque ela conseguia informações que ninguém mais alcançava. Tinha lá os seus métodos. Embora não admitisse em voz alta, Sabrina se afeiçoara à loira sorridente e a considerava uma grande amiga.


- Sabrina, a calculista. – comentou Jill em voz baixa.


Terminada a refeição, se dirigiram a mesa de Kelly, que estava novamente sozinha e de novo não fazia questão de companhia.


- Oi, quer um pouco de suco? – cumprimentou Jill oferecendo um copo.


Kelly esboçou a expressão de curiosa surpresa, mas o reconhecimento daquele rosto emoldurou-lhe um sorriso de anjo.


- Obrigada, não precisava se incomodar. – murmurou timidamente.


- Podemos sentar? Queríamos conversar um minuto. – disse Sabrina. Olhando-a de perto, repetidamente lhe vinha uma sensação de pena e proteção. Não sentia mais nada daquelas palavras que dissera contra a colega no dia anterior. Sem raiva da brilhante novata.


- Claro, fiquem à vontade. Desculpem, nem as convidei. – outro sorriso. – Mas querem falar comigo? – perguntou intrigada olhando em volta, como se conversar com ela fosse causar-lhes pena de morte, ou alguma doença grave.


- É claro! Você é a novidade do momento, garota! Temos que oferecer nossos préstimos, não é? – Jill replicou inocentemente.


A recruta pareceu mais confusa.


- Ela quis dizer que gostaríamos de ser suas amigas – consertou Sabrina.


- E por que eu? Tem tantas garotas interessantes e bonitas, de boas famílias por aqui. – respondeu Kelly olhando em volta. – Por que eu? – repetiu.


- São todas chatas e metidas, se você quer saber. – Jill confidenciou. – Quando te vi ontem, achei que fosse assim também, com características extras de um pitbull, pela performance no campo. Mas, ei, você é legal Kelly! Posso te chamar de Kelly não é? Vamos ser boas amigas!


Kelly assentiu com a cabeça.


- Mas... ainda não posso entender... – de cabeça baixa, Kelly murmurava.


- Vamos por as coisas assim: eu luto com você amigavelmente. – falou Sabrina. – Se eu vencer, a gente senta com você no almoço e conversamos como velhas amigas, sem necessidade de porquês.


- E se eu vencer? – tímida, mas amante da disputa.


Sabrina sorriu:


- Aí nós duas aqui vamos lhe prestar o favor de fazer o seu turno de vigia por um mês. – Havia uma sacada no prédio de armamentos utilizada para que as garotas treinassem a arte de vigiar sem ser vista. Era só observar o jardim por uma noite sem dormir e acender eventualmente a lanterna para o prédio dos garotos, trocando mensagens pela luz. Monótono, raramente alguém aguentava toda a noite sem cochilar.


- Mas eu não preciso realmente... – argumentou Kelly, sendo interrompida.


- Peraí, NÓS? Você perde e eu me ferro?? – Jill indignada.


- Você que começou, agora torça pela minha vitória. – Sabrina dava sua cartada final.


Continuaram a discutir, sem perceber que a colega sentada à mesa dera seu primeiro sorriso de satisfação verdadeiro desde que chegara à Academia. Abriram o coração de Kelly Garrett.



Marcaram no pátio de armamentos mais à tarde, pois não estava havendo treino lá nesse dia.



- Como você conseguiu fazê-la aceitar a luta? Ela parece do tipo que precisa de muitas explicações para tudo. – Jill, agora mais calma, caminhava ao lado de Sabrina em direção ao gramado para um treinamento de resistência em que estavam colocadas juntas no horário.


- Justamente para vencer as muitas questões existenciais que parecem confundir Kelly Garrett eu apresentei a ela um desafio simples, sem questões profundas. É só uma luta vantajosa para os dois lados. Difícil de recusar, não?


- Sabrina, a inteligência suprema do universo. – Jill não fez questão de baixar a voz para esse comentário, o que lhe rendeu um tropeção na perna da amiga.



- Tá escuro aqui, Bri. – reclamou Jill.


- Calma, eu já vou acender a luz. – Sabrina procurava o interruptor do pátio.


A luz se acendeu de repente e um uniforme cinza apareceu, até então incógnito.


- Ah, Kelly! – Jill exclamou. – Chegou na hora, garota!


- Acho que vocês entraram pelo lado errado. A luz é acesa aqui. – explicou Kelly.


- Tem razão, erramos o portão. – disse Sabrina olhando em volta.


- Chega de conversa, vamos começar isso logo! – Jill, já impaciente.


Sabrina e Kelly se posicionaram uma de frente para a outra, a dois metros de distância. Faziam movimentos idênticos, analisando a oponente passo a passo e tentando prever um movimento. Jill dava pequenos gemidos de ansiedade, incentivando ambas a um combate corpo a corpo direto.


Numa distração de Sabrina na qual a luz piscara e ficara mais fraca, Kelly correu para ela, com certeza preparando um golpe. Jill gemeu, dessa vez de solidariedade.



A próxima coisa de que Sabrina teve consciência foi de um par de óculos espiando de perto. Deu-se conta de que estava deitada. Cheiro de remédio. Oh, não! Enfermaria duas vezes na mesma semana!


- Ah, meu Deus! Ela acordou! – de olhos fechados, Sabrina ouviu a histeria na voz de Jill.


- É claro que sim, você não esperava que ela dormisse para sempre, não é? – respondeu Mrs. Crayon, com uma nota de desgosto na voz. Ainda não perdoara Jill. – Miss Duncan, como se sente?


- Eu... – Sabrina abriu os olhos. Já era noite lá fora. Ela piscou para a luz. – Estou sinceramente bem... – tentou se sentar, mas a cabeça girou. – O que... o que houve, Jill?


- Ah, nada de arranhões dessa vez, mas você caiu em cima do braço e fraturou uma costela.


- Eu quis dizer, o que ela fez...? – mas Jill lançou um olhar de alerta sobre Mrs. Crayon e Sabrina se calou.


A enfermeira voltou com um raio-x na mão, declarando que Sabrina teria que passar a noite ali. Muito a contragosto permitiu que Jill permanecesse com a amiga durante esta noite. Às nove horas, ela ajeitou os cobertores da paciente e deu boa noite às recrutas, fechando as cortinas ao sair.


- Mal cabem minhas pernas aqui! – Jill reclamou tentando encontrar uma posição confortável na cadeira dura. – Ah, ela não iria gostar de saber sobre duas garotas brigando escondido. – completou ante o olhar inquisitivo de Sabrina.


- Ok, agora você pode falar. – disse Sabrina impaciente.


- Bom... nem chegou a ser uma luta, parecia mais uma cena de comédia mal gravada, sabe, com problemas técnicos e sem a música adequada, e...


- Jill! – murmurou Sabrina entredentes, cortando o falatório da outra.


- Está bem. – Jill olhou séria para Sabrina. – Foi tudo muito rápido, a luz piscou, em um segundo Kelly estava virando você de cabeça para baixo e ela percebeu que você ia cair em cima do braço. Então, tentou te virar para o outro lado, mas aí seu braço estalou e ela, assustada, te deixou cair de lado. Isso explica a costela quebrada. Você nem esboçou reação. Ficou simplesmente imóvel numa espécie de defesa pessoal paralítica que não funcionou nadinha. E... foi isso! – Jill concluiu. – Ah, sim, Kelly me ajudou a trazê-la, na verdade te carregou sozinha até aqui balbuciando mil desculpas e desapareceu quando ouviu da Mrs. Crayon que você estava bem.


- Eu perdi. – murmurou debilmente Sabrina.


- Do jeito que aquela novata saiu daqui, ela vai querer um segundo round. – comentou Jill.


- Como assim? – disse Sabrina pensando muito pouco e tonta novamente.


- Sabe, ela deve achar que você está em coma ou algo assim. Parecia muito, mas muito assustada e certamente não pensa que foi uma luta justa. Não deve nem conseguir dormir essa noite, de tanta raiva de si mesma por não te deixar dar um golpe e testar sua força.


- Certo... e errado. – respondeu Sabrina voltando a pensar.


- O quê? – Jill não entendera a última frase.


- Eu quis dizer... sim, ela não acha que foi uma luta justa. Mas ela não vai dormir por outro motivo.


- E qual seria?


- É porque ela tem remorso de ter me machucado. – replicou Sabrina simplesmente. – Eu a estava testando, ela estava lutando sem propósito. É o tipo de pessoa que não mata nem mosca.


- Quer saber? Dorme aí que a sua cabeça deve estar girando que nem uma hélice.


Sabrina fechou os olhos mas ainda ouviu Jill murmurar: “Sabrina, a psicóloga.” E dormiu.



Sabrina foi liberada lá pela hora do almoço com pequenas insinuações sobre “não voltar aqui” e “evitar o perigo” de Mrs. Crayon. Ainda sentia pontadas ocasionais nas costas, mas podia andar normalmente e a cabeça já voltara a pensar como antes.


Jill achou uma mesa de costas para a porta do refeitório e minutos depois Celinne veio perguntar como Sabrina se sentia. Jill deu uma resposta curta e seca, pois já era a décima garota que fazia a mesma pergunta.


- ... e por que elas não espalham a notícia de você sobreviveu? Acho que vou colar um cartaz na sua testa: “Estou viva. Não enche o saco.” O que você acha dis...


- Desculpa, mas como você está, Sabrina? – uma nova voz, docemente tímida.


- Escuta, ela está ótima, então porque você não...? – Jill irritou-se profundamente.


- Desculpa mesmo! Mas... – a garota sentou-se à mesa – eu devo ver se o impacto foi muito grande. – sorriso envergonhado.


- Kelly! Desculpa! Eu nem vi que era você! – Jill parecia visivelmente atordoada. Primeiro, Kelly iniciara uma conversa. Segundo, sentara-se com elas sorrindo.


- Eu estou boa, e não foi sua culpa. Eu que agi como uma boneca espalhafatosa. – Sabrina mudou radicalmente de atitude assim como Kelly.


- Deixa pra lá, não foi muito justo. Eu agi impulsivamente quando vi uma chance. – Kelly abriu um sorriso totalmente amigável.


- Esquece, eu que paralisei na hora de lutar... sabe, foi um excelente golpe, e...


Jill acompanhava um informal diálogo de duas pessoas que nunca falavam mais que duas palavras juntas. Boquiaberta, nem sabia o que dizer ou como entrar na conversa. Bri e Kelly agiam como melhores amigas de infância agora.


- Sobre a vigia noturna... vamos só fingir que não apostamos isso, não é justo... – Kelly chegou ao assunto que interessava a Jill.


- Nada disso. Você ganhou, receba seu prêmio! – Sabrina respondeu.


- Espera aí! – Jill voltou a reagir. – Se ela quer esquecer, deixa pra lá, Bri. – fuzilou Sabrina com o olhar.


Sabrina baixou a cabeça:


- É que... bom, a gente perdeu. Não tem que se sentir culpada nem sentar conosco por educação.


Kelly riu abertamente:


- Esse rostinho lindo nunca foi muito educado. – os olhos verdes divertidos agora. – Não tentem fugir, pois fizeram uma oferta e eu não vou esquecer disso, não me interessa o que digam. E vamos nos atrasar para o teste físico.


Kelly levantou-se e saiu pulando, toda serelepe em direção ao campo.


Num movimento sincronizado, os queixos de Sabrina e Jill caíram de espanto.


- I-isso quer dizer... – Jill balbuciou incerta - ... a... migas??!