Chamas e Brisas

Capítulo 17 - Troca de Roupas


A atmosfera na vila era um misto de cotidiano e desolação. Lyra e Aeris, sentados em uma mesa rústica, estavam inclinados sobre um mapa desdobrado, discutindo rotas e estratégias com a seriedade de quem carrega o peso de um mundo em conflito. As palavras de Aeris se perdiam em murmúrios, abafadas não apenas pela distância, mas pelo cenário que se desenrolava diante dos olhos de Lyra.

Ela observava, com um coração pesado, as consequências da guerra civil que assolava a capital. Pessoas desabrigadas moviam-se como sombras entre as construções, carregando em seus braços o pouco que restava de suas vidas passadas. Outras estendiam mãos trêmulas em busca de esmola, seus olhares implorando por um pouco de compaixão em um mundo que parecia ter esquecido a gentileza.

Enquanto isso, Elian e Luna, imersos na tarefa mais mundana de adquirir alimentos, eram um contraste vivo à gravidade da situação. Eles percorriam o pequeno restaurante, escolhendo provisões que sustentariam o grupo em sua jornada, alheios ao sussurro da pobreza que se espalhava pelas ruas.

A cena diante de Lyra era um lembrete cruel de que, mesmo longe dos campos de batalha, a guerra deixava suas marcas indeléveis, transformando vidas e sonhos em cinzas. Aeris ao perceber a preocupação nos olhos da morena, logo pousa sua mão sobre a dela, indagando em seguida:

- Memorize cada rosto de sofrimento e guarde em seu coração. – sussurra ao fita-la com um olhar gentil. – Mesmo que não possamos ajudar, iremos carregar tais rostos para o resto de nossa vida. – complementa com um sorriso gentil.

Lyra tenta fazer uma pergunta, mas nada sai. Pois no olhar que ele fizera, sabia que tinha visto muitos rostos na sua primeira vinda a Solumia, e carregava consigo em silencio para fortalecer suas decisões, e não compartilhando a dor que viu.

- Então, qual nosso próximo passo? – pergunta ele com o olhar sob a dupla da dobra de água, que sentam-se carregando alguns aperitivos, e levando na bolsa ingrediente para a viagem.

- Temos que nos localizar, essa vila não tem um nome no mapa. – argumenta a princesa do fogo, com seus olhos submersos no mapa de Solumia.

- Pode ser que o mapa esteja desatualizado. – diz Luna, colocando um pote de macarrão na frente de cada um. – De quando é o mapa? – pergunta fitando seu irmão, que apenas balança o ombro como resposta.

- O problema não é o mapa. – solta Elian. – Observe bem as construções da vila, todas de madeira e feitos a pressa, parece que vão cair com uma simples ventania. – murmura enquanto comia seu macarrão com certa delicadeza, vinda da etiqueta da família real.

Lyra, com os olhos atentos e pensativos, absorve as palavras de Elian e deixa seu olhar vagar pelas construções da vila. As estruturas novas, ainda exalando o cheiro fresco da madeira e da terra trabalhada, contam uma história de urgência e necessidade. Os refugiados da capital, em busca de segurança e um novo começo, escolheram este lugar — tão perto da fronteira quanto a esperança está do desespero.

As casas, erguidas com a rapidez que a sobrevivência exige, formam um mosaico de determinação e resiliência. Cada tábua pregada, cada telhado completado, é um testemunho do espírito indomável daqueles que foram forçados a fugir de suas casas. Eles buscaram refúgio onde a sombra da guerra civil ainda não alcançou, criando um enclave de esperança na beira do mundo conhecido.

- Então vamos ter que fazer da maneira antiga. – solta Aeris levantando-se, com certo desconforto com a roupa de cigano que estava usando.

- Coma primeiro, antes de fazer qualquer coisa. – dispara Luna com um olhar fuzilante.

- Ok. – sua voz sai sussurrante como resposta, com um medo parecido com que sentia quando era repreendido por Isabel, sua mãe.

Numa pequena cabana à beira da estrada, o aroma do macarrão recém-cozido enchia o ar. Lyra e Aeris, com fome após um longo dia de viagem, atacavam seus pratos com uma urgência quase cômica. Os fios de macarrão mal tocavam o prato antes de desaparecerem em suas bocas apressadas.

Do outro lado da mesa, Luna e Elian adotavam uma abordagem mais refinada. Eles entrelaçavam o macarrão em seus garfos com elegância, cada mordida uma celebração dos sabores simples mas deliciosos da vila que haviam visitado. O contraste entre os dois pares era uma cena para se ver.

Entre risadas e histórias compartilhadas, o peso da situação política da nação parecia se dissolver, pelo menos temporariamente. As piadas voavam, algumas sobre as aventuras do dia e outras sobre as peculiaridades encontradas em cada nova cidade. Por um momento, a única coisa que importava era a companhia e a comida.

- Qual a maneira antiga? – pergunta Elian, enquanto o jovem juntava os potes descartáveis que usaram para jogar no lixo mais próximo.

- Vamos andar pelo Vilarejo, primeiramente eu quero passar numa loja de roupas. – solta Aeris, com certo incomodo evidente em sua vestimenta.

- Qual o problema? – pergunta Lyra. – Acho fofo como você parece um gato se recusando a coleira. – solta uma risada após a comparação.

- Muito engraçada. – cerra os olhos, fitando a princesa do fogo que apenas a mostra a língua ao sentir o olhar fuzilante do loiro.

- Quero dar uma passada numa no centro do vilarejo, lembro de ter visto uma loja de lembranças para o pessoal que cruza a fronteira. – Luna arruma suas coisas na bolsa, jogando a mesma nas costas ao se levantar. – Alguém quer ir junto?

- Não, acho que vou com Aeris para a loja de roupas, também quero trocar essas roupas chamativas. – responde Lyra.

- Vou ter que recusar, quer passar perto do lago, sentir um pouco a água que corre nessa nação. – o jovem príncipe parecia meio soturno em suas palavras.

- Muito bem, nos encontremos ao anoitecer nessa mesma cabana de macarrão. – diz Lyra.

À medida que a luz do sol começava a se inclinar para o oeste, o grupo decidiu dividir-se para cobrir mais terreno. Elian, com passos medidos, dirigiu-se ao lago. A superfície tranquila e o murmúrio suave das ondas pareciam sussurrar segredos antigos. Ele sabia que qualquer mudança no padrão da água poderia refletir os eventos de Solumia, a capital cujo destino estava intimamente ligado ao do lago.

Enquanto isso, Luna, com olhos curiosos, caminhou em direção ao centro do vilarejo. A loja de lembranças que ela havia notado antes poderia ser a chave para desvendar o que estava acontecendo em Solumia. Ela esperava encontrar um mapa atualizado ou, com sorte, uma conversa casual que pudesse revelar detalhes cruciais.

Aeris e Lyra, desconfortáveis em suas roupas de ciganos, buscavam uma loja de roupas que pudesse oferecer-lhes um disfarce mais adequado. As ruas estreitas e sinuosas os levaram a uma pequena boutique, cuja fachada modesta escondia uma variedade de tecidos coloridos e estilos diversos. O sino da porta tilintou ao entrarem, e eles foram recebidos por um aroma suave de lavanda e o sorriso acolhedor do proprietário. Era o tipo de lugar que prometia mais do que apenas roupas novas, mas também um novo começo.

O proprietário da loja de roupas era um homem de estatura mediana, com cabelos prateados que denunciavam sua sabedoria e anos de experiência. Seus olhos, por trás de óculos de aro fino, brilhavam com uma mistura de astúcia e gentileza. Vestia-se de maneira simples, mas com um senso de estilo que refletia o bom gosto das peças que vendia. Sua voz era calma e convidativa, fazendo com que cada cliente se sentisse em casa.

Sua filha, que atendia Aeris e Lyra, era a personificação da jovialidade. Seus cabelos castanhos caíam em ondas suaves sobre os ombros, e seu sorriso era tão acolhedor quanto o sol da manhã. Ela se movia pela loja com uma graça que só poderia ser herdada, ajudando o casal com uma paciência e um entusiasmo que só a juventude possui. Vestida com uma das criações mais elegantes da loja, ela parecia uma flor entre as folhas, destacando-se naturalmente e enchendo o espaço com sua energia vibrante. Era evidente que ela não apenas vendia roupas, mas também compartilhava um pedaço da história e do coração daquela pequena loja encantadora.

Lyra, com um brilho travesso nos olhos, decidiu que era sua vez de escolher o traje de Aeris. Ela percorreu as araras da loja com um entusiasmo quase infantil, puxando peças aleatórias e segurando-as contra Aeris para avaliar o efeito.

- Que tal esta? - ela perguntou, segurando uma túnica extravagante com franjas e lantejoulas que brilhavam sob a luz da loja. Aeris, com seus cabelos loiros curtos e olhos azuis que normalmente transmitiam uma calma confiança, agora refletiam um misto de horror e diversão.

- Lyra, eu pareço um pavão em plena exibição. - ele riu, ajustando o tecido que cobria sua tatuagem tribal no antebraço. A tatuagem era um símbolo de união entre as nações, e embora estivesse escondida, ele sentia seu peso como um lembrete constante de sua missão.

Ignorando seus protestos, Lyra continuou sua busca, agora com um par de calças que pareciam ter sido feitas para um bufão de corte.

- E estas? Combinam com seus olhos. - ela disse, mal conseguindo conter o riso.

Aeris, entrando na brincadeira, posou dramaticamente, fazendo caretas e gestos exagerados.

- Sim, claro, e talvez eu possa juntar-me ao circo local depois. - ele brincou, enquanto a filha do proprietário observava a cena com um sorriso contagiante.

No final, Lyra escolheu para Aeris um conjunto de roupas que era elegante e discreto, mas não sem antes garantir que a memória daquela diversão ficasse gravada em suas mentes, um momento de leveza em meio a tempos incertos.

- Sabe, jovem, eu não posso deixar de sentir que já o vi antes. Seu rosto me é estranhamente familiar. – diz o proprietário com um olhar curioso. Aeris, surpreso, trocou um olhar rápido com Lyra, seu coração batendo um pouco mais rápido.

- Ah, eu tenho um daqueles rostos, suponho. – diz com um sorriso gentil.

- Pai, você diz isso sobre todo cliente que entra aqui. Acho que você está ficando velho e todos começam a parecer conhecidos! – a filha intervêm, ao ver a troca de olhares tensa entre o casal.

O proprietário ri enquanto passa sua mão entre seus fios ralos na cabeça, mas com um olhar sobre a Lyra dessa vez. Uma curiosidade crescente tomou conta de si novamente, indagando em seguida:

- Perdão pela insistência, mas seus olhos… Eles me lembram alguém muito especial. Você não seria, por acaso, da Nação do Fogo?

Lyra congelou por um instante, seus olhos dourados ardentes encontrando os do proprietário. Ela sabia que qualquer semelhança com sua avó, a rainha, poderia levantar suspeitas indesejadas.

- Oh, muitos dizem que tenho olhos incomuns, mas não, eu sou apenas uma viajante comum. – responde Lyra, para tentar despistar o senhor.

- Pai, você e suas histórias antigas! Ela é jovem demais para ser quem você está pensando. – intervém novamente a filha, com seu sorriso brincalhão, com medo que sei pai espantasse os clientes.

O proprietário assentiu, mas ainda havia uma faísca de dúvida em seu olhar.

- Talvez você esteja certa, minha filha. Deve ser a luz da loja refletindo em seus olhos. – termina o senhor, agora voltando para seus afazeres.

Aeris, com um sorriso maroto, segurava um vestido após o outro diante de Lyra, cada um mais deslumbrante que o anterior.

- E este? - ele perguntava, apresentando um vestido de seda vermelha que capturava a essência do fogo de sua nação. Lyra revirava os olhos, fingindo irritação.

- Você diz isso sobre todos eles. Vamos, escolha um logo!

Mas Aeris apenas ria, desfrutando da oportunidade de vê-la em tantos trajes magníficos.

- Mas é que você fica linda em todos! Como posso escolher apenas um? – solta o loiro com um sorriso em seus lábios. A paciência de Lyra estava se esgotando, mas havia um brilho de diversão em seus olhos.

- Se você não escolher, eu vou sair daqui com o primeiro que experimentei! – exclama ela, procurando uma vestimenta pratica para luta.

Compreendendo a necessidade de roupas práticas para suas habilidades de dobra, Aeris e Lyra buscaram opções que lhes permitissem liberdade de movimento. Aeris escolheu para si uma túnica leve de linho e calças soltas que facilitavam a circulação do ar, essenciais para um dobrador do ar. O tecido era resistente, mas respirável, permitindo que ele se movesse com a graça de uma brisa.

Lyra, por sua vez, optou por um conjunto versátil que refletia sua natureza ardente como dobradora do fogo. Uma blusa de algodão com mangas que podiam ser enroladas e presas acima do cotovelo, e calças justas, mas elásticas, que não restringiam seus movimentos rápidos e precisos. As cores eram um equilíbrio entre o discreto e o vibrante, como as chamas que ela manipulava.

No entanto, não resistindo ao charme de Aeris e à beleza de um vestido que ele havia escolhido, Lyra também adquiriu um vestido simples, mas elegante. Era um vestido de corte solto, com um padrão que lembrava o entrelaçar das chamas, e embora não fosse ideal para a dobra, era perfeito para os momentos de descanso e celebração.

Assim, com suas novas aquisições, eles deixaram a loja, prontos para enfrentar os desafios que viriam, tanto em batalha quanto em tempos de paz.