– Ayame!- chamou uma voz.- Ayame!?

Acordei do meu sonambulismo e fitei Yori que me olhava, preocupada.

– Chamaste-me?- perguntei-lhe.

– Achas que isso é uma pergunta que se faça?- gritou ela.- Já te chamei cerca de quinze vezes!

Colocou-me a língua de fora e eu respondi-lhe com um sorriso, um sorriso manchado pela ausência do desejo, do querer, de facto, sorrir.

– Desculpa, não tinha ouvido!

Ela sentou-se ao meu lado, fitou seriamente, por momentos, a minha face e perguntou-me:

– O que se passa?

– Nada. Porquê?

– Estás há meia hora para acabares de comer um iogurte!- sorriu-me. Olhei para a colheu que tinha na mão e o meio iogurte de coco que ainda ali estava.- No que estás a pensar?

A rapidez de pensamento de Yori surpreendeu-me. Porém, algo como a verdade não poderia ser contada. Pelo menos, não a alguém tão sensível como eu.

– No teste de Biologia de amanhã.- disse, simplesmente.

Ela sorriu.

– Estás a gozar comigo?- gargalhou.- Mas a matéria de biomoléculas é tão fácil.

Enquanto me relatava toda a matéria que ela tinha passado a noite a decorar (enquanto eu ressonava profundamente), finalizei o meu pequeno (mínimo até) pequeno-almoço e encaminhámo-nos para os corredores.

– Os monómeros são missangas e os polímeros pulseiras formadas pelos monómeros…- continuava ela.

Interrompi-a.

– O Zero veio ontem às aulas?- perguntei-lhe.

– Não.- suspirou ela.

Já tinha passado uma semana desde que me tinham contado a verdade da minha existência. Desde esse momento, não tinha voltado a ver Zero. Ele não tentara encontrar-me e, quanto a mim, desde que ele tinha retirado a mão do meu ombro, com um ar de enjoado… eu tinha-me sentido relutante. Talvez, por isso não o tenha procurado. Como o meu pai (adoptivo) costuma dizer: “Os rapazes, os que têm p***, que dêem o primeiro passo!”.

A aula de biologia começou, sem ele por perto. E, como não havia dúvidas para o teste que viria, a professora resolveu fazermos uma dissecação a uma rã. Senti-me empolgada, sempre adorara matar bichinhos. O que não contava era com o tamanho da rã. “Afinal isto não é um bichinho normal”, pensei. O anfíbio era do tamanho das minhas duas mãos juntas.

O meu grupo foi o primeiro a começar (eu tenho a porra de um azar). Prenderam a rã com fita-cola e o professor passou-me o bisturi, esperando que eu desse a primeira facada ao pobre ser vivo.

Eu, com o pressentimento que a rã iria conseguir, de certa maneira, “rasgar” aquela prisão e atacar-me, passei o bisturi ao meu colega do lado. Ele, com as mãos a tremer, abriu o pobre anfíbio ao meio. Dali, líquidos acastanhados e esverdeados em maior quantidade que a pretendida, sairam.

O professor pegou no fígado (ou o raio que aquilo era) e exclamou:

– Oh, venham cá ver! Estão aqui insectos a decompor-se!

Enjoei de tal maneira que pedi licença e sai do laboratório, encaminhando-me para os jardins. Durante o caminho, tentei tirar a ideia da decomposição e da possibilidade da rã se tornar num zombie, matando toda a gente que tinha pegado no bisturi.

Deitei-me na sombra de uma árvore e concentrei-me a ouvir os pássaros, que longe cantavam uma alegre melodia. Suspirei. Como era bom baldar-me de vez em quando.

De repente, a melodia das aves foi interrompida pelo relincho de cavalos. Atraída pela violência do som, dirigi-me aos estábulos da academia.

Espreitei pelo portão entreaberto. Um cavalo castanho com cauda preta saltava de um lado para o outro dentro da sua cela. Virou-se e tentou partir a pequena porta que separava o compartimento onde ele estava do restante estábulo. Parecia assustado.

Abri o portão o suficiente para eu entrar. Fui buscar um pente e um pouco de feno. Sem entrar, um pouco receosa, ofereci-lhe um pouco de feno. O cavalo acalmou-se e comeu o que se encontrava na minha mão. Dei-lhe um pouco mais e entrei devagar na sua cela. Ele ao ver-me entrar em território alheio, começou a exaltar-se.

– Shhhhh!- murmurei, tentando acalmá-lo.

Ao vê-lo habituando-se à minha presença, dei-lhe mais feno como recompensa. Peguei na escova e comecei a escovar o pêlo bonito que se estendia por todo o seu corpo. Ele, em resposta, acalmou-se totalmente.

– Lindo menino,…- olhei para a porta que tinha o nome dele.-…Shadow.

Ao ouvir o seu nome, Shadow relinchou baixinho. Parecia satisfeito. Continuei a escová-lo, até perceber que a aula de biologia já teria acabado e que a seguir viria… suspirei. Matemática para me alegrar o dia. Ao pensar na professora de matemática (que já deveria estar reformada) murmurei para Shadow.

– Bem, perder mais uma aula não me parece má ideia.

Ele olhou-me como se me repreendesse. Fiz má cara.

– Ok, ok. Ainda consegues ser pior que o meu pai.- ri-me.

Ao sair da sua cancela, Shadow olhou para o seu lado esquerdo, para uma cela vazia. Curiosa, dirigi-me a esta e abri a pequena porta, encontrando um homem a ressonar baixinho.

Cheguei-me ao pé dele, agachei-me, e toquei levemente o seu ombro.

– Zero!- chamei-o.

Sem resposta. Voltei a tocá-lo e desta vez movi um pouco o seu ombro.

– Zero!- chamei-o novamente. Ele, por sua vez, murmurou um “Mais cinco minutos” e virou-se para o outro lado.

Olhei para toda a extensão da cela. Ainda bem que ela estava impecavelmente limpa. Gostava de ver a reacção dele, se acordasse cheio de excremento de cavalo.

O relógio na parede do estábulo anunciou serem três e meia- a aula ia começar. Apressei-me.

– Acorda!- gritei-lhe, pontapeando o seu joelho esquerdo.

Ele, de rompante, abriu os olhos, colocou as mãos à volta do pobre joelho e queixou-se:

– AUCH, AUCH, AUCH!

Fitou-me e ao reconhecer-me a sua expressão de dor desapareceu. Uma expressão de admiração, saudade e talvez algum medo tomou conta da sua face. Milésimo de segundo depois, essa também desaparece, dando lugar a uma expressão impassível, sem qualquer emoção ou sentimento evidente.

– O que fazes aqui?- perguntou-me, olhando para o chão.

“O que fazia eu aqui?”. Que questão rude. Porque não poderia ele apenas exclamar “Oi, há uma semana que não nos vemos”, ou algo do género?

– A aula vai começar.- respondi-lhe, sem relatar metade da verdade.

Ele voltou a deitar-se e disse-me:

– Eu não vou.

– Porque não?- perguntei-lhe. Ele não me respondeu, estava a fazer-se de difícil o infantil!

Conseguia ouvir o meu pai a gritar-me “Ayame, os rapazes devem dar o primeiro passo porque têm p***. Porém, quando ainda são demasiado imaturos, as meninas têm de ser fortes, agir como se tivessem uma e darem elas o primeiro passo. Por vezes, as meninas têm de se comportar como homens.” Pai, vou agora mesmo fazer isso!

Se Zero queria ser infantil, então eu iria ser o dobro dele. Agarrei-lhe num braço e puxei-o até ao porão do estábulo.

– O que pensas que estás a fazer?- perguntou-me, enquanto ainda era arrastado pelo chão.

– Eu sei que matemática é uma seca mas já andas a faltar demasiado tempo.- suspirei.-Se eu tenho que aturar a bruxa da professora, tu também a tens de aturar!

Ele surpreendeu-se e sacudiu a minha mão, fazendo-me cair de cu no chão. Shadow, que via o espectáculo todo, exaltou-se parecendo que se ria de mim.

– Auch, isso não se faz!- exclamei.

Zero levantou-se do chão e voltou para a cela.

– Vai-te embora. Não há nada aqui para tu fazeres aqui.

Levantei-me do chão e voltei para a cela. Sentei-me perto do local onde ele estava deitado.

– Só me vou embora quando tu vieres comigo!- informei-lhe.

Ele suspirou.

– Idiota como sempre!- exclamou.

Tempo passou, e continuou, lentamente a passar, enquanto nenhum de nós murmurou uma palavra. O relógio anunciou quatro horas da tarde. Expirei auditivamente.

– Vai-te embora.- repetiu ele.

– Não.- disse eu.

– Sim.- replicou ele.

– Não.- repeti.

– Sim.

“Que conversa de doidos”, pensei.

– Porque queres que eu me vá embora?- gritei-lhe.

– Quero dormir!- gritou-me ele de volta. Senti, mais do que ouvi, uma nota aguda naquela fala. Ele estava a mentir-me.

– A verdade!- ordenei-lhe, gritando ainda mais alto.

Ele levantou-se, fitou-me e gritou-me como resposta.

– Porque não quero estar contigo!

Demorei um pouco a perceber o que ele tinha dito. Depois disso, uma dor atingiu o meu interior, mais forte até que a dor que ainda me afectava o rabo.

– Porquê?- murmurei, triste.

Ele voltou a deitar-se, ignorando-me. A resposta à minha própria pergunta veio à minha mente rapidamente.

– Eu não tenho culpa.- voltei a murmurar.

Zero não me queria falar por causa da minha família ser… bem como vocês já sabem que ela é (ou melhor dizendo, como a minha família foi)…

– Não me interessa que a culpa não seja tua.- respondeu.

– Então porquê…?

Levantou-se de novo, desatou a gravata que fazia parte do uniforme e atirou-a para um canto da cela. Senti a minha face a ficar quente. Cenários um pouco obscenos passaram pelo meu cérebro.

– O que estás a …?

Ele interrompeu-me, ao agarrar o colarinho da camisa branca e puxando-o para baixo, mostrando o pescoço e parte do peito musculado. Mas não era aquilo que ele me quera mostrar. Uma marca percorria todo o pescoço. Uma marca preto como se fosse um desenho.

Depois retirou uma arma das calças e mostrou-ma. O desenho na pistola era igual à que estava no seu pescoço.

– Esta é a Bloody Rose. Uma arma anti-vampiros e esta marca que aqui vês, tal como no meu pescoço, é a marca da mordedura de um vampiro.

– Uma mordedora?- perguntei. Nos filmes de terror, a única coisa que ficava num ser mordido por um vampiro eram dois pontos, como se tivesse sido picado por mosquitos, ou algo do género.

Ele deu-me um sorriso falso e como se lesse o meu pensamento, disse-me.

– Ficam assim se formos mordidos por um puro-sangue, as mordidas dos outros vampiros são iguais àquelas que vês nos filmes.

Suspirou.

– O que tenho eu a ver com isso?- perguntei-lhe.

– Foi a tua família que me fez isto.- confessou-me.

– O quê?- engasguei-me.

Ele, ao perceber o que eu tinha percebido, reformulou a frase.

– Pelo menos foi a gente parecida com a tua família que me fez isto.

Percebi o que ele estava a dizer. Ele estava a referir-se ao facto do meu pai, e talvez o meu irmão, ser puro-sangue…tal como quem o mordeu.

– Não podes pintar tudo com a mesma cor.- murmurei.

Ele não percebeu. Tentei explicar-me.

– Não podes pensar que só porque alguém te fez isso, que todos os vampiros puro-sangue são maus. Olha por exemplo para Kaname..

– Tu não conheces Kuran Kaname.- interrompeu-me.

– Sim, tens razão.- declarei.- Mas também tens de perceber que eu posso ter razão.

Ele voltou a fitar-me, procurando mais informações. Utilizei o meu pouco conhecimento de história.

– Nos humanos é igual. Há pessoas como Hitler, capazes de matar toda a gente por futilidade, e há pessoas como Madre Teresa de Calcutá que anseiam em ajudar as pessoas. Não é tudo escuro no nosso mundo.

Ele reprimiu, com algum custo, uma gargalhada.

– Não é assim tão simples.

Aquela conversa começava a enervar-me.

– Não te faças da vítima aqui.

Zero olhou-me confuso.

– Como?- perguntou-me.

–Tu estás aqui a falar destas coisas como se conhecesses tudo e a todos. Estás aqui como se fosses o único a sofrer com tudo isto. Como se fosses um bebe abandonado, que dá pena a toda a gente. Eu sou a verdadeira vítima aqui.

Surpreendido, Zero olhou para o chão.

– Tu não percebes…

Interrompi-o.

– Eu não percebo nada porque tu não me contas nada. Quero saber mais sobre ti, sobre a tua história, sobre a razão de seres tão fechado para as pessoas em ter redor…Mas tu não me deixas!

Envergonhada com aquilo que estava a dizer, percebi que ele também estava a ficar embaraçado com o que estava a ouvir.

– Tu soubeste quem eu sou e desapareceste.- confessei o quão triste eu estava.- Precisava de alguém que me ajudasse a sentir-me melhor com tudo o que se está a passar, mas tu não estavas lá para o fazer. Tu apenas, retiraste a tua mão do meu ombro com nojo, como se eu fosse algum tipo de aberração.

Comecei a chorar.

– Eu estive sempre do teu lado mas tu abandonaste-me! Achas que eu gosto de ser filha de vampiros?

Apanhei lágrimas que me corriam na face com a manga da minha camisola.

– Eu sou a vítima de tudo isto. Não tu!

Zero, ao ver-me daquela maneira, abraçou-me.

– Lamento muito, Ayame. Agi como um bebe chorão.- ouvi a minha gargalhada.

– Pois agiste.- concordei.

Ele largou-me.

– Então…- começou ele.- Hitler e Madre Teresa, ah? Grande combinação! Davas cá uma casamenteira!

Demos, os dois, gargalhadas até, por fim, percebermos que a aula de matemática iria terminar em cinco minutos.

– Estamos fritos!- confessei.

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