Um dia, ainda durante o primeiro mês de namoro, Félix dormia tranquilamente na casa do Carneirinho até que a voz dele o despertou...

— Acorda, Félix.

— Hã? Hein? – Félix tinha muito sono.

— Acorda!

— O que... o que foi?

— Ouvi um barulho.

— Barulho?

— Lá na sala.

Félix virou-se na direção do namorado, tentando abracá-lo.

— Tá bom... dorme, Niko. Dorme... – E voltou a dormir.

— Não Félix, acho que tem ladrão na casa!

Félix continuou imóvel, parecia ferrado no sono. Niko balançou o braço dele. - Acorda, Félix! Você ouviu que eu falei? - Não adiantou muito. Félix mantinha os olhos fechados e estava imóvel, mas disse:

— Tem ladrão na casa?

— Acho que sim!

— Vai lá ver, Carneirinho. Vai ver como ele é.

— Oi?

— Se for gato, gostoso, chama pra um ménage.

Niko não sabia se ria, ou se brigava com o companheiro. Chacoalhou ele com mais força. - Félix!

— Hã, o que foi?

— É sério. Acho que tem alguém lá na sala.

— Estou com sono, Niko...

— Félix... – Niko chacoalhou ele mais vigorosamente para que acordasse de vez.

— É sério isso? Você ouviu barulho lá na sala?

— Sim!

— E o que voce quer que eu faça? Quem luta artes marciais aqui é você.

— Sinceramente, Félix! E se ele estiver armado? O que adianta eu saber lutar?

— Humm, armado? Bom, se ele estiver armado, aí você me chama para avaliar o tamanho da pistola. – Félix riu. Levava, como de hábito, a situação na brincadeira.

— Você vai fazer piada até numa hora como essa? - Niko perdeu a paciência, começou a levantar da cama - Quer saber? Eu vou lá. Vou sozinho.

Félix fez um esforço, abriu os olhos, levantou a cabeça e ficou só observando o Carneirinho, que recolocava o pijama. Ele não acreditava na possibilidade de alguém ter conseguido invadir o imóvel. Semanas atrás ele havia se inteirado sobre como funciona o sistema de alarme da casa e ele mesmo verificava que estava ligado, toda noite que dormia lá, antes de irem para o quarto.

— Você ouviu coisas, Niko. Ou foi a Adriana, porque a casa está trancada.

— Adriana na sala a essa hora? Só pode ser um ladrão. Eu ouvi sim, barulhos. Não quer acreditar em mim? Ok.

— Pode ser um fantasma então...

Niko não respondeu mais uma brincadeira. Terminou de se vestir e deu a decisão.

— Eu vou lá falar com ele. Mesmo que nao seja gato, vou me oferecer pra ele.

— Como é que é?

— Sim, é melhor assim. Dou dinheiro pra ele, transo com ele se ele quiser e ele vai embora feliz e satisfeito deixando a gente em paz. Assim as crianças e a Adriana ficam em segurança. Farei isso pela familia.

— Que bobageira é essa, criatura?

— É isso sim. E espero que ele esteja armado. Armado com uma pistola maior que a sua. Uma bazooka de preferência!

Niko já quase saía do quarto quando Félix, como um raio, levantou da cama, foi até ele e segurou ele prelo braço. Na dúvida, era melhor não arriscar. Vai que tinha mesmo algum estranho na sala.

— Pera lá Carneirinho, acabou a brincadeira. Time out!

Começaram então a discutir em voz baixa. Niko dizia que tinha a certeza de ter escutado barulhos estranhos, chamou Félix mas ele levava na brincadeira, então falou aqueles exageros para ver se ele acordava de vez. Mas decidiu que resolveria sozinho. Félix dizia que estava com sono, dormindo, por isso custou a entender que era sério. Além disso, ele acreditava que Niko estava enganado, que não tinha entrado ninguém na casa por causa do sistema de alarme. Mas que, em todo caso, ia verificar.

— Félix... vai dormir. Deixa que eu resolvo.

— Não senhor, se você vai, eu vou. Mas ainda acredito que você só ouviu coisas..

— Não precisa ir comigo, já que eu só ouvi coisas...

— Você não vai sozinho, claro que preci...

E foram interrompidos por um barulho que veio da sala. Parecia algo de vidro que havia caído e se espatifado no chão, foi um estardalhaço bem alto.

— Pelas contas do Rosário! Tem mesmo alguém aí.

— Viu? Eu não disse?

Eles discutiram mais um pouco sobre quem iria até a sala, quem devia ficar e chamar a polícia, quem ia na frente, quem ia atrás... Félix acabou fazendo valer a sua idéia, de que ele iria na frente e acenderia a luz para pegar de surpresa quem quer que estivesse lá.

Niko ficaria na retaguarda. Caso fosse mesmo um bandido, ele correria e se trancaria no quarto de Fabrício, de onde chamaria a polícia enquanto faria um escândalo, chamando a atenção dos vizinhos, gritando pela janela.

Então Félix foi na frente. Chegou na sala e viu o vulto de alguém bem magro, parado perto da porta. Ele acendeu a luz, olhou bem para o homem que estava ali, observando se carregava alguma arma, então gritou:

— Ele está desarmado! Pega ele, Niko! Pega ladrão! Dá um golpe nele, faz ele rolar!

A criatura ajoelhou-se no chão - Pelo amor de Deus, não sou ladrão não! – tentava se explicar – Sou eu, seu Niko!

Niko não teve nem tempo de chegar perto e ver quem é, porque percebeu que, atrás dele, vinha alguém segurando algo, que parecia um pedaço de pau, um taco de beisebol, quem sabe um cabo de vassoura... Ele virou-se para se defender e tomou um susto.

— Calma seu Niko, sou eu!

Era Adriana que, de fato, carregava uma vassoura. E lá na porta era o quase namorado dela, um dos seguranças do condomínio de casas.

Adriana vinha aparamentada para limpar os cacos de vidro espalhados pela sala. Ela explicou que o rapaz, que vinha tentando conquistá-la, resolveu surpreende-la no meio da noite, trazendo flores e uma surpresa que estava lá fora, na frente da casa. Ela havia ido pegar um vaso para colocar o arranjo, não quis acender a luz, tropeçou e o vaso quebrou-se no chão. Pediu desculpas. Sabia que era tarde, tentou não fazer barulho...

— Mas esse menino aí, o Clébis, vive me rondando, seu Niko. Agora veio com essa surpresa que ele fala que tá lá fora. Tive que abrir a porta da frente por isso... o senhor me desculpa, mas ele não sai do meu pé!

Niko riu. Félix estava sério e achou aquilo um absurdo, pensava com ele mesmo: - Onde já se viu, no meio da noite, assustando o Carneirinho, me atrapalhando o sono, me tirando da cama... Félix ensaiava fazer um sermão.

Enquanto ele elaborava o que ia dizer, Niko perguntou ao rapaz:

— Que surpresa é essa, Clébis?

— Uma serenata, seu Niko.

Uma serenata!— Niko e Adriana pensaram enquanto se olharam sorrindo. Nesse mesmo momento Félix tinha pronto o discurso de reprovação e começou falando alto:

— É o Apocalipse! Que absurdo!

Só que, ao mesmo tempo, Niko e Adriana derretiam-se:

— É uma serenata! Que romântico! - E saíram em direção à porta entre comentários do tipo “que fofo”, “Awwnnn...”, “que lindo”...

Félix não teve chance de reprovar, reclamar, palestrar, nada. Ficou lá em pé, calado. E ficaria sozinho caso Niko não voltasse para puxá-lo pela mão:

— Vem, Félix! Vem logo!

Ele respirou fundo, e foi.

...

Lá fora, Niko, Félix e Adriana sentavam na escada da entrada da casa, enquanto Clébis cantava e tocava o violão acompanhado de mais três amigos fazendo coro.

Ai, dindi, Se um dia você for embora, me leva contigo dindi. Fica dindi. E as águas deste rio onde vão eu não sei. A minha vida inteira esperei, esperei, por você meu dindi.

Niko agarrou o braço do namorado e apoiou a cabeça no ombro dele.

— Eu gosto de Bossa Nova... é tão romântico! Não é Félix?

— É.

— Que foi, amor? Não está gostando?

— Sim, Carneirinho. Só estou preocupado porque aposto que você vai querer uma serenata também.

— Ai Félix... - riu

— Confessa que você ia adorar! O problema é que eu não canto tão bem... tão bem quanto o Clébissss.

— Você não precisa cantar. Você já me encantou.

— Niko...

— Mas se você quiser, cantar no meu ouvido, eu vou adorar ouvir.

Félix então ficou pensativo por alguns minutos enquanto a serenata continuava. No intervalo entre uma música e outra ele fez um pedido, para que cantassem uma canção específica. E sentado ali, abraçando o Carneirinho, ele cantou baixinho no ouvido dele.


É, só eu sei, Quanto amor eu guardei, Sem saber que era só prá você
É, só tinha de ser com você, Havia de ser prá você, Senão era mais uma dor, Senão não seria o amor, Aquele que a gente não vê
O amor que chegou para dar, O que ninguém deu pra você
É, você que é feito de azul, Me deixa morar nesse azul, Me deixa encontrar minha paz, Você que é bonito demais, Se ao menos pudesse saber, Que eu sempre fui só de você, Você sempre foi só de mim...

Quando a canção terminou, não podia ser diferente, Niko estava emocionado. Félix sorria e brincava para disfarçar.

— Eu disse que não canto, Carneirinho. Mas eu encanto, fala sério! Sou en-can-ta-dor!

Eles pediram licença e voltaram para o quarto. A cantoria continuou lá fora por um bom tempo ainda. A vizinhança nem reclamou, até o casal da residência da frente estava na janela, namorando e acompanhando as músicas.

De lá do quarto eles também foram embalados pelo som da Bossa Nova enquanto se entretinham com outras atividades até dormir.

...

O namoro de Adriana não deu certo. O segurança cantava bem, mas ela descobriru que ele encantava outras moças pela vizinhança.

E Félix adorou cantar. Se desinibiu mesmo achando que não era bom cantor e passou o dia cantarolando para Niko, desde quando acordaram, durante o dia no telefone... até a noite, quando foi surpreendido. Niko decidiu cantar para ele. Félix derreteu-se todo e teve certeza que o bom cantor entre eles era o Carneirinho. Decidiu que não cantaria mais mas Niko teve que cantar várias músicas românticas à pedido do namorado. Ele não reclamou nem um pouco.

...

Fim de cena

...