Cenas Inéditas Feliko

Com que roupa que eu vou?


— Nem se atreva a voltar pra sua casa. Hoje você dorme aqui de novo.

Foi com essas palavras que Niko decretou: aquela seria mais uma noite em que Félix dormiria com ele. O Carneirinho o puxou pela mão com pressa até seu quarto.

No momento em que chegaram lá, enquanto tiravam a roupa um do outro, Niko rasgou a blusa de Félix quase em desespero. Eram muitos botões pequenos para que um par de mãos aflitas abrisse um por um! Então ele foi abrindo, se atrapalhando, daí foi puxando, puxando, até rasgar com aquela selvageria toda, que os apaixonados tem em certos momentos. Embora olhando ninguém acredite, que um carneirinho manso como aquele seja capaz de tal coisa, há momentos em que Niko se transforma, e aquele era um deles; afinal, lá estava em sua frente o homem pelo qual ele havia esperado tempo demais.

Que a roupa havia sido rasgada, naquele momento eles nem se deram conta. Nada era tão urgente quanto colar o corpo no do outro e sentir o calor, os pelos, o toque na pele, o roçar dos sexos excitados. As roupas precisavam sair com pressa, e saíram; e assim a noite foi toda uma loucura, até que dormiram.

O dia amanheceu, levantaram preguiçosos, entraram no chuveiro e, alguns carinhos depois, foram se arrumar para começar o dia.

Foi aí que Félix deu um grito no quarto, enquanto recolhia suas roupas que estavam espalhadas pelo chão.

— Niko! Pelos véus de Salomé!

— Que foi, Félix?

— Olha o estado da minha camisa! Parece que um gato selvagem enfiou as garras nela...

— Pois é... fui eu... ontem...

— É claro que foi você! Não só eu me lembro disso, como tenho certeza que não entrou nenhuma pantera ou tigre aqui durante a madrugada.

— É... desculpe... na hora eu nem... nem pensei. Eu... fiz sem querer. Desculpe, Félix!

— É uma camisa italiana, carérrima! Quer dizer, era uma camisa porque agora parece um trapo!

Niko olhava para o chão, cabisbaixo, enquanto coçava a cabeça sem graça.

— Eu sinto muito...

— Você sente muito... tá bom. Mas isso vai fazer com que ela se remende, milagrosamente? Não vai!

— Você também rasgou minha roupa, Félix...

— Mas não tem nem comparação! A sua era uma camiseta de malha... não custa nem um décimo do que custa uma camisa minha. É o apocalipse! Olhai pra isto, Cristo!

Niko não disse nada, apenas sentou-se na cama. Ele não teve nenhuma intenção de causar um aborrecimento para Félix. Na noite anterior, quando o tesão falou mais alto, Niko até achou interessante que um houvesse rasgado com fúria a roupa do outro. Agora se sentia envergonhado e triste. Olhava para o chão, desolado.

Então Félix, que até então esbravejava, reclamando por ter perdido a camisa, se deu conta que o Carneirinho havia ficado magoado. Ele se lembrou de uma discussão que tiveram um dia, quando Niko jogou em sua cara: "a única coisa que te faz chorar é perder um de seus terninhos de griffe".

Logo, Félix se deu conta de que uma camisa importada e de marca, por mais cara que tivesse custado, não tinha valor nenhum perto dos momentos que passaram. Se a felicidade deles não tinha preço, e para Félix não tinha mesmo, para que estraga-la por causa de algo material? Era muito mais importante o que sentiam um pelo outro, que fez Niko rasgar a peça de roupa em um momento alucinado de desejo, do que qualquer objeto de valor. Ele até podia comprar uma camisa nova mas jamais compraria o que Niko sente por ele. Além disso, no seu closet na casa de sua mãe, haviam outras tantas camisas de igual valor penduradas, enquanto o sentimento que Niko tem por ele é único. Daí ele concluiu sabiamente: - eu sou um bobo mesmo.

Aproximou-se de Niko, sentou na cama ao seu lado e pegou a mão dele.

— Carneirinho...

Levantando a cabeça sem dizer nada, Niko o olhou nos olhos. Félix prosseguiu.

— Sinceramente? Eu não sei onde estou com a cabeça pra reclamar de uma roupa rasgada. Eu sempre quis alguém... alguém não, um homem... Eu sempre quis um homem que me quisesse tanto a ponto de me rasgar inteiro!

Niko sorriu. Ele, antes mesmo que Félix completasse o que ia dizer, já sabia o que ia dentro daquela cabeça.

— Daí eu encontro esse homem e... olha eu aqui reclamando! O que é uma camisa diante de tudo que aconteceu nessa cama?

— Realmente não é nada. - Niko olhava para ele com um enorme sorriso no rosto. Sorriso de quem compreende, e de quem se dá conta que o outro, por si só, cada dia mais, percebe e corrige os próprios erros.

— Porque eu sou assim, Niko?

— São só velhos hábitos, Félix. Com o tempo, você abandona eles.

— Só espero que você me ature enquanto eles durarem.

Se abraçaram, beijaram-se, Félix pediu mil desculpas enquanto Niko repetiu centenas de vezes que o entendia, que estava tudo bem. Até que o momento foi interrompido quando Félix se deu conta de que não teria nada o que vestir naquela manhã.

Ele tinha um compromisso cedo, com o promotor que estava cuidando do caso de Aline, e não gostaria de usar uma camiseta de malha que Niko queria emprestar. Todas as camisas sociais de Niko ficariam enormes nele E não havia tempo suficiente para ir até a casa de Mamy Poderosa buscar outra.

— Bom Félix, tem uma roupa aí que é quase do seu tamanho. Não é minha. Mas está limpa, veio da lavanderia e está aí até hoje.

— Carneirinho... não me diga que...

Sim, era roupa do Eron. Aliás era todo um conjunto de terno, camisa e gravata que o ex companheiro de Niko havia comprado e mandado lavar e passar na tinturaria antes de usar. Só que, quando entregaram, ele já havia ido embora.

— E você tá guardando isso aqui pra que, posso saber?

— Félix, não estou guardando. Apenas nem lembrava que isso estava aí. O último mês foi tão corrido, tanta coisa aconteceu... eu lá vou me preocupar com roupa de Eron?

— Hum... gostei.

Sendo assim, mesmo à contragosto, Félix experimentou a roupa, que serviu. Decidiu usá-la, porém deixava bem claro o quanto estava infeliz com isso.

— Aquela lacraia não tem gosto nenhum... Fora que essa marca aqui não tem a mesma qualidade que a minha roupa...

E assim, reclamando como de hábito, Félix tomou o café da manhã com Niko e Jayminho, que riam dele o tempo todo.

— Se eu encontro com aquele inseto rastejante na rua, vestido com um terno igual, eu vou ter um AVC... Quem manda se dar com carneiros que parecem panteras, felinos ferozes que rasgam camisas...

— Que felinos ferozes, tio Félix?

— Não é nada não Jayminho, foi um documentário que eu assisti ontem... sobre animais selvagens. E não me chama de tio... só de Félix, criaturinha...

Félix então partiu. Ele não teve outra opção senão ir até o compromisso que o esperava usando o terno que havia sido comprado, e esquecido, por Eron.

No final da manhã, ele passou pelo restaurante japonês antes de voltar para casa. Enquanto almoçava com o Carneirinho, eles conversavam.

— Félix, você ainda está chateado porque rasguei sua camisa?

— Carneirinho, não diga isso! Não estou chateado. Eu te falei... eu queria sim, que um dia alguém rasgasse minha roupa desesperado de tanta... tanta vontade de ter meu corpinho!

— Bom, esse dia chegou.

— Só estou chateado por estar vestido igual aquela lacraia. Eu devo ter feito escova progressiva no Sansão pro Edgar quase ter me chamado de "senhor Eron".

— Ele não chamou...

— É mas podia ter chamado.

— Tá bom Félix... Olha, vai lá dentro do escritório eu tenho uma surpresa pra você. Está em uma sacola de loja em cima da mesa.

— Sacola de loja? O que é, um presente?

— Eu sabia que você estaria incomodado com essa roupa, então comprei uma nova. Vai lá e se troca.

— Carneirinho! Não acredito. Você é tão bom pra mim!

Félix levantou da mesa animado, em um pulo só. Tal qual uma criança ele foi correndo até o escritório e trocou de roupa. Depois voltou para a mesa.

— Você está lindo, Félix!

— É... bom, eu sou mesmo lindo. Mas... tem certeza... ficou bem em mim?

Niko havia comprado para Félix um blusão de algodão de linho fino e branco. Algo totalmente diferente das roupas que o namorado usava. Para combinar, uma calça cáqui, leve e macia.

— Ficou ótimo! Você está mais suave, casual e descontraído.

— Suave, casual e descontraído. Tudo que eu nunca fui, Niko!

— Pois quer saber de uma coisa? Eu acho que você é sim, tudo isso.

Félix ficou em silêncio e voltou à comer. Niko imaginou que ele não havia gostado da roupa. Perguntou algumas vezes e Félix garantiu que gostou, mas Niko não acreditou na resposta.

— Olha Félix, faz assim. Não precisa usar. Um dia, quando a gente viajar... sei lá, pra um lugar mais quente, uma praia quem sabe. Aí você usa. Tá?

— Carneirinho... para te falar a verdade... é a primeira vez que visto algo assim. Não me lembro se um dia eu vesti coisa semelhante. Talvez, há muitos anos. Mas sabe... eu até que gostei. Gostei de me sentir mais leve... como você falou... suave, casual e descontraído. Gostei, Niko. De verdade. Obrigado.

Félix terminou com um sorriso, um sorriso exatamente igual à roupa: suave, casual e descontraído. O Carneirinho apenas sorriu de volta. Era uma sensação maravilhosa ver a transformação de Félix bem em sua frente, dia após dia, um pouquinho de cada vez.

— Niko, eu gostei tanto que nunca vou usar quando for dormir na sua casa.

— Por que?

— Por causa da pantera selvagem que se esconde lá no seu quarto e adora rasgar camisas!

— Félix... olha, sério, por falar nisso eu andei pensando. Seria bom você pegar algumas roupas suas e deixar lá em casa. Assim, se acontece uma emergência, você tem o que vestir.

— Emergência... sei...

— Ah, Félix, ou mesmo pra você trocar quando tomar banho lá. Leva umas camisas, calças, boxer, meias...

Félix achou graça e completou:

— Ternos, gravatas, sapatos... meus perfumes, cremes...

Mas Niko falava sério e continuava:

— Pode levar o que você quiser! Livros, seu shampoo, porque você reclamou do meu...

— Carneirinho, stop! Isso é um convite, para que eu me mude para sua casa?

— Não... Félix... imagina... eu apenas acho... quer dizer, veja, já tem uma escova de dentes sua lá... então...leva também pijama, chinelo... - E Niko continuou a lista de tudo que Félix poderia e deveria levar.

Não era bem um convite. Mas não deixava de ser. Félix ria enquanto Niko explicava que tinha espaço de sobra no closet, desde que passou à morar sem Eron, e que a pia do banheiro era tão grande, não ia incomodar se Félix decidisse levar alguns itens dele de higiene pessoal e deixar lá.

— Aparelho de barbear, creme... - O Carneirinho continuava a lista enquanto Félix apenas o observava rindo.

Niko não escondia que, se dependesse da vontade dele, Félix já morava em sua casa há um bom tempo. E, quem sabe, a vontade de Félix era essa também. Se não fosse naquele momento, em breve, viria à ser.