Félix trabalhava concentrado, organizando as contas dos restaurantes, quando Niko, que tinha a tarde de folga, se aproximou curioso.

— O que está fazendo, Félix?

Sem tirar os olhos do notebook, nem parar de digitar, ele respondeu:

— Picando salsinha... aqui nessa Tábua dos Dez Mandamentos moderna.

Niko riu da piada e começou a remexer os papéis que estavam em cima da mesa. Pegou um caderno de anotações e deu uma olhada, largou e começou a mexer na pilha de notas fiscais. Félix continuou olhando o notebook, mas interrompeu a digitação.

— O que você quer, Carneirinho?

— Quero ajudar.

— Ajudar no que?

— Sei lá... ajudar. Conferir extratos, somar as horas dos funcionários, analisar propostas de fornecedores... não sei.

— Isso não é trabalho seu.

— Tá, Félix... mas se eu ajudar, você termina mais rápido e aí podemos fazer outra coisa antes das crianças voltarem...

— Carneirinho... – Félix riu. – Você me ajudar aqui... melhor não. Eu prometo que termino rápido, tá? Mas isso se você não atrapalhar. – Enquanto falava, ele usava o scanner, precisava mandar algumas informações para o escritório do contador ainda naquele dia.

— Atrapalhar? Eu quero ajudar, amor...

— Por um acaso eu ajudo a cortar peixe?

Niko não respondeu, nesse momento estava entretido com a fatura do mês anterior do cartão de crédito da empresa. Não demorou muito para que ele se assustasse com o valor devido, mais alto que o normal.

— Minha Virgem! O que aconteceu mês passado que as despesas aumentaram tanto?

— Carneirinho, no dia que eu me meter na cozinha do Gian e começar a filetar salmão ou enrolar makimonos, aí sim você vem cuidar das contas. - Gentilmente, Félix retirou das mãos do companheiro a fatura do cartão e colocou de volta na mesa, sob outros papéis. Como quem tenta esconder algo. - Deixa que eu resolvo isso, vai ocupar seus cachinhos alisados com outra coisa, vai.

Mas de nada adiantou, pois Niko estava determinado a entender o que acontecia.

— Não, Félix, me dá isso aqui. – Visivelmente preocupado, ele alcançou a fatura e voltou a analisá-la. - Tem algo estranho, parece até que o Gian compra baleias, ao invés de atum!

— Boa piada, muito boa. Mas deixa que das contas cuido eu, criatura.

Félix tentou, novamente, retirar o papel das mãos dele, só que Niko não deixou. E, uma vez que o companheiro continuava determinado a debulhar a tal fatura, Félix desistiu de continuar a fazer qualquer outra coisa. Abaixou a tela do notebook, desligando o aparelho, revirou os olhos e passou o dedo na sobrancelha, enquanto Niko fazia uma pergunta atrás da outra.

— Foi gasto com manutenção? Não quebrou nada na cozinha, que eu saiba. Será que foi o material de limpeza? Não vai me dizer que você comprou aqueles importados, Félix! Foi despesa médica? Algum acidente com um funcionário e vocês esconderam de mim, pode me dizer.

— Pára, Carneirinho... vai ficar tentando adivinhar o que foi? Esquece isso...

— Não Félix, esse valor não tá batendo com o do mês passado!

— O que não tá batendo são seus neurônios! Niko... para, deixa isso, vai bater outra coisa, vai...

— Félix!

— Escuta aqui, até parece que você não confia em mim! Será que contei errado os animais da Arca de Noé, para ter que sofrer com a sua desconfiança?

Félix tentou tirar, mais uma vez, a fatura das mãos do companheiro, mas ele não deixou.

— Não fala isso, Félix! É claro que eu confio. Só queria saber o que acontece...

— Que saber, o que... Você sabe tudo, quando o assunto é preparar sashis e sashimis, mas aqui é meu território. Quem sabe o que acontece aqui sou eu. Vai lá... vai fazer um café pra nós, que tal?

— Mas custa me explicar?

— Custa. Olha o tempo que estou perdendo. Você não quer que eu termine rápido? Pois parei de trabalhar desde que você veio aqui fazer o abelhudo.

— Félix... falemos sinceramente, parece até que você está escondendo algo de mim.

— Escondendo? Eu? Sinceramente... escondendo...

Niko retomou a leitura da fatura, prestando atenção, ítem por ítem, no nome dos estabelecimentos comerciais onde havia sido feita cada compra.

Daí que, finalmente, o carneirinho curioso identificou o que havia de diferente na despesa mensal dos restaurantes. Os débitos mais altos foram feitos em dois lugares, que tinham nomes bastante curiosos.

— Félix... o que significa “Paraíso do Prazer” e “Ilha da Fantasia”?.

Era chegado o fim da linha para Félix, ele não teria outro jeito senão contar para Niko o que não queria. Ele tentou esconder o mais que pode, não pensava que Niko fosse mexer nas contas do restaurante. Mas aconteceu. Agora era hora de contar a verdade.

— Aff... não consigo mesmo esconder nada de você, hein? Carneiro curioso, chega aqui e vai fuçando, fuçando ate encontrar o que não deve...

— Como assim esconder? – O fofo e doce carneirinho começava a transformar-se na mais geniosa das criaturas. – Eu não devia encontrar? Por que não devia? Você está escondendo algo de mim, Félix? Fala!

— Estou sim, pelo menos estava. Mas fazer o que... você me pegou. Não com as calças na mão, infelizmente, mas me pegou.

— Do que você tá falando, hein? Explica logo! – Mesmo sentado na cadeira, ele bateu o pé no chão enfurecido.

— Carneirinho... tenho uma confissão a fazer.

— Félix, você está me assustando... o que são esses lugares... não vai me dizer que...

— Que tem a ver com sexo? Pois é... tem sim.

Diante de tal afirmação, Niko engoliu em seco. Tentou segurar a emoção que nem ele mesmo sabia o que era... uma mistura de raiva com tristeza, talvez. Mas era mesmo um pouco de decepção com muita incredulidade.

— Fé-Félix... “Paraíso do Prazer” é um motel, não é? Não acredito... mas é?

— Não, Niko. Claro que não.

Niko ficou aliviado até Félix completar:

— É uma sex shop. Comprei algumas novidades.

O Carneirinho então chegou à outra brilhante conclusão:

— É uma sex shop, ok. Você foi na sex shop e depois foi na “Ilha da Fantasia”.Este sim é um motel, não é? Félix, você fez compras na sex shop e depois foi encontrar alguem lá nessa tal... ilha?

— Fui sim. Fui encontrar alguém. Eu confesso.

Niko travou, parou. Por alguns segundos, olhava incrédulo para o companheiro. Não sabia mais o que perguntar nem o que dizer... apenas conseguiu falar algumas palavras, antes de se entregar à emoção.

— Félix.. eu não acredito... eu... – Os olhos do Carneirinho encheram-se de lágrimas.

Félix, a princípio, tinha ficado triste, porque Niko acabou descobrindo o que ele queria esconder, mas depois achou graça do ciúmes infundado e falava com um esforço enorme para não rir. Mas, ao ver que Niko não sabia que era uma brincadeira, ele decidiu acabar com qualquer dúvida do companheiro. Rindo, ele abraçou o Carneirinho enquanto falava:

— Vem cá, Niko, Deixa de ser bobo, criatura. Fui encontrar alguém sim...fui encontrar uma vendedora! Você cai em todas...

— Félix, não tem graça...

— É Niko, uma vendedora. “Ilha da fantasia” é uma loja de fantasias, eu fui pegar uma encomenda que fiz por telefone. E “Paraíso do Prazer” é sim, uma sex shop.

— Você... você está escondendo alguma coisa de mim? Você está tramando algo... algo com alguém? Pode falar, Félix, seja sincero... eu serei forte.

Félix gargalhou.

— Carneirinho! Para! Estava sim, escondendo algo. Era uma surpresa. Uma surpresa para você! Que data especial acontece na quinta-feira, daqui duas semanas?

Ainda um pouco abalado, e quase choroso, Niko pensou e não conseguiu associar a data com o que havia de especial. Félix reavivou sua memória.

— É dia 28 de janeiro. Aniversário da nossa primeira noite juntos!

Félix contou que pensou em comemorar com algo diferente. Ainda na época do Natal, aproveitou e fez as compras na sex shop e na loja de fantasias. Usou o cartão da empresa porque Niko pouco olhava as faturas, quase nunca mexia nas notas, era tudo controlado por Félix.

— Achei que corria o risco de você descobrir se eu comprasse com o cartão da conta pessoal, pois temos conta conjunta, você ia acabar vendo a movimentação no site do banco. Já nas contas do Gian... eu pensava que você nunca ia meter o nariz... esse narizinho pequeno que você tem. Pequeno mas capaz de farejar tudo que eu faço!

Niko finalmente sorriu, aliviado e com vergonha de ter imaginado coisas. Porém,estava muito mais curioso do que antes. E quis saber o que Félix havia comprado. Como era uma surpresa, o companheiro se negou a contar. Niko insistiu.

— Ah, Félix... você não acha que eu mereço saber depois do susto que tomei?

— Niko... comprei gel... um massageador... uma máscara do Darth Vader...

— Oi?

— Ai, pronto... falei. Era surpresa, mas você é mais curioso que o Fabrício! Sinceramente... acabei falando o que não devia...

E Félix desistiu. Tirou de dentro do scanner e entregou ao Carneirinho a nota fiscal da sex shop e da loja de fantasias, deixando ele saber de tudo.

Entre camisinhas fluorescentes, que brilham no escuro, gel lubrificante, que vem em frasco com formato de nave espacial, e um par de algemas de Soldado Imperial, haviam outros itens. Mas o que chamou mesmo a atenção foram as fantasias de Darth Vader e aprendiz de Jedi.

— Nem precisa dizer quem vai ser o que nessa história, Félix...

Os dois riam enquanto Niko lia as notas e Félix voltava ao trabalho no notebook. Até que um outro ítem chamou mais a atenção ainda.

— Sabre de Luz “Prazer nas Estrelas”, multi vibracional, ajustável, com sons variados, multicolor, a prova d’água... Félix, isso é o que estou pensando?

Félix sorriu. Sem tirar os olhos do laptop e nem parar de digitar ele disse: - Vou te levar pro lado da Força que eu quiser com esse sabre, Carneirinho. Você também pode me levar, eu deixo. Aliás, eu também quero.

Eles riram. Félix o encarou com um sorriso, piscou o olho e voltou a trabalhar. Niko estava mais do que curioso, estava atiçado, aceso.

— Amor, me mostra hoje, esse sabre?

— Não, senhor. Só no dia 28. – Félix digitava, com os olhos presos na tela do notebook.

Niko ficou contemplativo, observando o companheiro que havia lembrado da data especial, preparado uma surpresa e ali estava trabalhando, pela empresa que, já há um bom tempo, pertencia aos dois. Ele não fazia ideia de como pode sentir ciúmes, imaginando coisas que ele tinha certeza não aconteceriam. Então, manifestou-se.

— Félix... me desculpe.

— Desculpar o que?

— Fiquei aqui bisbilhotando, acabei estragando a surpresa.

— Bobagem. Desculpa eu, que deixei você pensar besteira e quase voaram plumas pra cima de mim.

— Eu não tinha nada que xeretar aqui. Era melhor deixar você trabalhando em paz, talvez já tivesse terminado...

— Você só quis ajudar, você é assim, fazer o que...

— Félix, eu prometo que nunca mais vou interferir no seu trabalho.

— Tá bom.

— Aconteça o que acontecer, eu não vou me meter, nem reclamar. Prometo.

— Tá bom, criatura!

— Afinal essa é a sua parte na empresa. Já a parte dos peixes, cuido eu.

Félix não disse mais nada, apenas balançou a cabeça como quem concorda.

— Eu vou ficar aqui quietinho... – Niko falava entre pausas. - Vou ficar só vendo você trabalhar... - Mas não ficava em silêncio, como ele mesmo prometia. – E quando você terminar a gente vai...

— Niko! Pelas contas do Rosário, sinceramente... daqui a pouco faço algo errado.

Niko levou a mão ao rosto, tapando a boca, para que ele mesmo tivesse a certeza de que não falaria mais nada. Félix agitou-se.

— Que Carneirinho inquieto! Eu já estou terminando! Só falta mandar um e-mail para a secretária do contador, ele precisa ver o extrato bancário, extrato do cartão... esse que você viu. Acabou de chegar aqui e preciso mandar pra ele... eu escaneei e estou enviando.

— Félix, eles vão ver essa despesa enorme com o “Paraíso do Prazer” e “Ilha da Fantasia”!?

— E daí, Carneirinho? Eles nem vão saber o que significa, nem o que comprei.

— Você não mandou as notas não, né? Porque elas estavam dentro do scanner.

Foi aí que Félix parou e pensou na possibilidade de ter cometido um engano. Quando Niko entrou no escritório, Félix estava com as notas fiscais na mão, as notas da sex shop e da loja de fantasia, que discriminavam todos os produtos comprados. Para enconder do Carneirinho, ele colocou dentro do scanner. Daí Niko encontrou em cima da mesa a fatura do cartão, o que deu início a toda a conversa deles.

Agora Félix pensava consigo mesmo se, por um acaso, ou por causa de toda a distração, havia cometido um engano. Será que ele acabou escaneando as notas, ao inves da fatura, e enviou ao escritório de contabilidade o que não devia? Ele só saberia se abrisse o e-mail, que acabara de enviar, para ver o que estava em anexo. Ele viu, Niko aproximou-se da tela e viu também. Eram as notas.

— Félix, não acredito.

— Pois é...

— Você enviou pra secretária, que depois vai repassar pro contador, a lista de produtos que adquiriu na sex shop?

— Pois é, Niko.

— Não creio! Ela vai achar que somos dois pervertidos por mandar isso pra ela. E o que vão falar da gente?

— Para a sua informação, produtos de sex shop não são armas ou nada ilegal, tá? O que tem de mais?

— Como, assim o que tem de mais? É a nossa intimidade, não se anda por aí anunciando o que se faz na cama, o que se usa...

— Carneirinho, a culpa é sua.

— Minha?

Os dois começaram a discutir sobre de quem era a culpa. Félix argumentava que Niko não devia ter entrado no escritório querendo ajudar no que não sabia, e Niko começou a listar uma série de coisas que Félix devia fazer para não se equivocar, a começar por não usar o cartão da empresa para fazer compras daquele tipo.

Félix cerrou os olhos, parecia ofendido.

— Mas... mas, pelas contas do Rosário... quem foi que acabou de prometer que nunca mais ia dar palpites no meu trabalho, hein?

— Não daria, se você não se distraísse e enviasse anexos errados por e-mail.

— Já falei, a culpa foi sua, que me distraiu.

— Quem mandou usar o cartão da empresa pra comprar esse tipo de coisa?

— Eu queria fazer uma surpresa, criatura! Olha, Niko... você está... está me tirando do sério.

— Ah é, estou te tirando do sério? Vai fazer o que, me punir? Me bater com o tal Sabre-vibratório-multicolorido? Me levar pro seu lado da Força?

— Pois eu devia, devia pegar lá onde escondi e usar em você agora, te dar um corretivo!

— Pois tenta. Tenta que eu te enfrento com o meu sabre.

Félix parou e pensou.

— Que sabre, Niko? Você também comprou um?

— Não comprei não, Deus que me deu. Me encontra lá no quarto que eu te mostro. E pra sua informação, as crianças chegam em uma hora.

Niko saiu em um pé só, e rindo.

Félix tambem deu risada, desisiu de trabalhar, pelo menos naquela hora. A fatura ele enviaria mais tarde. Decidiu que não ia mesmo ser possível guardar a supresa até o dia do aniversário. Ele desligou o laptop, foi até onde escondeu o “Sabre de Luz multi-vibracional, multicolor, ajustável com sons e à prova de água” e rumou para o quarto, brincar de medir quem tem a maior Força com o Carneirinho. E jurou que nunca mais ia trabalhar quando Niko estivesse de folga em casa, à toa e sozinho com ele. Números e Carneirinho... não combinam.