Cartas Para Quinn

Capítulo 2 — Saudades De Casa


12 de novembro de 2011



Para Quinn,



Devo admitir que estou satisfeita — e aliviada — por ter recebido uma resposta sua. Fiquei ligeiramente preocupada que meu falatório interminável tivesse a assustado a ponto de fazê-la pedir uma troca de correspondente. Acho que sou um pouco intensa demais para o meu próprio bem.

Fui informada recentemente de que o método de envio das cartas foi mudado. A partir de agora, para diminuir as custas e agilizar o processo, as cartas serão digitalizadas e enviadas para o seu e-mail, ao qual não tenho acesso. Imagino que seria mais fácil se eles apenas nos dessem o endereço eletrônico, mas acredito que eles estejam tentando evitar situações desagradáveis. Como, por exemplo, adolescentes mandando fotos seminus, sites de pornografia, lixo eletrônico ou vírus. Seria um verdadeiro pesadelo, eu sei. Eu particularmente não me importo de continuar escrevendo. Meus colegas, todavia, não devem compartilhar da minha opinião.

Na verdade, pensando sobre isso, não tenho certeza se há mais alguém da minha escola inscrito no programa. Perdoe minha ignorância, pois eu mesma não sabia de sua existência. Ao menos, não até algumas semanas atrás, quando as férias de verão acabaram, e se iniciou para mim o último ano do Ensino Médio. Estive em busca de atividades extracurriculares que pudessem me ajudar a entrar na Universidade, e a senhorita Pillsbury, conselheira do colégio, contou-me sobre o “Carta para soldados”. Disse que é um programa voltado de forma a ajudar os jovens americanos a melhorarem sua escrita — e levando em consideração a grafia completamente errônea que eles utilizam nas redes sociais, devo concordar que realmente precisam —, e ajudar os soldados, mantendo um vínculo com alguém que possa lhe lembrar como é estar em casa.

Espero que eu possa lhe lembrar como é estar em casa. Das coisas boas, quero dizer. Não sei quais são para você. Para mim, é a recordação do cheiro da comida de minha mãe; o latido do cachorro; o riso das crianças brincando no parque; a cor das flores. São coisas das quais sinto saudades da época em que ainda morava em Nova York. Uma época em que fui tão feliz quanto poderia ser.

Você sabe, acabei de perceber que tenho falado e falado sobre minha vida, minhas reflexões mais profundas, as feridas que atormentam o meu ser — mas não falamos de coisas simples. Quero dizer, apesar de tudo o que disse, eu não sei nada sobre você (uma pessoa reservada, posso perceber), e você ainda não sabe nada sobre mim (alguém que é tão aberta quanto um livro… Ok… Isso não soou tão inadequado na minha cabeça). Minha história não é quem sou. Como você bem disse, a única pessoa que pode me definir sou eu mesma. Pelas minhas atitudes, meus pensamentos, meu jeito de ser. Não pelo meu passado. Não pelos outros. Aos vinte e um anos, senhorita Fabray, você é incomumente sábia. Pergunto-me se durante sua adolescência (o que, sejamos francas, não foi há tanto tempo) você era como as outras garotas. Talvez tenha sido, e o tempo a fez a amadurecer; ou talvez as marcas da vida vieram cedo demais, levando consigo a sua oportunidade de ser como os outros. Pessoas como eu, as que tem cicatrizes, não veem o mundo da mesma forma. Acho que, por isso, não sou uma adolescente “normal”. E por não ser uma adolescente normal, sou excluída. Tão complexo assim. Você vê? As pessoas de hoje em dia são realmente compreensivas, principalmente quando se trata de respeitar as diferenças. Bem, talvez eu esteja sendo sarcástica. Você não pode realmente me culpar, ou pode?

Tudo bem, talvez eu também esteja sendo um pouco amarga. Acho que qualquer um seria se tivesse que enfrentar diariamente as coisas pelas quais passo na minha escola. Mas, quer saber?, deixa isso para lá. Citando sua amiga com a boca suja, “Isso tudo é falta de…”. Não deixarei que eles me atinjam. Só mais um ano — um longo e cansativo ano —, e estarei livre para partir deste lugar para sempre. Livre para buscar meus sonhos. Para correr atrás da carreira em que sonhei ter quando ainda era criança.



Eu estive pensando, Quinn. Escrevi o último parágrafo há algumas horas, e precisei parar porque tive que ajudar meu pai a preparar o jantar. Todavia, enquanto o ajudava, algo ficou martelando em minha mente. Sei que disse que você não precisa entregar a mesma intensidade emocional que eu em suas cartas; não vou pedir que você faça isso. Entretanto, fiquei curiosa em relação a uma coisa. Espero que você não se importe por eu estar perguntando, mas… Você sempre quis entrar no exército? Sei que você tem suas motivações para tê-lo feito, mas não são sobre elas que estou perguntando. Isso é pessoal demais, e se você quiser falar alguma vez sobre isso, no futuro, então tudo bem. No momento, entretanto, minha verdadeira dúvida é: este foi o seu sonho? Ou ainda há algo guardado em seu peito? Algo que você deseja ardentemente? Não precisa me dizer o que é. Só queria mesmo saber se está lá.

Eu espero que seja. Seu maior sonho, quero dizer. Ou, se não for, espero que isso a faça feliz. A vida é curta demais, traiçoeira demais, para perdermos tempo não fazendo aquilo que amamos. Aprendi isso da pior forma. E sei que você deve ter passado por poucas e boas, também. Todos nós conhecemos perda. Talvez não da mesma maneira, mas conhecemos. E isso também nos afeta de diferente maneiras. Isso faz com que nos tornemos pessoas diferentes. Talvez por isso ninguém seja igual. Porque ninguém passa pelas mesmas situações; a coisas similares, quem sabe, porém, nunca idênticas. Cada caso é único, porque cada ser humano é único. Ou seria o contrário? Cada ser humano é único porque nada do que fazem, passam ou vivem jamais é igual?

Acho que estou me sentindo filosófica demais ultimamente. Espero que você ainda não tenha enjoado do meu falatório sem fim. Suponho que este seja o ponto onde eu deva acabar esta carta (antes que comece a divagar sobre o Universo, e outras coisas que possivelmente nunca poderei compreender — como, por exemplo, como a porcaria do time de futebol da escola ganhou a última partida. Totalmente inexplicável).

Até a próxima, então!

Da garota que não compreende a vida e o Universo,

Rachel Berry.



22 de novembro de 2011



Para Rachel,



Peço desculpas por você ter imaginado que troquei de correspondente. Acredito que, a partir de agora, com o novo procedimento que adotaram para as correspondências, a mesma dúvida não vá se abater sobre você novamente. A não ser, é claro, que eu realmente solicite a troca. Não que eu esteja pensando nisso — de jeito nenhum! Na minha opinião formada a partir do momento em que tive sua primeira carta em mãos, você pode ser a melhor que poderiam me dar. É um privilégio poder conversar com alguém que não goste de “bater um papo” sobre a nova novela das oito, ou algo assim.

É uma pena que seus colegas não tenham se inscrito, também. O programa, por mais bobo que pareça, realmente ajuda. Estou no exército por um tempo, agora, e já vi de muitas coisas. Algumas pessoas realmente perdem seu caminho. A conversação, mesmo com alguém milhas distante, pode ser muito mais benéfica do que você imagina. Mantém o ar puro. Uma gota de água limpa num oceano poluído. Nós já temos nossa cota de tragédias por aqui; preocupar-nos com dramas adolescentes, acredite você ou não, faz com que nos sintamos mais leves. Sem contar que nos faz lembrar de nossa própria juventude.

Você deve ter percebido, astuta como é, o meu uso do plural. A amiga de boca suja que lhe falei também está em correspondência com uma garota — não posso dizer quem é, mas acredito que seja alguém que você possa conhecer. Tudo o que sei é que ela é da sua cidade, também. E como você me disse que Lima é um lugar pequeno, supus que não deve haver muitas escolas de ensino médio por aí. Ao menos, não públicas (que são as que estão associadas com o programa).

Sei que pode parecer estranho, mas você realmente me lembra de como é estar em casa. Não sei se mencionei na carta anterior — provavelmente não, já que falei tão pouco de mim mesma —, e não haveria como você saber disso, já que estou registrada na cidade onde nasci, e não na onde morei por grande parte da minha infância. Originalmente, eu sou de Seattle; só que, assim como você, mudei-me para Nova York. Eu nem sabia falar na época; NY foi, portanto, o primeiro lugar que tive o sentimento de estar em casa. Por isso, compartilho algumas de suas lembranças. Como a de risadas. De dias ensolarados no Central Park, tomando um sorvete, implicando com meu irmão e me divertindo com as outras crianças. Meus pais costumavam nos levar lá todos os domingos; às vezes, até fazíamos piquenique. As melhores lembranças de minha infância são desses dias que passávamos em família. Onde tudo parecia certo, como se fosse durar para sempre. Mas suponho que toda criança, em sua inocência, não deva imaginar que algo um dia chegará ao fim. Nem mesmo nós, adultos, pensamos sobre isso. Talvez esse seja o motivo pelo qual, quando as mudanças acontecem, fazem o chão desaparecer de debaixo de nossos pés.

Por favor, Rachel, não precisa ter medo de me fazer perguntas. Sinta-se livre para me indagar sobre qualquer assunto. Não prometo uma resposta sempre, mas, se não puder dá-la, então justificarei. Quero que você me veja como uma amiga. Alguém que você costumava conhecer, e que não esteve por perto durante muitos anos. Alguém que você reencontrou nas reviravoltas da vida. Podemos começar como amigas recuperando a conversa em dia, com o simples “Como você está?”, “Onde mora?”, “Quanto tempo!”, e ir desenvolvendo o relacionamento à medida em que nos sintamos mais confortáveis uma com a outra. Embora, claro, você já tenha dividido comigo mais do que eu poderia esperar (não estou reclamando; é diferente, num sentido bom. Só não estou acostumada a pessoas sendo assim, tão sinceras e abertas).

Respondendo à sua pergunta… Não, este não é o meu “grande” sonho. Não acho que alguma vez tive um, para falar a verdade. Quando era mais nova, tinha essa vontade maluca de escrever um livro, ou coisa do tipo. Mas nada que fosse levado a sério. Era apenas uma daquelas fases onde queremos ser um monte de coisas ao mesmo tempo. Lembro-me, entretanto, de meus pais comprando um diário para mim. Eles disseram “Escreva o que quiser, mas escreva”. Eles eram assim. Incentivavam-me sempre a ir em busca daquilo que eu queria. Se eu lhes dissesse naquela semana, “Quero ser astronauta”, eles não ririam, ou diriam que era impossível. Eles me diriam para estudar, e correr atrás, porque nunca alcançamos nada se ficarmos parados, de braços cruzados.

Não sei dizer ao certo se me faz feliz. É apenas complicado. Há este sentimento bom de saber que estou fazendo a diferença; lutando pelo meu país, pelo meu povo. Há esta outra parte, entretanto, que só consegue ver as coisas ruins. E existem muitas delas por aqui. Acredite, estar no exército não é para qualquer um. Pode fazer uma pessoa perder a cabeça com facilidade. Pode levar alguém a perder completamente o rumo. Só que, apesar de todos os “contras”, não consigo me ver fazendo outra coisa. Porém, sou ainda muito jovem. Como você mesma disse, há pouco tempo ainda era uma adolescente. E, muito embora os anos tenham passado, certas coisas permanecem conosco. Como as dúvidas. Nós nunca estamos realmente certos de quem somos e do que queremos. Claro, talvez haja aspectos em nossa vida que sejam bem resolvidos — como você e seu sonho, por exemplo —, mas sempre haverá alguma coisa. Alguma coisa que faz com que nos sintamos adolescentes novamente. Cheios de medos, incertezas e inseguranças. Crescer não é ter todas as respostas. É ir aprendendo no meio do caminho.

Devo dizer, senhorita Berry, que você também é incomumente sábia para a sua idade. Acredito que você esteja certa. Acredito que pessoas como você e eu, as com cicatrizes, jamais poderão se misturar completamente. Não que ninguém realmente vá. Essa é a coisa engraçada sobre a vida e o mundo: quanto mais você acha que entende, mais de fora você se sente.



Até uma próxima, então.

Da mulher que também tem se sentido bastante filosófica,

Quinn Fabray.