Cartas Do Passado

As revelações de Rosings (parte 3)


"Lady Catherine os convidara para um café da manhã, pois logo os rapazes estariam de partida.

Elizabeth se sentia muito cansada e deprimida. Como o sentimento era recente, não sabia se conseguiria controlar a raiva. Preferiu, então, ficar no apartamento. Charlotte foi compreensiva e convenceu Collins de que Lizzie realmente não se sentia bem.

A moça tomou um banho, trocou de roupa e ficou olhando para as cartas de Jane. Todo aquele sofrimento por causa de um idiota arrogante! A escrita da irmã não era mais a mesma: havia uma tristeza fina, bem escondida nas entrelinhas, que Lizzie conseguia perceber com facilidade e muita dor.

“Logo ele irá embora”, confortava-se Elizabeth, tremendo de raiva. Sentiria falta de Brandon, mas não estava mais disposta a agüentar Darcy.

A campainha tocou. Elizabeth, comovida, pensou ser o amigo de Darcy que, gentil, viera saber como ela se sentia.

Foi com total surpresa que se deparou com Darcy. Este rapaz, porém, não era o Darcy de costume: estava nervoso, aflito, querendo saber ansiosamente da saúde de Elizabeth...

A moça o respondia friamente, muitas vezes com monossílabos. O rapaz se sentara, mas logo se levantou e passou a andar de um lado para o outro. Elizabeth não conseguia entender o que se passava.

Darcy se aproximou muitíssimo agitado e, respirando forte, começou a falar:

– Tenho lutado em vão comigo mesmo, mas não posso mais me reprimir. Meus sentimentos são intensos demais: eu a amo, Elizabeth. Ardentemente!

O queixo de Elizabeth caiu. Fixou os olhos arregalados no rapaz, sua voz estava trancada na garganta.

O silêncio de Lizzie lhe serviu de incentivo.

– Eu me apaixonei por você pouco tempo depois de nos conhecermos. Seus olhos são magníficos, me deixam hipnotizado. – Respirou fundo. – Além de tudo o que temos em comum, seu amor pelos livros e pela arte! Eu não poderia admirá-la mais. Estou deixando de lado as expectativas de meus parentes e amigos por este amor. Se precisar me rebaixar, que seja! Preciso de você, Lizzie.

A moça estava lívida. Por mais que odiasse Darcy, jamais poderia ignorar tamanha intensidade de sentimentos. Ele ferira seu orgulho, porém, e ela se sentiu no direito de ser completamente sincera. Ao olhar para seu rosto, Elizabeth pôde perceber que ele tinha certeza de que a afeição era mútua. Tamanha pretensão fez com que o sangue lhe subisse à cabeça:

– Eu agradeço a afeição que me dedica, Darcy, mas estou certa de que não posso retribuí-los. E, quanto a todos os escrúpulos que feriu para declarar este amor, receio ter de lhe informar que nunca quis e nem pedi a sua boa opinião. Os sentimentos que não o deixaram confessar certamente lhe ajudarão a superar.

Os olhos de Darcy se arregalaram e seu rosto ficou pálido. Ficou em silêncio por algum tempo, tentando se recuperar de tamanho balde de água fria.

– E esta é a resposta a que tenho direito! – Finalmente respondeu, controlando a custo sua voz. – Posso saber por que me rejeita com tamanha rudeza?

– Posso saber, por meu lado, por que me disse que gosta de mim contra a sua vontade e, pior, contra o seu caráter? Seu intuito era claro de me insultar, Darcy. Minha falta de delicadeza está muito bem justificada. Se tivesse me tratado com gentileza, porém, ainda teria muitos motivos para recusá-lo. Nada no mundo me faria gostar do homem que arruinou a felicidade de minha amada irmã!

Darcy ficou surpreso, mas deixou que Lizzie continuasse a falar.

– Nada, nada, absolutamente nada poderá justificar o que fez. Foi mesquinho, foi cruel! Se é um rapaz honrado como tanto gosta de discursar, não ousará negar que separou o amor de um jovem casal e expôs Jane a uma melancolia profunda. Você não tinha o direito!

O rapaz a olhava, o semblante calmo, nenhuma ponta de remorso.

– Negue, se for capaz!

– Vou fazer sua vontade, Elizabeth. Sim, fiz tudo o que pude para separar Jane de Bingley e não me arrependo um minuto sequer do que fiz. Fui mais protetor com ele do que comigo.

Elizabeth o olhou com desprezo.

– Minha antipatia por você é muito mais antiga, Darcy. Com este último ato, você somente a intensificou. George Wickham me preveniu sobre a sua arrogância e prepotência!

O rapaz corou e a voz ficou trêmula:

– Tem sentimentos fortes por este rapaz.

Ela revirou os olhos.

– Ora! Qualquer um teria sentimentos por ele se soubesse a crueldade que você fez!

– Crueldade! – Darcy não conseguiu evitar a ironia. – Grande crueldade, pode apostar.

– Foi você quem não deixou que ele estudasse! Foi você que, por um ciúme bobo de pai, retirou todo o futuro promissor que ele possuía! Jogou George na rua como se fosse um lixo. E ainda tem a capacidade de ser cínico!

Darcy estava furioso.

– É isso que pensa de mim, Elizabeth?! – A moça se assustou um pouco, pois nunca o vira tão agitado. Erguer a voz, então, nem pensar! – É assim que me vê! Obrigada por me mostrar claramente sua verdadeira face. Aposto que esses sentimentos jamais teriam sido revelados se eu não tivesse ferido o seu precioso orgulho! Quer que eu me regozije com sua família? Com os modos e a educação que vejo neles? Posso ter omitido minha participação na situação de Jane e Bingley, mas odeio a mentira, Elizabeth. Não me arrependo de nada que fiz ou que lhe disse!

Lizzie estava prestes a explodir, mas controlou sua raiva, a muito custo, e falou com desdém e serenidade:

– Não compreende, Darcy. Sua grosseria para com minhas origens só fez com que me sentisse livre de culpa em recusá-lo.

O rapaz se sobressaltou, mas continuou calado.

– A minha resposta seria não, independentemente do modo com que me tratasse.

Novamente, espanto e vergonha por parte do rapaz. Lizzie prosseguiu:

– Assim que o olhei pela primeira vez, a sua arrogância, seu desprezo e sua indiferença pelo sentimento dos outros construíram a base para o profundo desgosto que os outros acontecimentos me fizeram sentir. Deixe-me ser bastante clara, Darcy: nada no mundo me tentaria a amá-lo.

– Não fale mais, Elizabeth, entendi o que sente e envergonho-me muito do que alimentei por você. Desculpe por tê-la incomodado com sentimentos tão repulsivos.

Com estas palavras, Darcy deixou o recinto.

Assim que ele bateu a porta, Elizabeth abaixou a cabeça e chorou copiosamente.

No dia seguinte, Elizabeth decidira dar uma volta nos arredores da casa de Collins. Precisava arejar a cabeça, clarear as ideias. Uma caminhada seria perfeita! Teve cuidado de ficar longe do portão, a última coisa que precisava era encontrar alguém e ter de explicar as grandes olheiras que tomaram conta de seu rosto.

– Elizabeth! – uma voz familiar a chamara pelas costas.

A moça congelou, não conseguindo acreditar em quem justamente fora encontrar. Virou-se e o encarou.

– Sim?

O rapaz parecia tão perturbado quanto ela.

– Por favor, leia esta carta. – Darcy a entregou em mãos e se foi.

– Adeus.

Curiosa, Elizabeth correu para o apartamento e se trancou para ler a carta.”

– Como a poderemos ler? – Darcy subitamente se deu conta. – Eu me lembro do que escrevi, mas não como escrevi e...

Elizabeth levantou-se em silêncio e fez sinal para que ele a acompanhasse.

Foi até seu quarto, abriu a mala e pegou a carteira. De dentro, retirou um envelope amarelado pelo tempo.

Darcy estava surpreso.

– Você a guardou durante todos esses anos?

A moça enrubesceu, mas tentou disfarçar:

– Ah, o que posso fazer? Sua letra é linda.

Encararam-se em silêncio e sorriram.

Decidiram ler a carta ali mesmo. Sentaram-se na cama:

– Poderia fazer as honras? – Ela lhe passou a carta.

– Com prazer.

“Santa Clara, 30 de Dezembro de 2002.

“A Elizabeth Bennet.

Antes de tudo, preciso avisá-la que os sentimentos que expressei no dia anterior não estão contidos nesta carta. Não quero aborrecê-la ou humilhar-me, mas apenas me defender das duas acusações que me fez ontem. Se, por um acaso, ofendê-la com sentimentos que aqui expressar, só posso lamentar. Algumas das explicações necessitam delas.

A primeira acusação é a de ter separado Bingley de Jane, pouco me importando com os sentimentos de ambos. Deixe-me explicar: assim que chegamos a Nova York, percebi que Charles preferia sua irmã a qualquer outra moça. Somente na festa na casa de Isadora é que temi que ele se apaixonasse seriamente. Para piorar, a preferência de Bingley estimulara a fofoca. A partir de então, me alarmei e passei a prestar o dobro da atenção em meu amigo: a paixão dele por Jane era ainda maior do que as que presenciara antes. Ao observar a moça, notei que ela sentia alegria perto de Charles, mas não expressava uma afeição tão forte como a dele. Um de nós se enganou, Elizabeth, e por ser você irmã e confidente de Jane, devo me desculpar pelo erro. Este mesmo erro fez com que sofressem, sua mágoa de mim é totalmente verdadeira e merecida. Espero que entenda: agi baseado na observação e, por tudo o que acredito, a afeição de Bingley não parecia ter reciprocidade em Jane. Não tomo minhas decisões baseadas na emoção, Elizabeth: se cheguei a esta conclusão, com certeza era a mais sensata e verdadeira no momento.

Não fui totalmente sincero com você ontem, as emoções se mostram um empecilho quando se trata da razão: qualquer tipo de desigualdade entre as famílias não é nada. A falta de delicadeza de sua mãe, de suas irmãs mais novas e até mesmo de seu pai me fez temer por meu amigo por expô-lo, talvez, ao ridículo. Magoa-me ter de ofendê-la, Elizabeth, mas essa é a realidade. Posso assegurar, todavia, que sua irmã e você sempre se portaram de modo excelente, respeitoso e amável.

Tais acontecimentos me fizeram tomar a atitude de proteger Bingley de um relacionamento que eu considerava desproporcional: no dia seguinte, Charles foi embora de Nova York, mas com a intenção de retornar. O receio que tomara conta de mim se mostrara idêntico em Caroline e, então, resolvemos acompanhá-lo a Londres. Assim que chegamos, descrevi, detalhei e intensifiquei cada motivo pelo qual ele não deveria unir-se a Jane. Charles era muitíssimo apaixonado e tive de usar um fato, ou ao menos o que eu pensava que era, para conseguir dissuadi-lo: contei-lhe que Jane era indiferente. Charles acreditava no afeto de Jane, mas é muito dependente de minha opinião e logo a acatou. Volto a afirmar: Não me arrependo.

Eu sabia da presença de Jane em Londres, Elizabeth, e não me orgulho de ter concordado em esconder tal fato de Bingley. Não consegui acreditar que seu afeto já estivesse completamente desaparecido para que eles se encontrassem sem perigo. Cada ato que cometi e que pode lhe parecer completamente repulsivo e vil tinha como objetivo o bem de um amigo muito querido. É tudo o que posso revelar-lhe, toda a verdade. Peço perdão ao desgosto que causei a Jane.

A segunda acusação que me atribuiu foi a de ter destruído a vida de George Wickham, abandonando-o à própria sorte. Para justificar-me, precisarei contar-lhe a história que nos envolve, a Wickham e a mim. Se, em algum momento, não puder acreditar no que lhe contarei, indicarei algumas testemunhas.

George Wickham era o filho de um homem de confiança de meu pai e que por muitos anos administrou os bens da família. A honestidade do pai de Wickham estimulou uma afeição muito grande de meu pai e esta recaiu principalmente em George. Meu pai pagou-lhe todos os estudos e deixou uma poupança para que concluísse o curso de direito em Cambridge. As maneiras de Wickham eram as melhores. Quando crianças e jovens, fomos muito amigos, quase irmãos. Georgiana cresceu em meio a dois rapazes protetores. Aos quatorze anos, porém, percebi as verdadeiras inclinações de Wickham, sua índole malévola e temi por nossa família. Detesto fazer-lhe tais revelações que, certamente, a deixarão desconsolada, mas é meu dever, Elizabeth, necessito alertá-la. Meu pai morreu quando tínhamos dezoito anos e sua afeição por George era tamanha que ele me fez prometer, em seu leito de morte, que lhe entregaria o dinheiro para os estudos tão logo fosse aceito. O pai dele morreu logo depois e, em seis meses, recebi uma carta de Wickham em que me informava sua vontade de estudar outra coisa. Queria, portanto, somente o dinheiro que meu pai lhe dedicara. “O sonho de Cambridge” fora apenas uma ilusão.

Fiquei com muita raiva, em especial por o rapaz ter enganado meu pai com tamanha crueldade, mas concordei com o pedido e entreguei o dinheiro, não sem antes fazê-lo assinar um termo em que desistia de qualquer outra quantia no futuro. Queria ver-me muito longe de tamanho parasita.

Durante três anos quase não o vi. Depois que o dinheiro foi gasto em mulheres e jogatina, porém, Wickham voltou a me pedir dinheiro, afirmando que percebera o quão importante era a formação acadêmica. Tenho a certeza de que não me julgará, Elizabeth, pois recusei este pedido veementemente. Se dependesse de mim, George não conseguiria nenhum centavo a mais.

Nossas relações foram cortadas novamente.

A tutela de Georgiana pertence a mim. Como preciso me deslocar para trabalho e estudos, não posso cuidar dela o tempo todo. Contratei uma mulher que, acreditei, seria de minha total confiança. Descobri depois que Wickham se acercara dela e a convencera a permitir que ele e Georgiana se encontrassem. Lembre-se, Lizzie, de que minha irmã cresceu comigo e com George e o desaparecimento repentino deste nunca lhe foi muito claro. Wickham pode ser muito charmoso, creio eu, e assim conseguiu conquistar Gigi, que pouco conhecia os perigos da vida.

A lábia do rapaz era tão poderosa que ele a convenceu a fugir. Como sempre fui um irmão justo e protetor, Georgiana logo me contou o fato. Cheguei alguns dias antes da fuga e, em respeito à minha irmã, me abstive de qualquer escândalo público. Despedi a mulher e despachei Wickham sem um tostão.

Devo, somente, adicionar mais dois fatos: Gigi tinha dezessete anos e aos dezoito herdaria trinta mil libras. A vingança de George contra mim teria sido completa.

Elizabeth, isto é tudo o que tenho para confessar-lhe, espero que a faça, ao menos, não guardar mais rancores contra a minha pessoa. Não se surpreenda por não ter-lhe contado tudo ontem: não me encontrava em meu juízo perfeito para tal. Clamo como testemunhas Brandon, a quem você devota grande admiração e respeito, e Georgiana.

Obrigado por ler. Felicidades!

Fitzwilliam Darcy. “

Não sabiam o que dizer, mas suas respirações estavam pesadas.

– Elizabeth?

– Sim?

– Se guarda a carta até hoje, por que se casou com Wickham?

Ela se afastou imediatamente e, com um olhar melancólico, foi até a janela.

– Porque eu o amo, Darcy.

– Mentirosa. Lizzie, não consegue dizer isso olhando para mim!

Ela se virou, a determinação estampada no olhar.

Darcy a puxou pelos ombros e olhou fundo em seus olhos. Lá fora, a noite surgia.

– Diga, Lizzie! Diga nos meus olhos que o ama! Principalmente depois da carta...

Uma lágrima solitária escorreu pelos olhos dela.

– É complicado, você não entenderia.

Ele enxugou a lágrima com a mão, acariciando a face da moça.

– Não faça isso. Não guarde para você. Deixe-me ajudá-la!

– Não, Darcy, não quero e nem preciso de sua ajuda. – Tentava a todo custo machucá-lo para que ele a deixasse ir, mas o rapaz não a soltava.

– Olhe para mim. – Elizabeth obedeceu. Ao perceber o que ele estava prestes a lhe falar, o pânico tomou conta de seu rosto.

– Por favor, não diga, não diga, não diga! – As lágrimas não paravam de rolar pelo rosto dela e, Darcy percebeu, ele também chorava.

Ao invés de dizer as palavras que tanto necessitava, simplesmente a abraçou.

Ficaram assim, juntos, permitindo que a dor daqueles longos dez anos explodisse em volta deles.