A manchete do jornal parecia gritar pela minha atenção, mesmo que ela estivesse do outro lado da vitrine e do outro lado da rua. Mas as letras eram grandes o bastante para que todos já soubessem do que se tratava.

"SEATTLE - SITIADA - MORTES AUMENTAM NOVAMENTE "

Abaixo da manchete havia uma foto da vítima, obviamente não cumpria o seu objetivo de facilitar o reconhecimento uma vez que estava borrada e a única característica verdadeiramente identificável eram os cabelos. O reconhecimento deveria ser impossível, mas por experiência própria eu sabia que não.

Há quase dois meses atrás perdi minha melhor amiga, Luíza. A dor que senti quando descobri foi algo inexplicável, era como se tivesse perdido uma irmã, uma parte minha. Eu tive o apoio dos meus amigos, da minha família e da família dela. Dizer que um consolava o outro era a melhor forma de explicar o que acontecia conosco, mas não era o suficiente, por que o vazio nunca ia embora. O que mais me causava dor era o fato de que eu realmente nunca conseguiria ficar bem, por que não havia como esquecer, tudo me lembrava dela e o que aconteceu. Algum serial killer ou gangue idiota havia assassinado minha melhor amiga de modo brutal, assim como fez com muitas outras pessoas depois.

Não havia possibilidade de esquecer, quando o que você queria esquecer aparecia todo maldito dia no jornal, quando isto não saia do pensamento das pessoas, por mais que elas não falassem, elas demonstravam, e hoje não foi diferente, havia sido encontrado mais um corpo, totalizando mais de 42 vítimas desde que tudo havia começado, sem que contássemos os corpos que não haviam sido encontrados.

Pisquei, afastando uma lágrima, ninguém mais tocava no assunto, havia se tornado um assunto sensível demais e que aterrorizava as pessoas a qualquer menção, mas não tocar no assunto não o fazia desaparecer, nem menos doloroso.

—Ayme!! – Mia me chamou tranquila conforme se aproximava com seu sorriso característico no rosto

Enxuguei a lágrima rapidamente, antes que Mia tivesse tempo de me alcançar. Se ela percebeu ou não seu rosto não demonstrou nada.

—Está indo para a aula? - Ela perguntou animada

—Para onde mais iria? - Retruquei disfarçando a dor com um sarcasmo leve

—Não sei muito bem, você parecia estar bem longe daqui, digo mentalmente, não fisicamente- Se explicou embaraçada, me fazendo rir, ainda que fosse um pouco forçado.

Ficamos alguns instantes em silêncio, encarando uma a outra, em busca de um assunto qualquer que quebrasse o “gelo”. Nunca me imaginaria nesse tipo de situação justo com Mia, uma das minhas melhores amigas, mas espontâneas e alegres e acima de tudo tagarela, que já conheci. Mas acontece frequentemente desde que aquilo aconteceu, e eu não a culpo por que sei que está tentando se esforçando para superar o que aconteceu, e eu sou um constante lembrete que não se pode esquecer isso, o que vai contra a sua nova tentativa de superar, que envolve se enfiar dentro de uma bolha onde nada de ruim aconteceu, como um conto de fadas.

*

Eu batia meus dedos com impaciência na pequena mesa de madeira, enquanto esperava que os ponteiros do relógio se movimentassem mais rapidamente.

Tédio, desânimo, indignação. Essas eram algumas das palavras que definiam o porquê da minha impaciência. Meu professor dava aula letargicamente, sua voz grossa ecoava por toda a sala vazia. Certo, digamos que a sala não estava completamente vazia, mas se a comparasse a dois meses antes, era como se estivesse agora morta, como toda a cidade parecia estar. Havia somente cinco ou seis alunos na sala de aula, e o ar ainda sim era tenso, como se os fantasmas de todas aquelas vítimas passeassem por ali, lembrando sempre o quão mortos eles estavam.

Desde que Seattle tornou-se uma cidade perigosa, cheia de assassinatos e desaparecimentos, quase todos optaram por fugir daquela cidade infernal que se tornara.

Então boa parte dos dias na escola se tornaram monótonos e entediantes para todos. Pelo menos eu ainda tinha Mia, por mais que achasse que só se mantia por perto por não haver muitas opções agora que a escola pertencia mais aos mortos que aos vivos. Nosso antigo grupo era enorme, totalizando em torno de dez pessoas, sendo quatro deles meninos e seis meninas.

Porém desde que houve a morte da Luíza, esses assassinatos só pioraram, por vezes tinham mais de 5 mortos por dia. Todos ficaram extremamente assustados e rapidamente muitos começaram a mudar-se arrastados pelos pais para algum lugar mais seguro suponho, e os poucos que ficaram por ali se mantinham “aprisionados” em casa, eram poucos os que se arriscavam a vir a escola, e foi assim que um por um todos se espalharam, dois foram para o Texas, longe o bastante para que manter contato não tenha se tornado uma prioridade, outras duas foram morar com uns tios até que completassem aos menos o ensino médio, três dos meninos do grupo foram estudar juntos em algum lugar do país e a última, Steffany, simplesmente sumiu. Ninguém nunca mais a viu, logo foi mais uma a se juntar a lista de desaparecidos da cidade, que aumentava praticamente a cada hora.

No final ficamos somente Mia e eu. Loucas? Talvez, mas não exatamente, nós só... sobrevivemos. Mia de algum jeito conseguia viver dentro de uma bolha, onde assassinatos ou algo remotamente parecido não acontecia, onde nossos amigos estavam todos juntos, ás vezes me preocupo que ela esteja ficando louca, mas nunca penso muito nisso, sei que ela está bem lúcida na realidade. Só está com medo de que se admitir algo do que tenha acontecido, a sua pequena bolha estoure, e tenho a impressão de que se isto acontecer, ela desabaria.

Eu por outro lado tenho muita consciência do que acontece e aconteceu, tento seguir em frente e não pensar muito, por que sei que também desabaria, mas eu não esqueço, não faço como a Mia, eu tenho que enfrentar isso se quiser conseguir me encarar no espelho com um mínimo de sanidade. Descobri, porém, que ambas, Mia e eu, temos uma válvula de escape, a dela sou eu, se agarrar a única coisa que parece não ter mudado, mesmo que na verdade eu tenha, eu só tento agir normalmente, na esperança que algum dia eu olhe no espelho e perceba que tudo voltou a ser como era antes. A minha por outro lado são os livros, acho que é meu jeito de criar minha própria bolha, me enfiar de cara nos livros e descobrir outros mundos, viver outras vidas, e por esses breves momentos esqueço de tudo que acontece, esqueço que minha melhor amiga morreu, esqueço tudo.

Tenho um sobressalto quando uma pequena bola de papel aterrissa na minha carteira, logo me recomponho para que o professor não note, mesmo que pense que na verdade está completamente entretido com o som da própria voz e não notaria nem se caísse um avião, não um de papel, mas sim daqueles enormes e de metal, no meio da sala.

Devagar abro o papel amassado, fazendo o menor barulho possível, olhando para trás em busca do dono do papel, até parar em um rosto conhecido, sorrindo para mim, Christopher, sorrio de volta com má vontade e leio em voz baixa a mensagem rabiscada no papel amassado.

Vai fazer alguma coisa hoje??

Pego uma das canetas espalhadas pela mesa e respondo:

Acho que vou na livraria, por que?

E jogo de volta para ele disfarçadamente

Nada não, esquece

Dou de ombros sem me importar muito quando recebo a respostas alguns minutos depois e recomeço a batucar os dedos novamente na carteira.

Ultimamente a maior parte das pessoas de Seattle não saem para fazer nada que não seja essencial, como fazer uma compra para que não se morra de fome por exemplo, tirando algumas poucas como nós que vão para a escola ou para o trabalho. Ou seja, faça qualquer outra coisa que não exija se manter dentro de casa, há não ser em casos extremos, e você estará fadada a ser chamada de louca, não que alguém ouse me chamar de louca pessoalmente, mas eu escuto os murmúrios, acham que estou sendo inconsequente por não ter me recuperado totalmente da morte da minha melhor amiga. Não me importo, sei que não estão certos, não totalmente ao menos, mas tem pessoas que ligam para isso, pessoas como Mia e Chris, mas talvez seja mais preocupação que qualquer outra coisa.

Chris é meu ex-namorado, terminamos a alguns meses atrás quando o peguei aos beijos com uma líder de torcida qualquer, desde então tenta me convencer que mudou, e talvez tenha mesmo, mas suas tentativas foram em vão, porém, por outro lado ele reconquistou minha amizade, o que já é mais do que eu esperava.

-Quero essa tarefa para amanhã – O professor finaliza, finalmente obtendo minha atenção. Espero que explique mais sobre o assunto, mas ele se vira e sai da sala, me deixando completamente perdida.

*

—Nos vemos amanhã!? – Apesar de ser uma afirmação, soou mais como uma pergunta

—Claro – Abro um sorriso tranquilizador para Mia e aceno. Há cerca de dois meses é a mesma coisa, nós temos medo do amanhã, por que não sabemos se alguma de nós será a próxima vítima.

—Toma cuidado – Aconselha contrariada

—Sempre - Sorrio brincalhona tentando ganhar um sorriso de volta, mas ao contrário do que eu esperava ela fechou ainda mais o rosto enquanto levava uma das mãos ao peito, esfregando como se sentisse dor ali. Preocupada me pergunto se há algum problema e se deveria perguntar algo, antes que posso perguntar algo ela mesmo me responde

—Eu só... estou com uma sensação estranha no peito - Ela diz sem me encarar nos olhos, como normalmente faz. Sinto calafrios descendo por minha espinha e os pelos do braço se eriçarem.

—Mia, isso não tem graça – Afirmo contrariada, completando em pensamento "Sabe que isso me assusta"

Viro-me para atravessar a rua, porém, volto-me novamente e grito para Mia –“Qualquer coisa eu estou na sua casa ok? ”

Mia ri um pouco e assente.

*

Caminho para o outro lado da rua e pressiono de leve a chave, ouço o barulho do alarme a alguns passos adiante. A passos curtos entro no meu carro e saio da vaga para estudantes.

Arrumo a estação de rádio para uma que me agrade e sacudo levemente a cabeça ao ritmo das batidas enquanto giro a chave na ignição, esperando o leve tranco que sempre antecede quando ligo o carro, acho que é algum problema com o amortecedor, mas como não sou mecânica, não entendo nada de carros, e já que não tenho o dinheiro para concertar, suposições são tudo o que tenho

Acelero até o cruzamento, parando em seguida quando o sinal muda de verde para vermelho e aproveito para abrir minha bolsa, conferindo se os livros e se a lista dos livros que quero ler estão há vista. Noto que está faltando um livro, e lembro-me rapidamente que foi o que havia deixado na casa de Mia na noite anterior enquanto fazíamos um trabalho.

O barulho de buzinas dos carros atrás de mim me faz perceber que o farol já está aberto novamente e discuto mentalmente a possibilidade de ir até a casa de Mia pegar o livro, mas decido que seria somente uma perda de tempo e acelero, dando partida, rumo as ruas escuras, um pouco afastadas do centro de Seattle.

Paro exatos trinta minutos depois em frente a uma estrutura bem conservada, a rua ladeada por uma série de luzes precárias, penduradas nos postes que não funcionavam ou então espalhadas ao longo de algumas das casas que se podia enxergar. Apesar da tentativa dos moradores de deixar a rua mais iluminada, não obtiveram muitos resultados, a rua continuava escura, contando somente com alguns pontos de luz de pouco alcance.

Alcanço rapidamente minha bolsa, colocando-a no ombro direito, enquanto retiro a chave da ignição e abro a porta, fechando-a com cuidado logo em seguida, não me preocupando muito em tranca-la, o carro era tão antigo que o ladrão poderia se penalizar de mim e dar-me outro. Ouvi dizer que nos últimos anos eles estavam ficando muito exigentes com as coisas que roubavam. Atravesso a rua a passos rápidos, pressionando o casaco com força para espantar o frio que uma brisa de vento mais forte trouxe e seguro com a outra mão a bolsa pesada, abaixando apressadamente a cabeça ao localizar um estranho homem que me encarava no cruzamento desta rua com uma viela, não muito longe de mim. Era possível identifica-lo por que estava exatamente em baixo de uma das luzes, que apesar de precárias ainda eram o suficiente para que conseguisse vê-lo com considerável êxito. Seu rosto era indecifrável, uma vez que boa parte do rosto estava coberta por um capuz, me permitindo somente um vislumbre da pele, branca, e um dos olhos, mas com a distância e a escuridão não era possível ver muito mais coisas. Pela segunda vez naquele dia um calafrio percorreu minha espinha