C.F.I.D

A SOMBRA DA NOITE — LENNON


LENNON

DIA 03

Ninguém precisou me explicar a movimentação na sala. Desci as escadas reparando a urgência de Marlon em carregar as malas para fora. A luminosidade do sol proporcionou-lhe uma identidade de serafim. Nunca duvidei da naturalidade do cabelo loiro dele. Parecia que ele estava realizando o que havia me dito na noite passada. Era preciso ter muita determinação para optar pelo distrito afastado de Vlasotince. Levei a sério a proposta de me mudar para o campo pela fantasia do Jens sobre a ordenha de vacas. Estive em um longo período de êxtase após ele apertar os olhos despreocupado com sua arcada infantil.

— Tem certeza de que não vai ser expulso? — Inclinei-me no corrimão sem preocupação quanto à piscada ranzinza dele. — Estou morrendo de saudades.

— Eu volto para você. — Eu não deveria, mas aprofundei na graça dos meus lábios.

Poupei tanto exagero na despedida. Ele foi mais desajuizado com a bagagem no porta-malas. Ainda o assisti no banco da frente, meneando as mãos de maneira impaciente para o taxista.

Não cumprimentei Aidan com muito entusiasmo no departamento. Tive até a impressão de que ele não retribuiu um aperto de mão tão forte.

— Eu tive que despachar o Marlon.

— Está aprendendo a conviver em família? — Não consegui espiar primeiro o cabelo escuro aglutinado de gel; minha intromissão foi direta nas manchas no pescoço dele.

Deduzi que ele mensuraria milimetricamente o sentido dos meus olhos.

— Estou experimentando um perfume novo. — Ele ajustou a gola da camisa branca de mangas. Com meio riso, foi suficiente para eu identificar cada holofote de cálcio na boca dele.

— Me confirma depois o nome para eu ter a segurança de nunca usar na vida. A sua muquiranice é tentadora por perfumes grátis.

Planamos até o terceiro andar na divisão de pronto atendimento. Aidan recolocou na mesa uma pasta. Prendi uma parte dos cabelos na orelha quando ele segurou a primeira folha.

— Já escolheu o ambiente de atuação dos estágios? — Ele se inclinou na mesa para manusear uma assinatura na folha.

— Tudo começa na seção de apoio pericial. — Sofri com um desmazelo na cadeira de escritório.

— Receber e entregar materiais de crimes? Eu acho que eles podem não gostar muito de você.

— É só você não sair de perto de mim. Podemos convencê-los de que também é um trabalho difícil.

— Não tem essa, japonês; também faço o meu trabalho sozinho. — Normalmente, em Aidan, existia uma reprovação para convencimentos. — Mas, levando em conta o que você vem passando nos últimos dias...

Nele também estavam partilhados os meus problemas; até mesmo nossas mentes se comunicavam por ductos de telepatia. Ele se intrometia bruscamente no desastre que a separação causava em mim. Eu merecia a repreensão e as falanges brancas dele constantemente me determinando sentenças. Inicialmente, eu havia sido alertado por ele sobre a saída da delegada do distrito de Panchevo. Era um município corriqueiro tão próximo de Belgrado. Nunca prossegui com a sorte. Nem mesmo poderia ser afastado o tipo de bruxedo que com certeza me acompanhava. Eu a tinha encontrado em Belgrado. Tentei simular uma amnésia acerca do cabelo negro chanel; de imediato, experimentei o efeito rebote. Mais ou menos dois anos de relacionamento tínhamos vivido. A minha transferência para Belgrado nos afastara de vez.

— Já pensou na Julie sendo presa? A cabeça das mulheres funciona ao avesso com essas coisas. — Aidan sabia acionar uma alavanca poderosa de mil coisas na minha cabeça.

Julie sendo presa. Eu vivendo sozinho com o Jens ou sendo morto com o material que Julie estourara na vidraçaria do restaurante. Aidan era um roteirista sem talento. Não haviam acontecido mais do que dois encontros, mas eu preferi ser acusado falsamente de uma infidelidade longa. Alteramos o nosso papo rotineiro. Em determinado momento, esquentamos as nossas cabeças revisando a reprodução simulada dos fatos do assassinato de Livana no quarto andar. Correlacionado aos depoimentos de investigação de Kalel, uma testemunha revelou suas percepções de vibrações nas paredes do próprio apartamento, em seguida a voz feminina gritando dois nomes irreconhecíveis encerrando com os disparos. Debatemos as manchas simples de sangue nas paredes; a confirmação apontou para uma luta corporal. Durante a tarde, na volta do expediente, nos dirigimos ao quarto andar até a divisão de balística forense, onde apuramos nenhum registro legal de posse da arma.

Tinha dado por encerrado o meu dia.

Ainda estavam acesas as luzes da sala. Arremessei a chave no sofá cinza de canto e subi, deparando-me com Julie acentuando um cobertor amarelo em Jens. Ele estava em algumas etapas à frente das fases do sono, não fez nenhum movimento com o nosso falatório ASMR. Ela me impediu de ligar a luminária projetor quando se retirou do quarto, mas a minha precaução sobre o medo dele de escuro me direcionou a afastar a cortina de frente dos astros celestes florescendo um pouco de luz no canto da parede.

Fui surpreendido avistando Julie parada em frente ao nosso antigo quarto. A três metros em frente, ela se acomodava no quarto de hóspedes. Eu entendi que precisava de toda atenção quando ela cruzou os braços.

— Amanhã é o dia da triagem.

Eu precisava cuidar da mente do Jens para a decisão final do processo de divórcio. Encontrei soluções na terapia. Alguém que entendia a fisiologia intelectual de uma criança era a mais apta para a explicação dos processos de separação. Aproximadamente dois dias atrás, especulei a consulta com um psicólogo. Hoje, dia 3, nossa solicitação foi encaixada numa triagem para o dia 4.

— Eu vou com ele. Posso deixar o Aidan responsável por algumas coisas.

Não haveria recusas da parte de Aidan. Fontes seguras me abasteciam do seu ciúme indiscreto pela direção chefe de pronto atendimento. Ele ainda não superava a ideia de me ter como autoridade.

Pela manhã, eu só pude esperar na bancada Jens terminar de comer o cereal de formas animalescas. Entre a ingestão de um gole de água gelada, a voz infantil sobressaltou. Imediatamente, Julie parou a fricção do cozimento no cooktop.

— Por que não leva a mamãe com a gente? — Reparar a máscara branca acima dos lábios umedecidos de leite me fez rir.

— Podemos levar a mamãe outro dia. Ela não vai recusar. — Na nossa olhada, não houve nenhuma sintonia.

Pude ter desapontado Jens, mandando-o retirar as mãos de fora da janela. Ele estava com a intenção de recolher a chuva. Ativei o vidro do carro; ele passou toda a viagem enjaulado por cintos laranja no assento elevado. Praticamente, era quase imperceptível os chuviscos quando chegamos à clínica. Eu tinha entendido apenas a palavra água sair da boca do Jens, até concluir a percepção totalmente do filtro para onde ele apontava na recepção. Abaixei o capuz azul do casaco dele, entregando em seguida um copinho com água natural. A careta dele foi de descontentamento pela temperatura.

Minha atenção se dividia entre os comerciais da TV e a imigração de pessoas no corredor em frente. Na porta esquerda, onde a identificação simbolizava o número 13, permaneceu um grande período fechada. Observei Jens se aproximar de uma menina de cachos loiros e gorro rosa menor do que ele. Após dezessete minutos, enxerguei uma brecha na porta 13. Me distrai com a risada pateta da menina para Jens.

Comecei a sofrer crises sucessivas de espanto. Atendi ao chamamento do meu nome com rapidez. Em diante, senti uma desconexão vendo-a na minha frente. Precisei observar com cautela a identificação do crachá. Ela repetiu meu nome mais uma vez.

A identidade era desconhecida para mim. Sempre tive lembranças pequenas do pássaro. Lembranças do pássaro azul-brasilis.

Lembranças da Blue Ivy.