C.F.I.D

A SOMBRA DA NOITE — LENNON


[CASO: A SOMBRA DA NOITE]

Não estavam em feriado para soltarem fogos de artifício. Na madrugada do dia quinze não se comemorava nada. A mulher ouviu sozinha do quarto o segundo disparo. Com a porta semiaberta, fez a passagem para a sala. O marido desprendia o telefone do gancho. Em instantes, abelhando o corredor, o elevador em frente alertava a estacionada do porteiro. Algumas palavras soltaram entre si antes de chegarem ao apartamento vizinho. A garganta da mulher ansiava, sem capacidade de tocar no sangue da maçaneta. A ausência de iluminação nos primeiros cômodos foi esquecida pela fresta de luz de uma porta. Desnortiaram-se para as manchas no chão, desfeitas pela mão que se esforçava em se reerguer.

LENNON

PRIMEIRA SEMANA

DIA 01

Havia pouco que encerrara a ligação, voltando ao apartamento ajustando as luvas. Em direção à janela do quarto, afastei a cortina, impulsionando a iluminação. Ao lado da cama estava Aidan, vetando o plástico com a arma.

Na outra porta em frente, entrei. Nada tinha afetado o rosa das paredes, as princesas loiras cacheadas sentadas em cima do baú prontas para receberem alguém que as mudasse de posição. Imaginei profundamente uma cor azul em tudo.

— Era o quarto da menina. — Aidan falou através dos meus ombros.

No corredor recebemos o investigador Kalel, modestamente, posicionando os óculos retangulares.

— Parece que todos têm a mesma informação. Como foi a revista?

Aidan ergueu soberbamente o plástico da arma, a pista principal.

— 92.

— Alguém andou bebendo bastante. Duas garrafas inteiras. Denner é meio alcoólatra.

— Estou te achando com manchas nos olhos, Lennon. — Kalel conseguiu me desestabilizar completamente.

— Tive problemas com o Jens durante a noite. Prometo que, quando ele melhorar, estarei livre da sua super atenção.

Ter pensado na noite passada me incentivou a fazer uma ligação. Eu sofri com a preocupação precoce a partir da segunda chamada. Ela não se recuperou da voz fraca. Tramei um emudecimento, mas só me frustrava com a respiração calma dela.

— Liguei para saber do Jens. — Com o chiado do nariz dela, prontifiquei o coração em alerta.

— Estamos bem. — A resposta fisgou no peito.

Eu não tinha coragem de encerrar a ligação, e ela não abordaria nenhum assunto. Com o celular afastado, a chamada seguia nos cinco minutos, considerando apenas trinta segundos de fala. Perto de refazer o seguinte suspiro, a minha salvação ultrapassou a porta no departamento.

— Preciso desligar.

O delegado Ronald se afundou na poltrona.

— A mãe de Denner compareceu ao depoimento. Foi ela que socorreu Livana. Deu entrada no hospital às uma e dezoito, faleceu quarenta minutos depois.

Recolhi a pasta que ele largou na mesa.

— Dois tiros, um no abdômen e outro no tórax.

— Ela disse algo mais? — Examinei o relatório de uma das folhas.

— Denner ligou, mandando-a ir ao apartamento, dizendo que Livana estava passando mal. Mas ela não sabe para onde ele foi com a menina. Estamos aguardando o fechamento do laudo médico.

A invasão instantânea de Aidan nos interrompeu.

— Lennon, a universidade acabou de ligar dando notícias do estágio técnico. Os seus bebês estão chegando na segunda.

— Não é uma gravidez literal. — Ronald deduziu, erguendo uma das sobrancelhas escuras.

— Dessa vez vai precisar de um procedimento cesariano. — Aidan ergueu os braços se encostando na mesa, intensificando a sua zombaria.

— Quantos?

— Seis.

— Está sentindo as contrações há quanto tempo? — Eu odiava a facilidade do Ronald de entender os tons das brincadeiras de Aidan. Mas ele não continuou por muito tempo o riso.

— Não é a primeira vez que eu lido com isso. Um número pequeno ficará mais fácil.

— Estagiários de perícia criminal me deixam com dor de cabeça. Os mais ansiosos tentam estragar as cenas dos crimes. — Ronald disse, recostando-se na poltrona.

— Deve ter sido nos tempos que não existia o senhor Lennon. — Aidan lançou um olhar brincalhão para Ronald, que riu de leve.

Na volta para casa, eu ainda não tinha coragem de sair de dentro do carro. Nem mesmo uma explicação para que autorizasse a minha entrada. Finquei uma eternidade na frente da porta, qualquer movimentação me fazia sentir mais frio. Finalmente, o trinco se desprendeu. Entrei com todo o corpo tensionado. A montagem no meio da sala resfriou novamente as minhas mãos. As malas estavam prontas.

Me acautelei nos passos densos na escada. Ele também deveria estar pronto para a partida.

Eu não esperava conversar durante o jantar, muito menos descobrir que as malas eram do Marlon.

— Eu pretendia chegar mais cedo e ficaria na casa da tia Alícia. — Ele se entretinha desfazendo a dobra da ponta do guardanapo.

— Não tenho certeza de que você seria aceito. — Pelo tamanho pequeno do sorriso de Julie, eu sabia que ela não alargava mais por minha causa. — Ela piorou do Alzheimer.

— Quanto tempo faz que eu saí de Belgrado? Ela ainda lembrava o meu nome. — Julie aglomerou os pratos em pilha e os deslocou para a máquina de lavar louça.

Marlon tinha a facilidade de conversar bastante. Eu me perdi nos detalhes da faculdade de filosofia em São Francisco. A última vez que me lembrei dele, Julie e eu estávamos nos casando.

— Terminei a faculdade. Ainda tenho dúvidas na especialização. O que você consideraria escolher, filosofia política ou moral?

— Eu nunca fui um bom eleitor. Mas, considerando o meu trabalho, eu pretenderia seguir pela moral.

— Temos conceitos diferentes. — Ele bateu na mesa de uma maneira assertiva. — No trabalho, eles dizem que eu falo muito bem.

Fui submetido a dar um sorriso. Essa ação positiva causaria mais energia nele, mas eu apenas tolerava em favor da mudança de Julie participar da conversa. Marlon explicou sobre as férias de trabalho, ele reservou um tempo para relembrar a nostalgia da Sérvia. Em um momento, eu senti os meus olhos toldados. Era a reação de tantas palavras acumuladas. Abandonei os irmãos na cozinha e subi teleguiado pelo meu corpo. No andar de cima, parei na terceira porta branca. Experimentei um universo multicor no teto. No canto da parede, a luminária projetor alcançava o Jens. Pelo menos uma parte do braço dele era a semelhança de uma nebulosa. Me sentei na cama. Não tive intuito de fazer a coberta se remexer. Examinei as esferas nipônicas enfermas.

— Viu o seu tio? — Reparei na fraqueza com que ele acenou a cabeça.

— Já falou com a mamãe? — Ele mostrou dificuldade para falar quando uniu piedosamente as mãos no edredom.

— Ainda irei falar com ela. Depois do tio Marlon encerrar a conversa na cozinha.

Não precisei convencer Jens a dormir novamente. Prometi deixar a luminária acesa durante a noite. De imediato, dentro do quarto me sentei na cama. Não era o meu corpo que envelhecia depressa, eu percebi que a causa do meu cansaço se dava ao meu esgotamento mental. Meus pensamentos estavam surgindo com alteração de velocidade. Mal entrava no pensamento B, o pensamento A ainda se encerrava. Me irriguei embaixo do chuveiro, era perda de tempo assistir se dissolver toda a espuma do ralo. Abandonei o banheiro totalmente abrasado de loção masculina. Não sei qual foi o motivo dos meus olhos arderem assim que me sentei na cama. Afastei os pulsos dos olhos no abrimento da porta. Passou uma corrente gélida entre mim, privando-me dos movimentos. Luz acende-apaga-acende-apaga, eu estava experimentando uma paralisia do sono em devaneio. A cada aparição de Julie do quarto ao banheiro, eu retornava à consciência e à noção de tudo o que ela recolhia no closet. Essa foi a última vez que ela entrou definitivamente no banheiro com um tecido branco. Todo o procedimento chuveiro liga-desliga, secamento e a mistura de loções. Após esse processo, ela saiu. Recebi o chuvisco da escovação dos cabelos loiros dela na penteadeira. Tive dúvidas em vê-la apalpando o travesseiro.

— Para fingir que está tudo bem, irei passar a noite aqui. — Ela se adaptou à divisão da cama.

— O Jens quer que tenhamos uma conversa.

— Ele não entende de nada. Nem que está adoecido por culpa do pai.

Não tínhamos sucesso em simular as coisas. Ficou nítido desde a noite passada. Pausávamos a nossa encenação na hora de dormir. Me atingia uma amargura toda repetição dela sobre a autorização do divórcio. Eu não tinha mais métodos eficazes de lamentação. Imobilizei-me em profundo arrependimento. A sombra esguia desviou-se de trás da porta. Encontrei as cobertas afastadas de cima do Jens.

— Ele não precisa saber de nada agora. Tentaria conversar por causa dele, embora já sabendo a sua decisão.

— Ele tem que se acostumar.

— É apenas uma criança. — Rebati.

— Você pensou nele como uma criança?

— Não precisa lembrar. Isso nunca vai sair de mim.

— Está com medo de perder o Jens.

— Não é apenas ele que tive medo de perder.

Não houve nenhuma resposta. A movimentação no canto da minha visão foi do braço dela organizando o travesseiro. Terminei apagando a luz antes de ela encontrar o conforto. Aquilo me concedeu um riso estúpido antes da estagnação.

Mais uma vez, eu acabei me envolvendo com ela. Nunca havia sido tão magra, pouco permitia fios reduzidos emparelhando no pescoço. Era a primeira vez que eu compreendia o meu desapontamento em abrir os olhos. Estávamos separados pela vidraça.

Foi Julie que apareceu na vidraça.