CAPÍTULO 3

- Oi, mãe... Está tudo bem comigo... O quê? Ah, estou ainda em São Paulo... Na Barra Funda... O ônibus vai sair dentro de dez minutos... Ah, foi muito boa... Quando eu chegar te conto mais... Certo... Abraços.

Aos perceber que a sua mãe havia desligado o telefone no outro lado da linha, Roberto colocou o gancho no aparelho do telefone público, pegou as suas duas pesadas malas e começou a caminhar pelos corredores do Terminal Intermodal da Barra Funda, zona oeste da capital paulista. Estava um pouco cansado, depois de viajar mais de 35 horas de ônibus leito entre Buenos Aires, onde passou as suas férias, e São Paulo, onde acabara de chegar na madrugada daquele dia.

O terminal não apresentava grande movimentação de pessoas, afinal era metade de janeiro e as férias escolares deixavam a cidade de São Paulo um pouco mais calma e tranqüila. Mesmo assim, Roberto notava um certo agito nas plataformas de embarque do metrô e dos trens metropolitanos. Já com a passagem para a sua cidade em suas mãos, continuou a sua caminhada até as plataformas de embarque do terminal rodoviário. Ao chegar na plataforma número 5, viu o microônibus para a sua cidade já encostado; pediu ao motorista para colocar as suas malas no minúsculo bagageiro do carro e embarcou no veículo.

Roberto rapidamente achou a sua poltrona e logo tratou-se de sentar e relaxar. Olhou para o relógio de pulso: eram 7:55 da manhã; faltavam cinco minutos para a partida do ônibus para a sua cidade. Antes de reclinar a sua poltrona, observou através pela janela uma mulher com cabelos castanhos curtos, feições orientais, olhos extremamente puxados lembrando os de raposa e duas gigantescas malas correndo em direção ao coletivo onde ele estava. A mulher oriental, aparentando ter 21 anos, pediu através de gestos para que o motorista embarque as suas malas no bagageiro, apresentou a sua passagem e subiu no microônibus, sentando-se ao lado de Roberto. Cinco minutos depois, exatamente às oito horas da manhã, o ônibus deixou a rodoviária do Terminal Intermodal da Barra Funda rumo à cidade de Vale Verde via Sorocaba.

O microônibus não enfrentou grandes dificuldades no caos costumeiro do trânsito paulistano, e vinte minutos após a sua saída da rodoviária, ingressou na Rodovia Castello Branco, rumo ao Interior Paulista. Fazia um tempo excelente naquele dia, com direito a céu azul e sol brilhando forte, convidativo para uma longa viagem. Enquanto o veículo corria sobre o pavimento de concreto da marginal direita da rodovia, Roberto observava ao longe o imponente Pico do Jaraguá, o ponto mais alto da Capital e referência para toda aquela região; ao passar pelo trevo de acesso ao luxuoso condomínio de Alphaville, tirou de uma sacola que estava no seu colo um pacote de biscoitos que comprara na rodoviária antes do embarque, abriu-o e ofereceu alguns biscoitos para a oriental sentada ao seu lado:

- Aceita uns biscoitos? – perguntou Roberto, em português.

A oriental olhou para Roberto, com uma cara de quem não havia entendido o que o rapaz disse.

- Ah, desculpe – Roberto passou a falar em japonês – Sabe falar japonês?

- Ah, sim... Sei falar japonês... – disse a garota – Você fala um japonês perfeito, sabia? Nem parece um ocidental... – e sorriu para Roberto.

- É que aprendi japonês na escola quando pequeno. Onde moro, o japonês também faz parte do quadro curricular das escolas primárias. Você é japonesa?

- Sim. Sou da região de Kansai, mas precisamente de uma cidade próxima de Osaka chamada Wakayama. Já ouviu falar?

- Não... Na verdade, nunca fui para o Japão; nasci aqui mesmo no Brasil – Roberto apontou o pacote de biscoitos para a garota – Agora sim, aceita uns biscoitos?

- Aceito sim, garoto – a garota pegou três biscoitos do pacote e os colocou na boca – Depois de viajar por mais de um dia desde o Japão, nada como uns biscoitinhos e uma pessoa para conversar um pouco...

- Está vindo do Japão? – perguntou Roberto.

- Sim. O vôo onde eu estava saiu ontem do aeroporto de Narita, perto de Tóquio. Estou vindo de uma cidade chamada Hinata, na província de Kanagawa – a jovem engoliu o último biscoito – E você?

- Bem, estou vindo de Buenos Aires, Argentina. 35 horas de ônibus leito. Passei as minhas férias lá; foram maravilhosas. Aliás, a gente ainda não se apresentou – Roberto cumprimentou a mão da jovem – Me chamo Roberto José Antunes. E você?

- Prazer, Robu... Roberu... – a garota sentiu dificuldade de pronunciar o nome do seu novo amigo – Droga, não consigo... Posso te chamar de “Rob”?

Roberto balançou a cabeça, num sinal de afirmação.

- Que bom, Rob. Meu nome é Mitsune Konno, mas meu apelido é Kitsune. Quero que me chame pelo apelido, tudo bem?

- Tudo bem, Kitsune – respondeu Roberto, com um sorriso – Percebi que você tem uma cara de raposa... Vai fazer o quê aqui no Brasil? Visita? Trabalho? Turismo?

- Bem, vou trabalhar em uma loja da irmã de uma amiga que morava no Japão. Ela abriu uma loja em uma cidade chamada Vale Verde que está dando o que falar... Aí, para atender a demanda, ela me chamou para dar uma força aqui.

- Sou de Vale Verde, Kitsune. Abriu uma loja lá, e ela está fazendo sucesso?

- Ué, pensei que você soubesse... Minha amiga me contou que todo dia formam filas para entrar na loja; ela oferece de tudo sobre o Japão...

- Ah, deve ser nova então... Fiquei quinze dias na Argentina e não estou sabendo de nada lá da minha cidade...

- É nova sim, Rob – Kitsune tossiu um pouco – Me parece que abriu no comecinho deste ano.

Legal, quando chegar lá, vou visitar esta loja – Roberto observou a paisagem pela janela do ônibus e percebeu que eles já tinham deixado o pedágio de Itapevi para trás – Mas, por que aceitou trabalhar aqui ao invés de ficar no Japão?

- Ah, o clima não está bom lá em Hinata, Rob. Depois que uma amiga nossa deixou a pensão onde eu morava no ano passado, as coisas ficaram desanimadas por lá...

- Pensão?

- É, eu morava em uma pensão feminina lá, a Hinatasou. Pelo menos aconteceu uma coisa boa na semana retrasada lá, o que animou um pouco: um casamento!

- Legal, um casamento. Quem se casou lá, uma inquilina da pensão, Kitsune?

- Sim, uma hóspede e minha melhor amiga com o gerente da pensão. Eles se casaram em um santuário xintoísta perto da pensão. Foi um dos maiores casamentos da história da cidade.

- Até posso imaginar como eram os noivos... – Roberto estava tão interessado na conversa com Kitsune que deixou o seu pacote de biscoitos num canto da poltrona, esquecendo-o.

- Tenho fotos do casamento aqui comigo. Quer dar uma olhada?

- Quero sim, Kitsune.

Kitsune rapidamente pegou a sua bolsa que estava no porta-pacotes do ônibus e tirou um álbum de fotos de dentro dela, dando-o para Roberto.

Roberto olhou as fotos com calma. Estava maravilhado com as imagens do casamento realizado em um santuário xintoísta de Hinata. Decoração esplêndida, convidados muito bem vestidos e os noivos com trajes tradicionais japoneses no altar, em frente a um sacerdote xintoísta. A imagem do casal foi o que chamou mais atenção: a noiva era uma belíssima ruiva com peitos avantajados e estatura mediana e o noivo era um jovem rapaz com cabelos negros lisos e óculos.

- Esta daí é você, Kitsune? – perguntou Roberto, ao indicar uma moça com quimono na foto.

- Sim, esta sou eu, Rob. Todos os nossos amigos e conhecidos vieram ao casamento, exceto a moça que deixou a pensão alguns meses antes. Ela não apareceu lá.

- Entendo. Creio que esta garota era importante para vocês naquela pensão...

- Era sim, Rob – Kitsune suspirou – Ela era uma descendente de uma família de samurais de Kyoto. Viveu lá por quase seis anos e só pensava em treinar kendô todo dia, tanto que ela só usava quimono e hakama vermelha. Antes dela ir embora da pensão, ela estava fazendo cursinho para tentar a Universidade de Tóquio, onde o casal da foto estará se formando este ano. Tem uma foto dela neste álbum; dê-me ele por um instante, por favor.

Em questão de segundos, Kitsune achou a foto que mostrava todas as moradoras da pensão em frente ao prédio e mostrou com o dedo para Roberto a tal garota samurai que acabara de comentar. Roberto olhou a garota na foto e, inexplicavelmente, ficou olhando o rosto e o corpo da moça por vários minutos a fio, como se tivesse apaixonado por ela.

- Meu Deus! Ela é muito bonita! Simplesmente perfeita! – disse Roberto, em português e em tom de voz bem baixo.

- O que disse, Rob? – perguntou Kitsune.

- Não, nada, Kitsune – respondeu Roberto, em japonês – Acho que estou meio com sono... Também, viajei 35 horas de ônibus... Vou dormir um pouco. Bem, agora que somos amigos, será que podemos conversar mais tarde, lá em Vale Verde?

- Claro, Rob. Vou trabalhar na loja Nishi Gyoen a partir de amanhã. Na verdade, nem eu sei onde fica... – Kitsune riu – Quem vai ficar me esperando será um amigo, que é arqueólogo e foi professor desta minha amiga que se casou em Hinata; vou morar na casa da dona da loja, que me ofereceu gentilmente um grande dormitório.

- Ah, tá... – Roberto novamente olhou para a janela do ônibus e viu que já estava em Sorocaba – Então, amanhã dou uma passada na loja para conhecer o lugar e também para pegar o telefone da casa onde você vai ficar, OK? Vou te ajudar na adaptação em terras brasileiras, tudo bem?

- Tudo bem, Rob. Se quiser descansar agora, pode descansar. Vou dormir um pouco também.

- Está bem, Kitsune.

Ao encerrar a conversa com a sua nova amiga, Roberto relaxou e rapidamente adormeceu. Quando acordou, viu que o microônibus já estava na estrada de acesso à Vale Verde; olhou para o relógio: dez horas e quinze minutos. Virou a cabeça para o lado e viu Kitsune dormindo profundamente na sua poltrona. Ao voltar a cabeça para a janela, percebeu que o ônibus começara a descer uma colina, fazendo ao mesmo tempo uma leve curva à direita. Estava finalmente chegando a Vale Verde.

Roberto viu o portal da cidade, um prédio de arquitetura japonesa, e logo visualizou a zona urbana, com as suas casas construídas em estilo nipônico moderno (com cômodos pequenos e apertados), com a usina da Sidernibra e os morros ao fundo. Ô coletivo acessou a avenida principal da cidade e começou a subir uma outra colina, desta vez dentro da cidade. Nas ruas, o tráfego de carros e motos era intenso. O movimento das lojas era mediano, mas foi só o ônibus passar em frente ao Nishi Gyoen, a loja citada por Kitsune, que Roberto descobriu a mais nova coqueluche da região: filas de carros de outras cidades para entrar no estacionamento, movimento intenso de pessoas nas portas do estabelecimento, restaurante lotado, moto-girls saindo a toda hora para entregar os seus pedidos em suas motos... Depois de passar pela Nishi Gyoen, o microônibus finalmente entrou na bela e moderna rodoviária de Vale Verde, encerrando assim a viagem de duas horas e vinte minutos desde São Paulo.

- Kitsune! Acorde! – Roberto balançou a sua amiga, acordando-a – Chegamos.

- Hã? Eh... – Kitsune ainda estava meio sonolenta – Já chegamos? Finalmente...

- Tem razão, que viagem... Bem, como disse há pouco, amanhã vou dar uma passada na loja e irei te procurar para pegar o telefone. Mas acho que vai ser meio difícil, pois acabamos de passar em frente dela, e lá ta um movimento...

- Tá legal. Amanhã é só me procurar lá – Kitsune se levantou da poltrona e pegou a sua bolsa - Te espero lá, OK. Rob, a partir de hoje você é meu amigo; pode contar comigo para qualquer coisa. Tenho que ir! Até mais! – e desceu do ônibus, onde um rapaz alto com traços orientais, óculos pequenos, vestindo um guarda-pó e fumando um cigarro estava à sua espera na plataforma da estação.

Após descer do ônibus, Roberto tirou as suas malas do bagageiro e reconheceu uma pessoa sentada num banco em uma parede da rodoviária. Era sua mãe, Bianca, esperando a sua chegada. Imediatamente foi até ela, abraçou e a beijou no rosto.

- Oi, mãe! Que bom que está bem contigo!

- Eu que o digo, Roberto! Você parece inteiro!

- Ah, claro que estou inteiro, mãe... A viagem foi sensacional. Buenos Aires é fabulosa! E as coisas aí em Vale Verde?

- Roberto, abriu uma loja aqui, que está dando o que falar! – Bianca apontou o dedo para um grande prédio em estilo nipônico medieval a uma quadra da rodoviária – O movimento aqui é inacreditável! Está virando até ponto turístico. Tudo que você pensa do Japão tem naquela loja.

- Uma garota me contou sobre esta loja na viagem. Inclusive ela vai trabalhar lá a partir de amanhã... Me parece ser muito boa esta loja mesmo.

- Certo, filho. Vamos fazer o seguinte? Em casa você me conta sobre a sua viagem, tudo bem?

Roberto concordou, e junto com a sua mãe começou a caminhar pela rodoviária até alcançar o lado externo do prédio. Enquanto caminhava rumo à avenida principal, Roberto viu o semáforo anunciar a cor vermelha; logo depois, uma bela garota, vestindo um dogi (espécie de quimono) branco, hakama vermelha, meias brancas, chinelos japoneses de madeira, portando um objeto lembrando uma espada nas suas costas e pilotando uma scooter preta com dois ideogramas estampados nas laterais, parou bem ao seu lado, respeitando o semáforo. Inexplicavelmente, Roberto virou a cabeça e começou a olhar para a garota, mais precisamente para a sua cabeça, coberta por um capacete fechado preto. Por alguns segundos, observou os olhos levemente puxados dela que estavam atrás da pequena viseira fechada do capacete. Por dentro, Roberto sentiu uma sensação estranha, inexplicável, enquanto a garota também olhava para ele, aparentemente sem esboçar nenhuma sensação, em uma troca de olhares. Até que o semáforo abriu e a garota, com o seu punho direito, acelerou devagar a sua scooter, acionou o pisca-pisca para a direita e desceu a avenida. Roberto observou a moça indo embora; vendo parte dos seus longos cabelos negros e lisos que estavam fora do capacete balançando com o vento.

- Parece muito aquela garota que a Kitsune me mostrou naquela foto no ônibus – pensou Roberto, ao lembrar da foto das moradoras da Hinatasou que a sua amiga mostrou durante a viagem.

- Vamos, Roberto! – Bianca chamou pelo seu filho – Acho que você precisa descansar um pouco... – após ouvir a sua mãe, Roberto a alcançou com as suas malas, atravessou a avenida e chegou ao carro da família, um Alfa-Romeo 2300 nacional, ano 1975, em perfeitas condições. Ao entrar no carro, Bianca assumiu o volante, manobrou o carro, contornou uma quadra e desceu uma rua, rumo ao Jardim Europeu, bairro onde mãe e filho moravam.

Chegando finalmente em casa, Roberto tomou um banho, almoçou um belo frango assado feito pela sua mãe e depois contou todos os detalhes da sua viagem a Buenos Aires para ela, mostrando as lembranças e produtos que comprara na capital portenha. Contou também sobre a maravilhosa viagem de ônibus que teve para ir e voltar da Argentina. Bianca, por sua vez, contou com calma tudo o que aconteceu em Vale Verde durante estes quinze dias; nenhuma novidade, a não ser a inauguração e o sucesso da loja Nishi Gyoen.

Quando o relógio da sala marcou dezessete horas, Roberto decidiu dar uma caminhada pelas ruas do bairro. Trocou de roupa, penteou os seus cabelos negros curtos crespos, barbeou-se, colocou seus óculos de sol e saiu de casa. Ao caminhar, notou que não havia nada de diferente no bairro; tudo estava como sempre esteve: calmo e limpo, com algumas crianças brincando na calçada, um ou outro carro passando, mulheres conversando nos portões... Roberto preferiu mudar o caminho e pegou uma rua em direção ao Norte, cujo traçado terminava no Burajiru Gyoen (Parque Brasil), a maior área verde urbana de Vale Verde.

Ao chegar no parque, Roberto atravessou o portão e viu no estacionamento várias bicicletas, motos, carros e scooters. Notou que uma das scooters paradas tinha um par de ideogramas nas suas laterais, bem semelhante à daquela garota com a qual fez uma troca de olhares na rua da rodoviária, algumas horas atrás.

- Aoyama... – disse Roberto, ao ler os ideogramas da scooter preta parada no estacionamento – Deve ser o clã daquela garota... Acho que ela está aqui no parque – e continuou a sua caminhada.

Apesar de ser final de tarde, o sol ainda estava forte, mas não estava fazendo muito calor naquele dia. Por isso mesmo, o parque estava cheio de freqüentadores: crianças se divertindo nas calçadas, idosos praticando algumas técnicas orientais de relaxamento, jovens moças vestindo quimono caminhado enquanto conversavam, um ou outro ocidental praticando cooper, um artista pintando em sua tela um ukiyo-e (estilo de pintura japonesa muito antiga) e algumas pessoas simplesmente sentadas nos bancos lendo um romance.

Ao chegar no centro do parque, formado por uma enorme campo com um lago de águas claras e várias árvores ao redor, Roberto observou uma jovem garota praticando kendô com uma espada na beira do lago. A jovem, de cabelos negros lisos longos e com uma franja acima dos olhos, praticava movimentos alternados com a sua katana, um tipo de espada utilizado pelos samurais no Japão medieval; ela estava vestindo um dogi (uma espécie de quimono) branco, hakama vermelha, meias brancas grossas e um chinelo de dedos ao estilo japonês, de madeira. Logo, aquela foto que a Kitsune mostrou no ônibus e a imagem da garota motociclista que fez uma troca de olhares com ele voltou à sua mente; depois de alguns minutos pensando, não teve dúvidas:

- É aquela garota da foto! E também a da moto! Meu Deus, ela existe! – disse Roberto, em voz alta e na língua portuguesa.

Ao ouvir a voz de Roberto. A garota imediatamente interrompeu o seu treino e se virou para ele.

- Quem é você? – gritou a garota, em japonês e com a sua espada em posição de ataque – O que você quer?

- Eu, eh... – Roberto, assustado, sentiu dificuldades em articular as palavras em japonês – Não, só estava vendo o seu treino... Não... Quero dizer, estava passando por aqui e parei um pouco para descansar...

- Você estava me espiando, não é? – a garota começou a ficar com raiva – Seu tarado! Você vai tomar uma lição! – ela saiu do lugar onde estava e começou a correr em direção à calçada, onde estava Roberto – ZAN-TETSU-SEN!!!

Ao ver que a garota estava se aproximando, Roberto se abaixou e conseguiu se desviar da lâmina da espada. Sem atingir o alvo desejado, a arma cortou um pesado galho de uma árvore, que veio a cair na cabeça da garota, desmaiando na hora.

Depois de algum tempo desacordada, a garota acordou. Ao abrir os olhos, percebeu que estava deitada no colo de Roberto, que a socorreu e estava sentado em um banco do parque, próximo ao lago. Diferente da última vez, não expressou o sentimento de raiva ao ver o rapaz e começou a falar, de forma pausada e calma.

- Ah... O que aconteceu?

- Bem, você tentou me atacar, mas atacou uma árvore e um galho caiu na sua cabeça – Roberto novamente falava em japonês – Mas não foi nada de grave. Sente-se bem?

- Eh... Agora estou bem, só com um pouco de dor de cabeça... Obrigado por ter me socorrido... Você fala japonês muito bem para um ocidental. Como é o seu nome?

- Me chamo Roberto. Pensou que te deixaria largada desmaiada no chão? Se eu fiz algo de errado durante o seu treino, peço desculpas agora. Não queria te atrapalhar...

- Eu que quero te pedir desculpas por ter te atacado, Roberto – a garota pronunciou o nome do rapaz corretamente – Não aprendi nada desde que deixei o Japão... Você não tem cara de tarado, ao contrario de um cara com quem convivi durante vários anos antes de vir para cá...

- Ah... Obrigado... Epa, ainda não sei o seu nome...

- Meu nome é Motoko Aoyama. Desculpe por não ter falado o meu nome antes...

- Tudo bem, Motoko... Olha, por que a gente não sai deste parque e vai comer alguma coisa aqui perto. Vejo que você está com uma cara de fome – Roberto abriu um leve sorriso – Eu pago tudo o que consumir. O que acha?

- Tá bom, Roberto – Motoko ainda estava um pouco tonta, mas conseguiu se levantar.

Roberto e Motoko caminharam pelo parque até alcançar o estacionamento, onde ele apontou o seu braço para uma pequena, mas moderna, lanchonete instalada em um moderno posto de combustíveis do outro lado da rua, já no trevo de saída da cidade. Ao entrar no estabelecimento, Roberto pediu para a balconista, uma descendente de japonesa e velha conhecida dele, que preparasse dois mistos quentes.

- Espero que goste de misto quente, Motoko – disse Roberto, ao sentar no balcão.

- Misto quente? O que é isto? – Motoko ainda não conhecera vários pratos da culinária ocidental, sobretudo a brasileira.

- Bem, misto quente é um sanduíche feito de pão tipo francês, presunto e queijo, onde todos os ingredientes são derretidos em uma chapa – Roberto percebeu a balconista chegando com os lanches – Não é ruim, você vai gostar. Nunca provou pratos ocidentais, Motoko?

- Não, Roberto... Foram raras as vezes que não comi algo que não fosse da culinária japonesa...

- Ah, então vai gostar deste misto... Vai, dá aquela mordida e depois me conte o que achou.

Motoko pegou o sanduíche que estava no prato e deu uma leve mordida. Mastigou um pouco e depois deu uma outra mordida de leve...

- E aí, gostou do lanche, Motoko? – perguntou Roberto.

- Eh... Até que não é ruim... Para quem comeu sushi a vida inteira, até que este lanche é bom... – e Motoko comeu o lanche até o final.

Quando todos terminaram de comer, Roberto pagou os dois lanches ao caixa e, junto com Motoko, deixaram a lanchonete, seguindo para o estacionamento do parque. Antes de atravessarem a rua, Roberto percebeu que um grupo de caminhoneiros que estava no posto, enquanto seus caminhões eram abastecidos, observavam Motoko com os seus olhares mostrando uma expressão de curiosidade. Inclusive um deles fez um gesto com as duas mãos, como se estivesse tentando mostrar o tamanho de algo e o grupo começou a rir de forma quase escandalosa. Roberto percebeu que eles estavam vendo a espada que Motoko estava carregando e fazendo gracinhas sobre ela, pois o grupo não parava de dar risadas.

Ao chegar no estacionamento, Motoko se aproximou da sua scooter, levantou o assento do veículo e tirou um suporte para a sua espada e o seu capacete. Pegou a sua espada e a embainhou no suporte, colocando-a nas costas.

- Roberto, obrigado pelo lanche. Realmente eu estava com muita fome... – Motoko arrumava a fivela do capacete enquanto falava.

- Que isso, Motoko? Sou assim, gosto de ajudar os outros... Mora aqui em Vale Verde?

- Moro sim, perto daqui, em Nihonbashi. E você?

- Bom, moro no Jardim Europeu, a quatro quadras daqui. Vai para casa?

- Sim, já está tarde e eu treinei bastante hoje. Mas todo dia venho para este parque. Você virá amanhã aqui, de tarde?

- Eh... Estou de férias do trabalho, então posso vir aqui amanhã. A que horas posso aparecer?

- Às 16:00, tudo bem? – Motoko montou na sua scooter e ligou-a – Roberto, acho que vou precisar da sua ajuda para me adaptar aqui. Não fiz nenhum amigo, minhas amigas ficaram no Japão e ainda me sinto insegura com este choque cultural.

- Tudo bem... Quer o número do telefone da minha casa?

- Desculpe, não tenho telefone celular... Pode me dar amanhã?

- Tá bom, amanhã eu dou. Bem, Motoko, acho que somos amigos agora, não acha?

- Bem, nunca fiz amizades com homens, exceto com um rapaz que era gerente da pensão onde eu morava perto de Tóquio chamado Keitaro Urash... – de repente, Motoko sentiu uma sensação estranha, um pensamento surgiu na sua cabeça, abaixou lentamente a cabeça e lágrimas começaram a rolar dos seus olhos. Com medo que Roberto visse o seu rosto abatido, colocou o capacete com a viseira fechada – Sinto muito, Roberto. Tenho que ir. Até amanhã – disse Motoko, com a voz abafada pelo capacete; em seguida, ela manobrou a sua scooter e deixou o estacionamento do parque rumo à parte oeste da cidade.

Parado no estacionamento, Roberto sentia uma sensação esquisita. Uma sensação que mexia com o seu coração. Algo que nunca tinha sentido antes. Aquele dia fora corrido, mas fora um dia maravilhoso para ele, pois fizera amizades com duas japonesas maravilhosas. Entretanto, a imagem da Motoko não saía da sua cabeça.

- Será que sinto algo pela Motoko? – pensou Roberto para si mesmo, enquanto seu coração batia em disparada – Sou um burro! Por que não conversei mais com ela hoje? Eu poderia ter conhecido-a melhor hoje!

Após ficar um bom tempo pensando em si mesmo, Roberto percebeu que o céu estava escurecendo. O dia estava acabando e era quase a hora do jantar. Começou a caminhar e deixou o estacionamento do parque rumo à sua casa, sem tirar a Motoko da sua cabeça.