CAPÍTULO 4

Após andar alguns quarteirões com a sua scooter, Motoko finalmente chegou à residência onde morava com a irmã desde o início do mês em Vale Verde, no nobre bairro de Nihonbashi, região central. Ao ver que o portão da garagem de casa estava aberto, entrou cuidadosamente com o seu veículo e o estacionou em frente a uma grande e imponente residência, considerada uma das mais antigas construções da cidade; desceu da scooter, tirou o capacete, pegou a sua espada que estava nas costas e caminhou rumo à porta principal da casa, com a espada em uma mão e o capacete em outra.

Entrando em casa, Motoko tirou os seus chinelos de madeira, colocou um outro par de chinelos de pano e pisou no tatame da sala. Tsuruko Aoyama viu que a sua irmã havia chegado e foi ao encontro dela.

- Motoko! Que bom que chegou! – Tsuruko abriu um sorriso ao ver a irmã.

- Oi, irmã... Eh, estou cansada... Treinei a tarde inteira hoje...

- Que bom, minha querida Motoko. Esta é a vida de um samurai: treinar, treinar e sempre manter a disciplina.

- Verdade, irmã – Motoko sentia-se um pouco cansada e sonolenta, depois de uma tarde inteira de treinos no parque e do primeiro encontro com Roberto – Cadê o Hideki, irmã?

- O Hideki teve que viajar. Foi para uma cidade chamada Belo Horizonte participar de um seminário e só volta no fim de semana – Hideki era o marido de Tsuruko. Engenheiro da West Japan Heavy Metals Co., controladora da Sidernibra, ele estava naquele instante em um seminário sobre mineração em Belo Horizonte. Um fato curioso foi que Hideki adotou o sobrenome “Aoyama” ao casar-se com Tsuruko, por causa de uma tradição da família da Motoko que exigia do noivo a adoção do sobrenome do clã ao se casar com uma mulher membro da família.

- Sei... Mal chegou ao Brasil, já está viajando por aí pela empresa... E a sua loja, irmã? Como foram as coisas hoje?

- Motoko, estou espantada com o movimento! – Tsuruko era a dona da badalada e famosa loja Nishi Gyoen (Jardim Ocidental), juntamente com uma sócia do Japão – Mas isso, eu irei falar depois, pois chegou uma pessoa que vai morar com a gente e trabalhar na loja. Ela foi à cozinha e... – Tsuruko sente que alguém está chegando – Ela vem vindo.

Motoko imediatamente reconheceu a pessoa que estava caminhando desde a cozinha, com uma lata de refrigerante em uma mão e um pacote de batatas fritas em outra mão. Era uma velha conhecida dos seus tempos na Hinatasou.

- Não acredito... KITSUNE!!! Você aqui?!?

- Ei, Motoko! Virou motoqueira agora? – Kitsune observava o capacete preto que Motoko estava segurando – Amiga, estava com tanta saudade de você! – Deixou as suas coisas no tatame e a abraçou fortemente.

- Kitsune! Eu que estava com muitas saudades de você... – Motoko também abraçou fortemente a sua amiga – Na última vez que te vi, você estava bêbada no sofá depois da festa da minha despedida. Mas, o que você está fazendo aqui?

- Ah, sua irmã me chamou para trabalhar na loja dela. Ela me disse que ela está fazendo muito sucesso aqui. É verdade, Motoko?

- É verdade sim, Kitsune – Motoko ainda estava eufórica com a vinda da sua amiga – Ela abriu a loja juntamente com uma amiga dela de Shizuoka no começo deste ano, e até agora o movimento está muito grande. Virou uma mania aqui na região.

- Que bom, Motoko, pois eu não agüentava mais a melancolia em que se transformou aquela pensão. Você devia ver como aquilo caiu depois que você saiu...

- Eh, fiquei sabendo... – Motoko baixou a cabeça por um instante por causa de um pensamento que veio à sua cabeça – Me conte direitinho o que aconteceu na Hinatasou depois que eu saí.

- Motoko, vou contar sim, mas vai ser um pouco longo – disse Kitsune – Vamos sentar e aí vou contar tudo.

Kitsune pegou o seu saco de batatas e seu refrigerante que estava no tatame e colocou em uma mesinha que estava em frente ao sofá da sala. Motoko também colocou na mesa sua espada e seu capacete, e sentou no sofá ao lado da sua amiga.

- Bem, vamos começar – Kitsune respirou fundo – O clima na pensão ficou bem mais pesado e bem menos alegre depois que você saiu. Os seus treinos e os seus golpes no Keitaro praticamente faziam parte da rotina da Hinatasou; depois que você saiu, a pensão perdeu a graça, todos sentiam a sua falta... A Kaolla, por exemplo, caiu em depressão profunda, pois ela sentia demais a sua falta; ela chegou ao ponto de ficar um dia inteiro sem falar com ninguém. Você era muito importante para ela, Motoko...

- Eu sei, Kitsune – Motoko disse com uma voz bem baixa – Já sabia que a Su iria reagir deste jeito... E como ela estava quando você deixou o Japão?

- Bom, a Kaolla saiu da pensão duas semanas depois da sua saída e deixou o Japão. Ela quis voltar para Moru Moru, onde ela se recuperou da depressão, e hoje ela está estudando em um colégio feminino em Atlanta, nos Estados Unidos. Mas ela liga quase todos os dias para falar com o Keitaro. A última notícia que tive sobre a Kaolla é que ela estava testando um novo modelo de bomba com um tipo de gás de sua criação nos Estados Unidos...

- Ah, a Su com as suas armas e mechas... - Motoko deu um leve sorriso ao se lembrar da Kaolla – Era divertido ver ela jogando aquilo em cima do Urashima... – voltou-se para Kitsune – E a Shinobu? Como ela vai?

- Também deixou a pensão, Motoko. Uma semana depois da saída da Kaolla, o pai dela apareceu na Hinatasou e disse que a buscaria para morar com a família, que estava se mudando para Nagano. A princípio, Shinobu não aceitou e o Keitaro fez de tudo para convencer o pai dela para não leva-la. Mas não teve jeito: Shinobu passou dois dias na nova casa da família de Nagano e gostou tanto de lá que voltou para a Hinatasou, arrumou suas coisas e se mudou definitivamente para lá.

- Que pena... – disse Motoko – Ela que deixava a pensão com um ar mais alegre com o seu jeito meigo e humilde...

- Já a Mutsumi recebeu a visita da sua tia, que viera de Okinawa. Ela disse que tinha se mudado para Sumida, em Tóquio e a convidou para morar com ela. Ela aceitou e deixou a casa da Haruka. Já a Sarah, a ianque, virá para cá em algumas semanas com a Haruka, que decidiu viver com o Seta, que está fazendo algumas pesquisas arqueológicas das tribos brasileiras aqui na região...

- O Seta está aqui? – interrompeu Motoko.

- Ué, não sabia? – respondeu Kitsune, surpresa – Ele está aqui desde o ano passado. Ele foi contratado por uma universidade de uma cidade próxima daqui chamada Sorocaba e ele dá aulas no recém-criado curso de Arqueologia nesta universidade, e ainda participa das escavações arqueológicas aqui perto. Inclusive ele está morando aqui nesta cidade.

- Puxa, desta eu não sabia... Como é que nunca vi ele aqui?

- Talvez seja porque ele nunca está na cidade... E a Haruka vai abrir uma casa de chá na loja da sua irmã, igualzinha à que ela tinha lá em Hinata.

- É mesmo! Agora que me lembrei... A minha irmã disse isso para mim há alguns dias... E a Naru? Como ela está?

- Sobre a Naru, Motoko, é melhor eu falar do casamento dela. Você perdeu, amiga! Foi um casamento memorável!

De repente, Motoko sentiu algo dentro dela, baixou a cabeça e colocou a sua mão direita na testa.

- Tá se sentindo bem, Motoko? – perguntou Kitsune, preocupada.

- Não, estou legal... Pode falar sobre o casamento...

- Vamos lá, então... O casamento do Keitaro e da Naru ocorreu no primeiro dia do ano, naquele santuário xintoísta perto da pensão. Todo mundo veio para a celebração, exceto você e a sua irmã... Fazia muito frio naquele dia, mas o casamento foi simplesmente memorável. A Naru estava com um belíssimo quimono cerimonial, feito exclusivamente para ela, e o Keitaro também estava usando um quimono masculino feito sob medida para a cerimônia. Motoko, você devia ver a cara do Keitaro no altar; ele não parava de chorar de emoção! Na hora que o sacerdote anunciou oficialmente a união, os dois deram aquele beijo que entrou na história... Ah, a festa na pensão foi maravilhosa, digna de... - Kitsune percebeu que Motoko não parava de chorar – Motoko, o que houve? Você não está bem, eu sei disso...

Motoko não respondeu a pergunta de Kitsune.

- Já sei... – disse Kitsune – Você ainda gosta do Keitaro, não é? Me lembro que você não aceitou o casamento dele com a Naru...

- Kitsune, eu ainda gosto muito dele! – Motoko continuava a chorar – Se eu estivesse naquele casamento, eu o raptaria dos braços daquela mulher e o levaria comigo para bem longe! Não sei o que eu faço, Kitsune! Não consigo tirar ele da minha cabeça!

- Não acredito que você ainda está assim, Motoko. Quando você nos deixou, você estava deste jeito! Por que não procura um especialista para se tratar? Você tem que esquecer o Keitaro! Ele gosta da Naru! Será que só você ainda não entendeu?

- Estou tentando esquecer, Kitsune... Mas está difícil... Antes de eu vir para cá, pensei até em me matar, pois não agüentava mais esta dor dentro de mim. Nunca mais falei com o Urashima desde que cheguei aqui, e isso foi bom para não agravar a minha tristeza... Mas, eu sou forte, ainda vou superar este trauma... Pode ter certeza...

- Que bom, Motoko! – Kitsune respirou aliviada – Agora que os dois se casaram e a pensão está quase vazia, eles vão se mudar dentro de poucas semanas para um pequeno apartamento em Mitaka, em Tóquio; e a vovó, juntamente com a Kanako, vai transformar a pensão em um hotel turístico e de eventos. O prédio foi tombado pelo Patrimônio Histórico há alguns dias e não pode ser demolido. Como vê, a nossa Hinatasou acabou; todos foram para cada canto... Mas, fazer o quê... É a vida...

- Tem razão, Kitsune... Nada é eterno, realmente...

Enquanto as duas amigas conversavam, Tsuruko apareceu na sala de estar e as convidou para o jantar que estava na mesa. As três mulheres se sentaram na mesa da sala de jantar e saborearam yakisoba, tempura, missoshiru, shabu-shabu e hakumai (arroz moti). Após o jantar, Motoko se despediu de Kitsune e Tsuruko, pegou a sua espada e seu capacete que estava na mesa da sala, e se dirigiu para o seu quarto. Dentro do quarto, onde existia um futon, uma armadura de samurai ao estilo medieval japonês, algumas faixas com ideogramas pintados a mão, um armário e uma mesa com um computador conectado à internet, Motoko treinou mais um pouco com a sua espada, enquanto observava as luzes da cidade e da Sidernibra brilhando na janela. Depois de uma hora treinando, colocou o seu pijama, fez a sua higiene pessoal no banheiro e deitou-se no futon, colocando a sua espada bem ao lado dele. Motoko demorou para adormecer, pois um uma pessoa não saía de jeito nenhum da sua cabeça, e esta pessoa, pela primeira vez em anos, não era Keitaro Urashima.