Após uma noite de um sono pesado e sem sonhos, Motoko abriu os olhos. No quarto, ainda imperava a escuridão, interferida apenas por alguns raios de sol que atravessavam as frestas da janela do quarto. Virou-se no seu futon e pegou um pequeno relógio que estava ao seu lado; o mostrador em LCD marcava 05:30 AM. Em seguida, levantou-se e, ainda meio sonolenta, caminhou até o interruptor e acendeu a luz do seu quarto. Logo, o seu futon, uma antiga armadura de samurai, pinturas japonesas tradicionais e uns poucos móveis apareceram como se tivesse surgido da escuridão que reinava até uns segundos atrás. Caminhou até o pequeno armário, tirou o seu pijama, vestiu a sua tradicional hakama vermelha e seguiu para o banheiro da pensão com a sua escova dental.

Ao caminhar pelo corredor da pensão, Motoko percebeu que todos estavam dormindo. Não havia nenhum sinal de vida no prédio, apenas os sons dos seus passos sobre o tatame. Entrou no banheiro, fez a sua higiene pessoal matinal e voltou para o seu quarto, onde pegou a sua espada; logo, desceu as escadas do prédio e se dirigiu para os fundos da pensão. Motoko se virou em direção à cidade de Hinata e observou o lento nascer do sol na baía de Sagami. Desta forma, ela começou o seu treinamento diário com a sua espada, com movimentos alternados e velozes.

Motoko sentiu que alguém estava vindo e ficou em posição de guarda, com a sua espada preparada para qualquer imprevisto. Uma voz masculina surgiu por trás de uma árvore:

- Bom dia, Motoko-chan! Já treinando a esta hora da manhã?

- ZAN-GAN-KEN! – gritou Motoko, que derrubou a árvore com um golpe da sua espada – Quem está aí, me espiando logo cedo? Apareça, covarde!

- Calma, Motoko-chan... – Keitaro surge por trás da árvore destruída – Não precisava aplicar este golpe com tanta intensidade...

- Ah, Urashima... Já me espiando logo de manhã? Perdeu a vergonha de vez?

- Não, que isso? – Keitaro estava tremendo de susto – Só vim para te chamar para o café, que já está na mesa... Está muito frio; não quer se esquentar lá dentro?

Motoko aceitou o convite do jovem gerente da pensão e o acompanhou até o refeitório. Lá dentro, observou a mesa pronta para o café. Já sentadas estavam Naru, Kitsune, Haruka, Mutsumi e Sarah. Motoko puxou a cadeira e sentou ao lado de Haruka-san, que estava lendo a edição daquele dia do jornal Nippon Shimbun, cuja manchete de capa era a seguinte:

PROTESTOS CONTRA O JAPÃO SE ESPALHAM POR TODA A EUROPA

- Bom dia, Motoko – disse Haruka, ao ver uma das hóspedes da pensão sentando ao seu lado – Treinando com este frio?

- Bom dia, Haruka-san... – Motoko começou a falar com a sua típica voz calma e pausada – Lutar e treinar, esta é a vida de um samurai. A espada é a minha vida e treinar toda manhã é a minha obrigação moral.

- Você deve ser bem corajosa para treinar kendô com um frio destes – disse Kitsune, bem agasalhada e com um par de hashis em suas mãos – Se fosse você, ficaria deitada para dormir mais um pouco. Pena que hoje tive que acordar mais cedo, pois vou ter que dar uma geral no meu quarto...

- Finalmente você vai dar uma ordem naquela bagunça, hein, senhorita Mitsune? – Naru olhou para ela com um olhar de desconfiança – Ontem mesmo já estava impossível de viver dentro daquele lixão! Que bom que você vai dar um jeito lá, pois eu já estava querendo limpar aquilo lá... – virou-se para Keitaro – E a morte do turista que ocorreu aqui perto, em Kawasaki? Quem iria imaginar que daria nisso que estamos vendo nos meios de comunicação, Keitaro?

- Naru, realmente a imagem da nossa nação lá fora ficou bem arranhada. Como pode um membro da Yakuza matar um dinamarquês que estava fazendo turismo aqui só porque se confundiu com o rapaz que realmente estava marcado para morrer, e ainda dá mais sete tiros só porque odeia ocidentais?

- Eh, e a coisa está pegando fogo lá na Europa – Haruka começou a passar o jornal do dia com fotos dos protestos para cada um na mesa – Eles exigem que o governo faça uma investigação séria e que os culpados sejam punidos de forma exemplar. Veja esta foto, em Frankfurt; deu até briga com a polícia local.

- Esses ocidentais... – Kitsune interrompeu a fala de Haruka com um tom irônico – Qualquer coisinha é motivo para quebrar tudo e todos... Agradeço até hoje por ter nascido japonesa, fazer parte de um povo batalhador, honesto e ordeiro...

Naru, ao pegar o jornal, observou pela janela do refeitório que alguém acabara de entrar no jardim externo da pensão.

- Bem, chegou alguém... Keitaro, vai lá ver quem é...

- Quem, eu? Não seria melhor você? Tá um frio lá fora e ainda tenho que me trocar para ir para a Universidade...

- Vai logo, sua besta! – Naru se levanta, dá um soco no Keitaro e o levanta do chão com apenas uma mão – Vai lá, depressa! Você é o gerente desta pensão!

Keitaro desceu as escadas da pensão e foi até a porta. Uma pessoa estava à espera do lado de fora. Era Emi Ichikawa, amiga da Motoko.

- Motoko, a Emi está te esperando lá embaixo na porta – Keitaro foi avisar a jovem samurai no refeitório – Ela disse para se apressar, pois ela já está de saída.

Ao ouvir o recado da gerente, Motoko se levantou da mesa e se dirigiu para o seu quarto, onde rapidamente se trocou de roupa. Com uma mochila nas costas, desceu as escadas e se dirigiu à amiga que estava esperando-a na porta principal da Hinatasou.

- Emi! – Motoko abriu um raro sorriso e curvou-se para a amiga - Bom dia!

- Bom dia, Aoyama-senpai! E então, vamos indo para o cursinho? Hoje vai sair o resultado do simulado do vestibular da Universidade de Tóquio que a gente fez semana passada...

- Claro! Como vê, estou pronta! Me sinto melhor depois de um treino durante o nascer do sol que fiz há pouco.

- Legal, Aoyama! Ah, hoje a gente vai na minha scooter até Tóquio. Aceita se aventurar em duas rodas, amiga? Tá frio hoje, mas vejo que está bem agasalhada...

- Ah, tudo bem – Motoko ajeitou a sua blusa preta de couro – Mas, Emi, pare de me chamar de Aoyama. Me chame só de Motoko...

- Tudo bem, amiga – Emi rebateu com um sorriso – Vamos logo que estamos atrasadas!

Antes de seguir para o estacionamento da Hinatasou, Motoko se virou e viu o Keitaro na porta da pensão.

- Urashima, vê se te cuida lá na Toudai, hein? Se eu souber que você aprontou algo lá com as alunas ou com a Naru, você será um homem morto! Entendeu?

- Tá, pode deixar, Motoko-chan – Keitaro respondeu enquanto se esquentava com as mãos – Prometo que não vai acontecer nada lá.

Motoko soltou um sorriso irônico para Keitaro e seguiu Emi até o estacionamento da pensão. Lá, Emi ligou o motor da sua Suzuki Burgman e tirou dois capacetes fechados do porta-objetos localizados debaixo do assento do veículo. Motoko pegou um capacete, o vestiu e subiu na garupa da scooter. Poucos minutos depois, as duas amigas saíram pelas ruas de Hinata rumo à cidade de Tóquio.

Seis horas da tarde. Hora do rush na rodovia Raposo Tavares. Milhares de veículos circulando a toda velocidade nas duas pistas da auto-estrada, que outrora fora conhecida como a “estrada da morte”. Roberto observava o frenético movimento de veículos na pista contrária através da janela do ônibus. Ao fundo, o sol se punha atrás do skyline da cidade de Sorocaba, dando fim a mais um dia tórrido na primavera do sudeste brasileiro.

Dentro do ônibus, ouviam-se algumas vozes de conversas entre os passageiros, sempre tendo ao fundo o ronco do motor Volvo localizado na traseira do veículo. Não tendo ninguém para conversar, Roberto pegou o seu aparelho de MP3, colocou o fone no ouvido e colocou uma música do Neil Young para tocar; logo que começou a música, relaxou na poltrona e virou a cabeça para a janela, observando o tráfego da estrada e o pôr-do-sol.

Entretanto, mal Roberto começava a relaxar na sua poltrona quando o ônibus saiu da rodovia e contornou uma alça de acesso até entrar na Avenida Pereira Ignácio, uma das principais vias de acesso à Sorocaba. Em questão de poucos minutos, o veículo atravessou a avenida e parou em um grande portal; aquele era a entrada do campus central da Universidade Metropolitana Sorocabana, uma das maiores e melhores universidades do interior do Brasil. Ao deixar o portão, o motorista manobrou o veículo no estacionamento e o parou, desligando o motor.

“Graças a Deus, cheguei”, pensou Roberto, meio sonolento, mas bastante preocupado com uma avaliação na qual ele iria se submeter naquele dia na aula de Cálculo. Após se levantar da poltrona, pegou a sua bolsa e saiu do ônibus, deixando o ambiente gelado do ar condicionado do veículo e passando a sentir o ar quente do clima de Sorocaba.

Ao caminhar pelo estacionamento rumo a uma dos blocos da universidade, uma voz masculina com sotaque francês chamou por Roberto:

- Ei, Roberto! Como vai, ô português?

- Ah, é você, Pierre... – Roberto reconheceu a pessoa. Era seu amigo de classe, Pierre – Cara, quando você vai parar de me chamar de “português”?

- Calma, amigo! – Pierre soltou um sorriso – Só estava brincado... Quem mandou ter este sotaque de português? – cumprimentou Roberto com um aperto de mão - E aí, tá sabendo da última?

- Claro que estou, Pierre. A última é que vou me ferrar legal na prova do professor Carlos Almeida... Não entendi nada da matéria; ele não dá uma aula produtiva...

- Ah, mas a novidade não é esta. Sabia que o “Girassol” não poderá vir hoje? A prova foi cancelada, amigo! – Pierre colocara o apelido de “Professor Girassol” no professor de Cálculo deles, o prof.º Carlos Almeida, pois ele era bem parecido com o personagem criado pelo cartunista belga Hergé, inclusive no óculos...

Ao ouvir o amigo, Roberto teve uma sensação de alegria inexplicável.

- Não acredito, cara! Verdade? Como soube disto, Pierre?

- Tem um aviso lá dentro, no mural. Vamos lá dar uma olhada.

Os dois amigos rapidamente subiram as escadarias do prédio e entraram no saguão, se dirigindo ao gigantesco mural de avisos do Departamento de Engenharia da Universidade. Entre os vários cartazes e recados, encontraram o aviso no qual Pierre havia se referido lá fora:

HOJE, EXCEPCIONALMENTE, O PROFESSOR CARLOS ALMEIDA RIBEIRO LIMA NÃO DARÁ A AVALIAÇÃO DE CÁLCULO II MARCADA PARA HOJE. NOVA DATA PARA A PROVA SERÁ MARCADA EM BREVE.

- Você viu, português? – Pierre apontou para o recado – Me contaram que a irmã do “Girassol” faleceu e ele teve que ir até Limeira para o enterro...

- Eh, que Deus o ajude nesta hora tão difícil para ele. Mas, praticamente perdi a viagem. Vou ter que voltar para casa...

- Tudo bem, amigo. Estou com o carro do meu pai aqui hoje. Quer uma carona até a rodoviária, Roberto?

- Aceito sim, Pierre – Roberto retribuiu o convite com um sorriso – Bom, pelo menos vou ter algumas horas a mais para descansar – e deu uma leve risada.

Logo, Roberto seguiu Pierre até um Peugeot parado no estacionamento. Ambos entraram no carro e saíram pela avenida Pereira Ignácio rumo à rodoviária de Sorocaba; lá, Pierre deixou o amigo, que iria pegar um ônibus de linha para a sua cidade, Vale Verde. Roberto comprou a passagem, se dirigiu para plataforma, onde o veículo já estava parado, e embarcou nele; o coletivo saiu da estação cinco minutos depois, alcançando a rodovia Raposo Tavares para depois seguir para Vale Verde. No céu, o sol já estava se escondendo atrás do skyline da cidade e do morro Araçoiaba. Terminava assim mais um árduo dia na vida de Roberto José Antunes.