Both of us

A visita dos fantasmas.


— Lucas! – exclamou a loira, aproximando-se e se sentando no apoio de braço da poltrona. Piscava para ele com seus cílios grandes e volumosos, destacando os olhos tempestuosamente cinzas. Um blush rosado reforçava o desenho natural de seu rosto, as maçãs do rosto finas e o queixo delicado. As pernas grossas encostavam nas de Lucas; sua blusa estava levemente desabotoada, deixando seus seios fartos à vista. Gabrielle notou que, por mais que tentasse, o amigo não conseguia deixar de olhar para lá. Envergonhada, abraçou os joelhos e fechou os olhos, desejando que a loira sumisse o mais rápido possível – Tudo ok? Ensaiou bastante?

— Oi, Bel – disse Lucas, parecendo desconfortável – Ensaiei bastante, e a Gabs também, obrigado por perguntar.

— Tenho certeza que você vai se sair bem hoje. Sua voz é realmente muito bonita e melodiosa – elogiou, segurando o moletom do garoto quando quase caiu sentada em seu colo por conta do balanço do ônibus ­­–, e acho que organizarão tudo corretamente antes da apresentação.

— Provavelmente vai estar tudo pronto quando chegarmos, então não terá muita demora. Aliás, você viu... – Gabrielle parou de escutar. O barulho de passos de alunos andando para lá e para cá se tornou mais alto que qualquer burburinho, e esse som lhe era estranhamente familiar. Sua mente se transformou num redemoinho de cenas desconexas e apavorantes, um conjunto de fantasmas malignos que desejavam atormentar e quebrar tudo que estivesse em seu caminho – a felicidade, o conforto e a sensação de bem estar foram substituídos por angústia, saudades e uma tristeza desenfreada.

A cada degrau, maior se tornava o mergulho no profundo mar de dor e culpa que Gabrielle lutava todos os dias para não se afogar; as águas intensas e azuis dos olhos sem vida, em um rosto inexpressivo numa cama de hospital, puxavam-na para o desespero e pânico. Suas mãos agarraram seus cabelos ruivos e macios, puxando-os com força enquanto as lágrimas caíam frescas de seus olhos castanho-esverdeados que, mesmo abertos, não viam nada além que um céu cheio de sangue.

Os flashes iam e voltavam, fazendo-a relembrar da gritaria causada pela briga estúpida que travava, a revolta crescendo dentro de si e explodindo em um monte de palavras carregadas de ódio. Agora sentia que tudo aquilo fora desnecessário e tinha sido o começo de todos os Trágicos Acontecimentos.

Por mais que tentasse, não conseguia emergir. Se desconectar das fortes ondas de arrependimento estava se tornando uma tarefa impossível. Gabrielle sabia que a culpa, no final, era toda dela. Se não tivesse reclamado do maldito instrumento quebrado, nada teria acontecido.

Ninguém teria tropeçado.

— Gabs, você está bem? – indagou Lucas, tentando não gritar para não chamar a atenção de mais gente. Segurava-a pelos ombros, e a preocupação estava estampada em sua face. Já vira Gabrielle naquele estado antes, mas ele achava que tais crises tinham parado.

Ser bruscamente tirada de suas conturbadas memórias a deixou, no mínimo, desnorteada. Sua visão voltou a ter foco e os gritos lentamente pararam, sendo substituídos por murmúrios gerados por quase todas as pessoas presentes. O ônibus não tinha parado, mas se locomovia mais lentamente, ao mesmo tempo em que o motorista perguntava se estava tudo bem.

— Gabs, você está bem? – repetiu. Mesmo sem verificar, Gabrielle era capaz de sentir olhares curiosos sobre si. Embora se sentisse enjoada, assentiu e deixou ser abraçada por Lucas, permitindo que ele lhe trouxesse segurança e conforto, um porto-seguro em meio a confusão que sentia. – Está tudo bem.

— Não, não está tudo bem. Você sabe que não está nada bem, o que aconteceu aqui foi...

— Então vai ficar – interrompeu, abraçando-a com mais força -, eu prometo. Agora você tem que descansar. Feche os olhos e eu cantarei para você. In the night, I hear 'em talk the coldest story ever told...

...

Quando despertou, o azul marinho deleitava-se nas nuvens do vasto céu repleto dos minúsculos pontinhos brilhantes que eram as estrelas. Lucas tinha a boca levemente entreaberta e mantinha os olhos fechados, preso a um sono profundo. Gabrielle ainda era envolvida por seu abraço, o tecido do moletom acariciando seu rosto. Sentia-se em paz, comparada ao que havia sofrido no início da viagem. Afastou os pensamentos ruins e concentrou-se no calor que Lucas lhe transmitia; poderia ter ficado ali por muito tempo, mas a fome interrompeu seu momento de apreciação.

Saiu do abraço com o máximo de cuidado que pode, suspirando alto ao ver a mochila que repousava aos pés do melhor amigo. Se sua intuição estava certa, certamente teria comida ali. Sentia-se incomodada em mexer em coisas que não lhe pertenciam, mas a fome estava maior que o respeito.

Colocou a mochila sobre o colo, abrindo o espaço do meio, à procura de alguma barrinha de chocolate. Infelizmente, só o que encontrou foram palhetas, uma escova de dente, fones de ouvidos e vários papéis de bala vazios, além de um envelope preto sem remetente ou destinatário. Embora sua curiosidade fosse grande, devolveu-o ao seu devido lugar e fechou o zíper. Partiu, então, para o bolsinho menor.

Um bloquinho azul recheado de uma escrita nada caprichosa foi a primeira coisa que encontrou. Se se recordava bem, ali era onde Lucas escrevia ideias aleatórias para músicas que lhe surgiam à mente de vez em quando. Deixou-o de lado, continuando a explorar. Mais papéis de bala vazios, canetas coloridas sem tampa e um saquinho prateado que lhe chamou atenção e fez suas bochechas corarem instantaneamente.

Camisinhas.

Não entendia porque estava tão surpresa. Lucas era excepcionalmente bonito e, bem diferente dela, popular. As garotas praticamente pulavam em seu pescoço e ofereciam seu corpo sem reclamar, e seria realmente muita ingenuidade imaginar que ele não aproveitava, mesmo que dificilmente o visse chamando alguém de namorada. Talvez devesse ficar chateada por ele nunca lhe contar sobre seus "romances", mas na verdade agradecia aos céus por ter tais fatos omitidos. Não seria nada bonito o garoto por quem estava apaixonada contando sobre suas aventuras com outras garotas.

Deixou esses devaneios de lado e continuou sua procura. Puxou a carteira de couro falso que se escondia em meio a imensidão de lixo inútil e, sem se importar se estava indo longe demais com a intromissão, abriu-a e analisou seu conteúdo. Não se interessou pelo cartão de crédito, a carteirinha escolar e nem mesmo as duas notas de cinquenta reais que estavam perfeitamente dobradas e cuidadosamente colocadas na abertura que lhe eram destinadas conseguiram tomar sua atenção.

Quando a carteira foi aberta, a primeira coisa que Gabrielle viu foram as diversas fotos em miniatura que haviam sido colocadas em lugares que provavelmente eram destinados a cartões de visita. Uma menininha de cabelos curtíssimos e castanhos inflava as bochechas na primeira fotografia, sentada ao lado do garotinho de cabelos no ombro que mostrava língua para a câmera. A seguir, as fotos mostravam o crescimento dessas crianças conforme os anos, como quando o garoto decidiu abandonar os cabelos longos; ou como tornara-se forte ao ponto de levantá-la acima dos ombros; e o momento em que a garota decidiu abandonar a cor de suas atual longas madeixas, mudando-as para o ruivo acobreado, passando a esconder-se nas maquiagens e roupas longas.

No último quadro, os dois vestiam roupas ridículas. A ruiva, lançando suas pernas sobre o colo do moreno, tinha orelhinhas rosa e pontudas se sobressaindo sobre seu cabelo e bigodes pretos de gato colados em sua bochecha; a ponta de seu nariz tinha sido pintada de preto, e seu lábio superior tinha um tom de rosa mais escuro que o inferior. O garoto trajava uma roupa toda laranja, com listras pretas aqui e ali, sendo facilmente reconhecido como um tigre. Também tinha uma tiara com orelhas, e abria a boca como se rugisse. Aquela foto tinha sido tirada há duas semanas, e ela sequer sabia que o amigo tinha uma cópia dela.

— Ei, Ruiva, por que está mexendo nas minhas coisas? – indagou Lucas, espreguiçando-se na poltrona e tirando o sorriso bobo de Gabrielle do rosto. Encarou-o e depois as fotos, corando. É claro que aquilo não daria certo.

— Eu estava procurando comida, então achei sua carteira e... Eu sei que isso é invasão de privacidade, mas – começou, guardando as coisas dentro do bolso da mochila – eu fiquei realmente curiosa e comecei a xeretar. Aliás, ONDE É QUE VOCÊ ESCONDEU A COMIDA, SEU INGRATO? HOSPEDEI VOCÊ NA MINHA CASA POR UM MÊS E MEIO E É ASSIM QUE VOCÊ ME AGRADECE? – berrou, fazendo a expressão mais dramática que conseguiu, sem se importar com o escândalo que estava fazendo.

Lucas gargalhou, puxando a mochila para si. Abriu a parte maior e retirou de lá dois sanduíches bem embrulhados, sorrindo exageradamente ao ver o brilho nos olhos de Gabrielle, que pegou um numa rapidez sobre-humana.

— É o seu favorito – avisou Lucas.

— Eu já disse que você é o melhor, mais bonito, inteligente, fofo, amável e nada másculo melhor amigo que existe?