Both of us

Musical de sanduíche


Depois de comerem seus sanduíches, juntaram-se a cantoria que começou no fundo do ônibus e se espalhou imediatamente pelo resto, até que alguém começou a improvisar com o violão, fazendo-os intercalar músicas que relembravam a infância com outras mais atuais. Rapidamente, as vozes se adequavam umas as outras, transformando-os numa espécie de coral descolado.

— I’m blue da ba dee da ba die – cantarolou Lucas, sendo acompanhado por todos os outros alunos enquanto o ônibus parava e todos começavam a sair apressadamente, em êxtase. Os dois amigos acabaram sendo os últimos a descerem e pegarem suas malas, despreocupados com qualquer tipo de atraso que poderiam ter.

Gabrielle se desajeitava enquanto tentava manter alinhadas as rodinhas de sua gigantesca e pesada mala e ao mesmo tempo segurar a case de sua guitarra sem causar algum dano a ela. Lucas ria, fingindo não estar notando o pedido silencioso por auxílio.

— Gabs? – chamou, enquanto finalmente a ajudava a puxar a mala – Você está bem? – perguntou, retomando a expressão preocupada de antes. A ruiva parou, e fingiu pensar sobre o assunto, apenas para depois assumir um sorriso exageradamente radiante – Uau, eu não sabia que meu sanduíche era tão milagroso!

— Seu convencido! – exclamou Gabrielle, lhe socando levemente o braço e puxando a mala para que continuassem, sentindo que talvez tudo desse certo dessa vez.

***

Mesmo dentro do camarim, Gabrielle podia ouvir as pessoas conversando, rindo, fazendo piadas e tirando fotografias, tudo indicando que as extensas fileiras de poltronas acolchoadas estavam lotadas de gente que esperava ansiosamente pela apresentação teatral que marcava o início do ano letivo na Academia. O nervosismo espalhava-se por seu corpo, correndo em suas veias como um veneno letal, aumentando seus batimentos cardíacos, tirando-lhe o ar e enchendo-a de adrenalina e medo. Encarava seu reflexo no espelho, respirando fundo e mantendo em mente o pensamento positivo de que nada daria errado.

Pôs-se de pé, avaliando a roupa que era obrigada a usar. O vestido branco ia até os joelhos atrás, e na frente se encurtava gradativamente até o meio das coxas. Sua barra era cheia de babados, assim como o decote em V que permitia que o pequeno colar de pingente em forma de gota fosse visto. Suspirou, colocando a capa preta e o capuz que esconderiam sua identidade até o momento certo de revelá-la.

Pegou sua guitarra e deixou o camarim para trás, dirigindo-se até a coxia, onde as pessoas andavam de um lado para o outro, pedindo ajuda com seus figurinos, tentando encontrar o lugar que lhes era destinado ou, assim como ela, esperavam em silêncio o momento em que teriam de entrar em cena.

— Não se esqueçam de tirar a capa de Gabrielle, ou eu tiro o fígado de vocês e sirvo como almoço para todos – pode ouvir Katherine, que dirigia a peça, dizer calmamente para alguns garotos que se vestiam totalmente de preto e estavam a poucos metros dali. Mesmo com seus cabelos loiros presos num rabo-de-cavalo bem alinhado, ela esbanjava beleza, juventude e doçura –, e também bebo o sangue de vocês de canudinho – mas ninguém disse que ela era realmente doce.

Caminhando de lá para cá, ela organizava os últimos detalhes da peça e ameaçava as últimas pessoas, lançando um olhar feroz que fazia com que acreditassem no que ela dizia. Gabrielle prendeu a respiração quando a garota se aproximou dela, encarando-a seriamente.

— Se você errar uma nota sequer, eu vou perceber, e não haverá Lucas que me impeça de meter a mão na sua cara, entendeu?

Qualquer um se perderia naquelas íris azuis-claras, mas Gabrielle só conseguia reparar em como aqueles olhos podiam se tornar tão pálidos se comparados aos que atormentavam sua mente dia e noite.

— Entendi, mestre – afirmou, ignorando que Katherine revirava os olhos e lhe dava as costas -, aliás, você está seduzindo hoje, Cat-rine – falou alto antes que ela sumisse, arrancando risadinhas dos próximos que sabiam há quanto tempo a ruiva havia inventado aquele apelido para a amiga.

Só voltou a ver Katherine de novo quando essa vinha com a irmã empurrando Lucas para o palco. Quando passaram por ela, Gabrielle movimentou os lábios dum jeito que ele pudesse entender um “boa sorte”, recebendo uma piscadela de volta, antes que o garoto fosse devidamente colocado no meio do palco. Num piscar de olhos, as duas se afastaram e as luzes foram ligadas atrás dele, para um jogo de luz. Com Lucas imóvel, o silêncio se instaurou em todo o teatro.

Is this the real life?
Is this just fantasy?
Caught in a landslide
No escape from reality

Lucas dava passos lentos em direção a cortina, sua voz melodiosa ressoando nos alto-falantes, acompanhada de outras que formavam o coro. Ele estava descalço e usava uma calça jeans desbotada e com furos aqui e ali, junto de um suéter branco rasgado em várias partes. O figurino claramente demonstrava que ele era pobre. Devia parabenizar Emilly, a figurinista, depois.

Open your eyes
Look up to the skies and see...

As cortinas vermelhas e grossas se abriram, mostrando a imensidão de gente que os assistia. Expressões curiosas e surpresas estampadas em rostos não tão desconhecidos que esperavam atentamente para saber se aquela apresentação merecia seus aplausos.

Because I'm easy come, easy go
A little high, little low

Surgindo agilmente da parte escura do palco, seis pessoas usando preto da cabeça aos pés se aproximaram de Lucas, metade de cada lado, puxando-o de um lado para o outro e depois para cima e para baixo, seguindo a letra da música. Voltaram à penumbra quando uma mulher apareceu no canto esquerdo do palco, usando um vestido preto que, tirando o decote em U em seu pescoço, lhe cobria inteiramente. Seus cabelos pretos estavam presos num coque, e Gabrielle sabia que ela tinha uma expressão de tristeza no rosto, embora não a visse de frente. O palco se escureceu, restando apenas um holofote nela e em Lucas, que já começara os próximos versos, segurando uma arma de brinquedo.

Mama, just killed a man
Put a gun against his head
Pulled my trigger, now he's dead

Um novo holofote iluminava um garoto que aparecera ajoelhado próximo de Lucas, que fingiu puxar um gatilho pouco antes do garoto cair com um baque leve e voltar a escuridão novamente.

Mama, life had just begun
But now I've gone and thrown it all away

Livrando-se da arma, Lucas se jogou bruscamente de joelhos no chão, as mãos puxando os cabelos, mostrando desespero. Pessoas entravam no palco agora, posicionando-se enquanto a escuridão ainda os escondia e o garoto terminava as frases daquela estrofe e era envolvido pela escuridão também. Gabrielle respirou fundo e caminhou até seu lugar, atrás de todos que já estavam ali, ouvindo atentamente o piano tocando ao fundo e mantendo-se colada a parede para que a luz a ocultasse quando todos saíssem de seus lugares.

Too late, my time has come
Sends shivers down my spine
Body's aching all the time
Goodbye everybody, I've got to go

A luz inundou o palco, revelando os que estavam ali e suas roupas laranjas que, embora não pudesse mais o ver, sabia que Lucas estava usando também. Gabrielle começou a dar seu auxílio a melodia, dando um pouco mais de emoção, embora ainda não fosse seu momento. Caminhando em frente, ele devagar se aproximava da borda, agachando-se lá e começando um uma afinadíssima nota contínua que esbanjava arrependimento.

Hora de agir.

Saindo da escuridão, Gabrielle começou a habilidosamente a tocar seu primeiro solo de guitarra e a se mover para o meio do palco, vendo de soslaio outras pessoas entrando no palco, usando vestimentas de soldados e seguravam uma espécie de lança. De um lado, via-se apenas laranja; do outro, verde.

I see a little silhouette of a man
(Scaramouch, Scaramouch will you do the fandango
Thunderbolt and lightning, very, very frightening me)

Lucas levantou a cabeça e logo depois o corpo todo, mantendo uma expressão surpresa. Passou por Gabrielle, que lentamente se posicionou ao lado do palco e passou a assistir, colocando-se entre as duas massas de cores distintas.

I'm just a poor boy and nobody loves me
(He's just a poor boy from a poor family
Spare him his life from this monstrosity)

Alguns soldados seguravam Lucas pelos braços, prendendo-o, enquanto os condenados aproximavam-se e tentavam lhe puxar para seu lado, enquanto travavam uma luta verbal com os inimigos, até que o caos estivesse instalado.

Bismillah! We will not let you go, let me go
Will not let you go, let me go, never
Never let you go, let me go
Never let me go, oh
No, no, no, no, no, no, no

Lucas tentava se soltar de ambos os grupos, que o puxavam loucamente a fim de trazê-lo para seus lados. Começou a tocar sua guitarra quando ele finalmente conseguiu se soltar, os soldados batendo suas lanças no chão e começando a sair do palco, dando lugar a uma bela moça usando um vestido vermelho provocante e o segundo solo de guitarra de Gabrielle. Dois garotos surgiram repentinamente e tiraram a capa que a cobria, revelando o vestido branco que representava a esperança e os cabelos alaranjados que representavam a paixão.

So you think
You can stole me and spit in my eye
So you think you can love me
And leave me to die


Oh baby, can't do this to me baby
Just gotta get out
Just gotta get right outta here

Lucas estava bem próximo da garota, apontando o dedo no rosto dela e aparentando estar cada vez mais chateado com a forma que ela fazia biquinho e demorava a lhe dar atenção. Decepcionado, ele lhe acariciou o rosto e moveu o rosto dela delicadamente com as mãos, fazendo-a olhá-lo nos olhos.

Com um sorrisinho de lado, Lucas fez algo totalmente fora do roteiro.

Nothing really matters
Anyone can see
Nothing really matters

Deixando a garota sensual de lado, ele atravessou o palco e postou-se de lado de Gabrielle, empurrando a guitarra dela para as costas e abraçando-a fortemente, como se o mundo dependesse daquilo. Surpresa, mas não idiota o suficiente para esquecer que Katherine mataria os dois depois caso ela não fizesse algo, retribuiu o abraço e esperou que as notas de piano acabassem e a escuridão os envolvesse, até que as cortinas fossem fechadas e Lucas a soltasse.

— O que foi isso? – sussurrou enquanto se dirigiam para a fila que os atores que participaram da peça formavam.

— Apenas uma gargalhada na cara do perigo – ele disse, segurando a mão dela e de outro garoto enquanto as cortinas se abriam e eles se curvavam em agradecimento não apenas para o público, mas para si.