Bleed For Me

XIII - A solidez de seus olhos.


As labaredas chamuscavam a Lua como serpentes enfurecidas. A deixa de Valo pareceu acalmá-las um pouco, mas a mansão se fora como os dois: cinzas arrastadas pela brisa noturna. Longe o suficiente apenas para não nos queimarmos, encontrávamo-nos agora numa clareira ilhada entre coníferas e outros pinheiros. Uma enorme queimadura cicatrizava inflamada em meu braço direito, e eu já não mais abraçava Frank. Não há abraços entre os derrotados, há apenas as cinzas e os olhos nublados. Os finais tristes são sempre iguais fora dos filmes.

Frank, na verdade, guardava sua miudeza em um abraço de si para si próprio. No entanto, não se encurvava – pelo contrário. Os olhos eram fixos no céu e não cediam frente ao calor, e seus ombros abriam-se de uma maneira que muito me lembrava Robert Nathaniel Bryar. Frank sequer parecia se preocupar com minha queimadura ou meus machucados.

E eu não encontrava a coragem ou as palavras fortes o suficiente para não serem engolidas pelas chamas. Preferi permanecer quieto – e longe.

Havia também um Michael. Com uns olhos vermelhos, mas não como os de Ville ou os de um drogado qualquer. Era uma fina coroa de sangue que prendia o amarelo óleo de seus olhos, que o impedia de transbordar (como lágrimas? Não sei). Mesmo assim, Mikey nunca me pareceu tão garoto, tão humano como eu o via naquele momento. O círculo de sangue podia ser a única maneira de seu corpo expressar a mais profunda dor que o comprimia. Os pés descalços na fina grama, ele estava imóvel, paralisado, e pequenas presas brilhavam tímidas entre seus lábios.

- O que você está fazendo?

A voz de Frank arranhou sua garganta e o ar enfumaçado em nosso entorno. Rouca como se não fosse usada há dias – o que era verdade –, mas firme de uma maneira que eu nunca ouvira antes. Era uma noite de experiências únicas e inéditas. Carregada como as nuvens que começavam a encobrir a Lua e as poucas estrelas no céu. Ignorava totalmente a minha existência: eram para Michael suas palavras desconfiadas.

O outro desceu o olhar infinito, mas sua atenção oscilava por outros inúmeros assuntos. Ora encontrava-se dentro de si próprio, ora projetava-se acima das nuvens, desaparecia atrás do horizonte. Pergunto-me o que Michael realmente sentia, embora esse verbo talvez seja inadequado. O garoto suava mais do que todos nós, o que justificava as delicadas gotas que escorriam por suas bochechas.

Frank o encarava com os olhos curtos e incrédulos, a boca semiaberta em busca de ar mais puro.

- É com você, magrelo. O que você ainda está fazendo aqui? – Suas mãos desceram para os bolsos enquanto Frank caminhava na direção de Michael. Apedrejava-o com palavras robustas. – Fugir vai adiantar alguma coisa? Valo levou Robert e eu noto obviamente o quanto ele significa para você. E se ele morrer porque você ficou brincando de esconde-esconde consigo mesmo? É isso que você vai dizer em frente ao túmulo dele?

O dos cabelos negros travou a pouco menos de dois metros de um Michael agora visivelmente perturbado. Os olhos semicerrados estavam então cheios e o vermelho parecia querer arrebentá-los, ele ofegava em desespero, e suas mãos tremiam contraídas. Por um momento supus que aquele seria o fim de um Frank ousado e culpado, e minhas palavras saltaram de minha boca involuntariamente.

- Vai na frente que nós vamos depois.

Ainda de sobrancelhas franzidas, ainda procurando dilacerar-nos com dois olhos demoníacos, ele virou-se para mim. Só depois de alguns segundos sua cabeça abaixou-se, os ombros retraíram-se. Suas pernas moviam-se a contragosto e um rastro de rancor era deixado enquanto se encaminhava para as chamas. O rubro de seus olhos deixara de ser um lacre ou uma dor: era agora sua mira.

As chamas logo o afogaram com estalos profundos e, quando a chuva começou a cair, só havíamos Frank e eu entre os sussurros das árvores.

Ele virado para mim evitava as chamas. Eu relutava em admitir, mas Bob pouco me importava naquele momento. Estava apenas buscando uma forma de atrair as palavras certas para o momento; fora Frank, todavia, quem começou, a voz transformada num tom viscoso como seiva.

- Você não está assustado?

Frank continuava de costas, de modo que não sabia o que se passava em seus olhos – mas tinha uma ferrenha suspeita de que sombras anônimas circulavam pelo verde de seus orbes. Ele próprio se escondia da Lua agora, encurvado sobre si próprio.O fato de me dar as costas aumentava minha desconfiança de que não só todos os acontecimentos da noite ainda lhe assombravam a imaginação, como o presente também não lhe era convidativo. O presente e seus sujeitos.

- Tanto quanto você.

Com um medo absurdo de mim mesmo.

Minha voz soava muito mais alta que a do pequeno Iero, e com certeza isso desmentia parte da minha afirmação. Assim que Frank virasse e visse meu rosto consumido pelas trevas, aí não restaria mais dúvida acerca da mentira que eu proferira antes; eu estava assustado, porém nada se compara ao medo do desconhecido.

Em frente a seus olhos conscientes, um vampiro pesaroso conversara com a Lua, um monstro voraz assaltara nossa noite e um rei assombroso fora desmascarado a cinzas. Todo o perigo que se escondia na floresta subitamente invadira o forte que nos protegia, vasculhando cada cena de amor até alcançar seu objetivo, depois de um nocaute perverso nos obstáculos.

Enfim meu pequeno virou-se, a Lua feria suas costas e seu orgulho, seus olhos eram apagados pela sombra que ele próprio fazia. Contra a luz, eu ainda via um anjo, desde aquela hora em que nossos corpos mesclavam-se entre os lençóis. Não sabia o que dizer, se o acalmava, se lhe arremessava a verdade. Senti pela primeira vez a distância que se materializava diante de nós. Desvendava-se tudo o que eu desconhecia de Frank. Até que ponto ele seria capaz de acreditar na realidade, ou de enfrentá-la?

- Cansei de ser o ignorante da história, Gerard. O que está acontecendo?

Não havia mais como esconder, isso era óbvio – as maldições faziam questão de desenrolarem-se por conta própria. E quem era eu para arranjar mais inimigos? Os olhos de Frank assemelhavam-se a gotas iluminadas, tais quais as que gentilmente nos afagavam. O vento frio me desencorajava, cada fiapo de pensamento que poderia começar uma conversa era levado para longe de mim. Fechei os olhos, quase tremia apesar do calor das chamas. Temia só de pensar nas reações que meu pequeno poderia ter.

- Estamos em perigo, Frank. – Lembro-me de um antigo professor meu comentando que a melhor forma de fazer uma redação é começar pelo óbvio. Pois bem, nada sintetizava mais a situação pela qual passáramos os últimos dias. – Sem que soubéssemos, invadimos um mundo de segredos e caímos em suas armadilhas. Uma realidade à parte... Em que nós, humanos, – fiz uma careta involuntária nessa hora – não somos bem vindos.

Como simplesmente fazê-lo acreditar num universo fantasioso assim de uma hora para outra? Vampiros! Era uma idéia absurda demais quando se parava para pensar. Eu próprio jamais a aceitaria, não fosse o som do sangue de Frank tão convidativo como um rio tranquilo num dia quente.

Seus olhos, porém, irradiavam uma determinação e uma seriedade que eu não ousaria desafiar. Qualquer um sabe a força de um olhar. Encarando Frank naquele momento, tão noturno e soberano, não me importava que os machucados pouco me afetassem, ou minha força fora dos padrões, ou minha monstruosidade. Achei melhor prosseguir, mesmo que aquelas ameaças narradas pelo castanho de seus olhos não passassem de um blefe convincente.

- Estamos rodeados de vampiros, Fran. – Mantive o contato visual como se dissesse “E agora? O que acha disso?” Mas ele permaneceu em silêncio, a boca fechada, os lábios comprimidos como se evitassem que alguma palavra fora do contexto se desprendesse. – E Ville Valo me parece ser o mais perigoso deles. Ao menos, para nós.

- O que ele quer conosco? – Pôs as mãos nos bolsos, talvez procurando uma posição mais confortável para a conversa. Como se houvesse modo mais fácil de aceitar que ficção e realidade subitamente convergiram para a nossa situação.

A Lua inclinava-se já no céu. Em breve o Sol raiaria, ostensivo, devastador. O que ele iluminaria com seus raios desbravadores? Quais verdades traria à tona?, Frank se perguntava. Sentíamos, eu e ele, o gosto da dúvida na boca. Havia ainda tantas perguntas a serem feitas. Eu prolongaria a conversa com Frank até quando fosse possível, até eu provar minha ignorância ou até que ele resolvesse me beijar novamente.

- Eu não sei. Não sei se está zombando da nossa cara, se quer nosso sangue ou se há algum motivo por trás disso tudo. Não sei. Mas Ville não é muito racional... Até você já percebeu, não é?

Uma doçura derreteu parte da solidez de seus olhos. Obviamente ainda estava apreensivo. Muito apreensivo. No entanto, parecia que minhas dúvidas – ao contrário do que suspeitava – de certa forma nos igualavam naquela situação. Essa proximidade, mesmo que inútil diante dos predadores à espreita, pelo menos trazia o mínimo dos alívios.

- Valo é um desacreditado, um dos dois grupos de vampiros que existem. Por algum motivo, ele perdeu o controle sobre seus desejos e tornou-se uma verdadeira fera. Em outras palavras, um próprio monstro. – Preferi omitir o que talvez fosse a parte mais importante: o amor e suas implicações. – São esses os que mais devemos temer.

- E Robert e aquele outro, o dos olhos vermelhos? Também são vampiros? Desacreditados ou do outro grupo? E o que o outro grupo representa? – Num fôlego só, Frank metralhou o monte de perguntas em minha direção. Respirei, buscando a cautela para respondê-lo.

- Por partes. Robert não é um vampiro, é um médico que busca uma “cura” para a irracionalidade vampírica... E pelo visto é irmão de Valo. Você também ouviu o que ele falou no fim, não é? – Referia-me ao “vim buscar meu irmão” gritado por Ville em meio às chamas. Frank confirmou com a cabeça. – Mikey é um de seus pacientes, um desacreditado. Pouco sei sobre ele. Mas pelo que vimos... O que une aqueles dois é muito forte.

- E o outro grupo? – Um Frank impaciente começava a mostrar que seu estado emocional começava a se normalizar.

- O outro grupo de vampiros é controlado e pode se passar normalmente por humanos normais. É claro que alguns sintomas os afligem, mas controláveis, e são basicamente inofensivos... Estão mais preocupados com suas próprias questões do que com sugar o sangue dos outros.

Pensei por um tempo que dera uma explicação demasiada longa e detalhada. Mas não fazia muita diferença. Frank não era bobo nem nada, à essa altura já devia ter mil suposições em sua cabeça. As folhas das árvores serpenteavam pelo ar enquanto o garoto começou a finalmente caminhar em minha direção. Tinha olhos mais mansos e braços mais relaxados, apesar de a postura continuar ereta, atenta. Não dirigia mais sua atenção para mim nem para qualquer acontecimento exterior; voltava-se inteiramente para um vulcão de pensamentos que atormentava sua mente.

Anda, Frank.

Destrua logo esse fingimento humano em que me instalei.

- E por que você sabe de tudo isso?

Foi impossível esconder um meio sorriso que se desenhou em meu rosto sôfrego. Ao mesmo tempo, não pude corresponder ao olhar que me dirigia. Ele ainda caminhava para mim. Apenas eu poderia fazê-lo parar.

- Antes disso, me dê um beijo.

Ele parou.

Os fios negros de seus cabelos esfumaçavam-se numa atmosfera nebulosa, em que chuva e chamas entrelaçavam-se como irmãs e lutavam por seu espaço. Aquele paradoxo em que vivíamos estava prestes a se dissolver pela noite, quem sabe até perder-se para sempre. Senti meu lado vampírico rasgar-me por dentro, ansioso por sua hora. Frank ainda estava parado. Era uma obra de arte, com seus pequenos ombros caídos por cima do luar, envolto pelo vento vacilante, preenchido por sentimentos que eu desconhecia, cercado por árvores e nuvens e o céu encoberto e tudo o mais que poderia deixá-lo ainda mais belo.

Então, ele andou.

Seus passos eram curtos. Eram doces. Nem passos eram. E seu mero caminhar encheu-me da mais plena felicidade que eu já tive conhecimento, tão leve como meu pequeno, tão explosiva e sufocante, mas deliciosa, deliciosa de uma maneira azeda como seus lábios.

Eu via todo o medo em seus olhos, quase como se eles próprios tremessem de pavor. Só que, ao mesmo tempo, eu via o amor, ouvia-o pulsar em uníssono com seu coração, sentia-o por suas veias, entendia que era a única razão pela qual seu corpo se movia. Relutante, receoso, mas se movia.

Até chegar em mim. Por uma fresta de lábios, pude enfim acalmar meu coração. Nossas línguas se encontraram, desejando mais que tudo que Valo não passasse de um pesadelo, que ainda estivéssemos numa só cama, numa só sintonia. Pincei seus lábios com os meus e envolvi-o num abraço tão caloroso quanto os que vivíamos entre os lençois. Entre suspiros e o enrolar de nossas línguas, tentava disfarçar toda a minha felicidade; caso contrário, não seríamos capazes de distinguir a água das chuvas ou a dos meus olhos.

Quando ele desgrudou seus lábios dos meus, talvez cansado, talvez ansioso por uma resposta, talvez preocupado, talvez, quase rezei para que aquele não fosse o último de nossos beijos. Mentalmente, imaginava mil e uma formas de tê-lo para sempre; naquela hora, entretanto, apenas uma frase esperava para desembarcar por entre meus dentes.

- Eu sei disso tudo, Frank, porque sou um vampiro.

E, por algum motivo que jamais compreenderei, sorri.