Bleed For Me

XIV - Ímpares.


Ele sempre fora paradoxal dessa maneira. Aquele sorriso só fez parecer que tudo o que falara até então era uma grande piada sem graça.

Mas fazia tanto sentido. Seus lábios foram tão convincentes! E seus olhos verdes que agora cintilavam em cada gota de chuva, tão sinceros. Gerard tornava tudo tão mais fácil de acreditar. Talvez fosse a singularidade de seus traços incrivelmente belos. Ou a seriedade de suas palavras.

A questão é que ele retirara suas mãos de minha cintura e eu, agora, estava livre para fugir. Seus olhos verdes quase insistiam para que eu fizesse isso. Ao mesmo tempo, seu coração batia tão forte que eu via seu corpo ir para frente e para trás discretamente. Ainda estávamos próximos – muito próximos.

Já não sabia se seu sorriso era honesto ou servia apenas para disfarçar o que se passava dentro dele. Seus beijos eram tão intensos que eu não podia duvidar de seu amor. Era provável que, se eu o deixasse, sofreria enormemente.

Então por que você insiste silenciosamente que eu o faça, Gerard?

Acho que ficamos no mais puro silêncio por mais de três, quatro minutos. Seu coração desassossegado durante todo nosso embate psicológico e visual. Ele sorria – humano. E cobiçava-me – vampiro?

E agora, o que é que vai ser, hein?¹ Era como se ele próprio dissesse essas palavras para mim, recriando aquelas cenas em que assistíamos “A Laranja Mecânica” quase todo dia juntos.

Foi só quando ele subiu uma de suas mãos para minhas bochechas que a resposta veio à minha mente, mesmo que não houvesse perguntas aparentes, mesmo que eu sequer a houvesse procurado.

- Só não peça para beijá-lo de novo.

Sua mão ficou imóvel do lado do meu rosto. Nunca havia visto alguém tão sem vida como Gerard estava naquele momento. Seus olhos eram ocos, o ar que saía de sua boca era gélido, ele partira-se em dois, três, dez mil cacos. Ainda assim, duvidava muito que fosse capaz de chorar, porque parecia não reagir de alguma forma ao que falei. Dentro de si, recusava-se fervorosamente a entender o que proferira.

Não é que eu não goste de você, Gee. Não é nada disso. Não é algo compreensível. Assim como você tampouco o é. Reconheça.

Reconheça-nos.

Peguei na mão que ainda arranhava docilmente a lateral de meu rosto. Momentos de temor e calma entremeavam-se desde que ele declarara ser vampiro e, embora eu sentisse um frio na espinha ao observá-lo agora, não poderia deixá-lo daquela maneira: era mesmo capaz de morrer, travado em tempo e espaço. Entrelacei nossos dedos – os dele estavam frios, pálidos – e puxei-o comigo. Atrás de nós, as chamas digeriam muito mais que madeira de qualidade. A chuva alfinetava-nos a cada novo passo que dávamos, e Gerard tentava em desespero mudo apagar aquelas minhas palavras frias com água divina.

Parei por um momento. Uma ruela de cascalho levava a uma autoestrada perdida no meio do mapa, que saía de lugar nenhum para nos levar ao desconhecido. A mansão reduzia-se a migalhas e fagulhas; o carro de Robert, no entanto, estava intacto.

- Por alguma grande sorte, você sabe onde as chaves dele podem estar soterradas? – Apontei para o carro. Gerard não respondeu. Virei-me para ele. – Hein, Gee?

Fez que não com a cabeça. Tinha ares de autista, o chão atraía seu olhar de uma forma irresistível. Fora tudo o que eu falei? Talvez tenha exagerado.

- Escuta, Gerard, eu não quis dizer que não quero que você me beije. Eu só não quero que você... Ei. – Ainda assim, ele parecia absorto em outros pensamentos. Dessa vez, porém, olhava sem foco para uma garota de cabelos laranjas que nos chamava da janela de um carro platina.

De verdade, não havia notado sua presença em momento algum, sua chegada, suas palavras. Ela encarava Gerard. Temi que estivéssemos alucinando ou algo assim, a mulher mais parecia uma boneca apoiada na janela do carro: silenciosa, delicada e com dois olhos que pareciam alheios à realidade. Suas sobrancelhas eram curvadas em sinal de tristeza eterna. As sardas salpicavam sua pele cor de névoa tentando dar um tom menos doentio àquele ser.

- Onde está o sr. Valo?

A voz dela embalava-se pelas folhas que se desprendiam das árvores. Calma e feminina em demasia, fraca, quase cristalina. Nesse momento, Gerard soltou minha mão e encarou a garota com força (ele sabia intensificar seu olhar de uma maneira que me punha a temê-lo), como se exigisse a razão daquela pergunta. “Ville Valo” havia-se tornado muito mais que um nome despretensioso, e qualquer menção a sua pessoa já fazia Gerard ranger os dentes.

Reparei então nas roupas da mulher: o blazer verde-musgo, a gola alta na cor branca, o símbolo de duas letras V entrelaçadas sobre o coração. Subordinada de Valo na pousada. Peguei Gerard pelo pulso esquerdo e o puxei para perto de mim, procurando sussurrar-lhe quem ela deveria ser. Não pude; imediatamente, espanou minha mão com um tapa forte. Arregalei meus olhos meio involuntariamente. Ele pôs-se a andar na minha frente, quase marchando, levantando poeira a cada passo pesado.

Enquanto eu tentava me lembrar a idade física de Gerard (dada a incoerência entre seus vinte e poucos anos e as atitudes infantis que tomava), ele foi-se aproximando do carro até apoiar as palmas das mãos na janela. Parecia um policial dando em cima da vítima motorista. Tinha olhos inflamados, e as palavras que saíam de sua boca mais pareciam trovões.

- Talvez possamos ajudá-la.

Quem era ela?

Ele desencostou da porta do carro e abriu sua porta, como um verdadeiro cavalheiro. Ela saiu, relutante, batendo a porta com força, demonstrando sua pressa.

Quem era ele?

- Quem são vocês? – Melódicos eram seus olhos castanho-escuros e suas palavras banhadas pelos primeiros raios de Sol do dia.

- Gerard Way e Frank Iero. E você? – As costas de Gerard pareciam tão largas quando contrastadas com o ralo Sol que despontava por trás das florestas adiantes. Suas palavras eram ocas como uma árvore apodrecida. Felizmente, eu não via seus olhos.

- Lucille Lefevre. – Ela hesitou um pouco antes de responder. Seus olhos pareciam adormecidos em Gerard, em transe. Eu tampouco parara de encará-la. O jogo de olhares perdurou até que eu, incomodado com a situação, perguntei o que ela queria com Valo.

- E isso é da nossa conta, Frank? – Gerard interpôs-se na conversa carregando vinte quilos de brutalidade em suas palavras. Perguntei-me mentalmente, mais uma vez, quem era aquele homem cujos olhos vermelhos me pareciam tão ameaçadores. Segredavam os inúmeros castigos que eu receberia caso resolvesse fugir deles. – A donzela aqui só quer encontrá-lo. Nós também. – Virou-se para ela dessa vez. Adorável. – O que acha de irmos ao seu encontro juntos?

Lefevre estava visivelmente desconcertada, surpreendida. Acenou vagamente com a cabeça e voltou para o carro, tão silenciosa quanto antes, quando aparecera para nos saudar. Maldito momento em que o fizera. Acaso Gerard estava tentando afogar-me em ciúmes? Falha tentativa. Só estava conseguindo me enfurecer com sua falta de caráter. Entrei no banco traseiro, enquanto o outro contornou o carro para sentar-se ao lado da mulher.

O fato de ela não se importar com os olhos vermelhos de Gerard era, no mínimo, preocupante. Tudo bem que hesitava e evitava olhá-lo, mas duvidava muito que fosse porque Gerard estava assombroso. Lucille Lefevre. Perguntei-me ao longo de todo o caminho, enquanto Gee lhe passava informações (nem imaginava como saberia aonde estávamos indo, porém decidi, desde o momento que descobrira sua real natureza, que não mais desconfiaria de suas habilidades), o que se passava pela cabeça e pelo coração da ruiva desconhecida.

Alguns minutos de silêncio eram permeados por barulho de carros, uma ou duas palavras da motorista e do carona ou qualquer mero estalo atmosférico. Lembrei a vinda: eu e Gerard encurralados com um maníaco no carro. Lembrei-me do medo de correr a quase duzentos por hora, ou a velocidade que fosse. Gerard do meu lado, ora me abraçando, ora apenas acariciando minha mão.

As nuvens pareciam passar tão lentas do lado de fora agora.

Desde quando seria ele vampiro?

Só voltei para a realidade quando o carro parou – na porta da pousada. Estava quieta e silenciosa como sempre, só que mais mórbida. Parecia sentir falta de seu dono. Tornara-se um corpo vazio.

Faltava tanto para eu compreender as relações semeadas pelo submundo daqueles que se alimentam de sangue humano...

- Pronto, Frank. Pode descer.

Ele falara aquelas palavras virado de costas para mim. Como se o painel do carro realmente fosse assim tão interessante durante toda a viagem.

- Descer? Por quê? – Para que eu ficaria sozinho ali? Ele já estava indo longe demais.

- Porque você não pertence a essa realidade. Você não tem nada a ver com os vampiros. E hoje, somente hoje, não há perigo algum de ficar aqui. Pegue o seu carro e volte para casa.

A indignação nublava meus olhos e a raiva fazia-me engasgar com meus próprios pensamentos. Abri a porta grosseiramente, esperando quebrar algo no carro chique daquela mulher maldita, mas não pretendia ficar por ali. Rapidamente dei a volta no carro e abri a porta de Gerard antes que o carro pudesse manobrar. Ouvi as reclamações de Lucille, até que o próprio Way resolveu se levantar e bater a porta atrás de si. Ótimo, pelo menos não mais havia uma intrusa no nosso relacionamento, ou qualquer coisa que se assemelhasse a isso.

Seus olhos eram duas bolas de fogo. Sua boca mais parecia um rasgo no meio de sua doce face angelical. Ele tinha as mãos nos bolsos e seus longos cabelos negros cobriam o olho esquerdo.

- Sabe, Gerard, você se parece com alguém que eu costumava amar.²

Não que eu quisesse provocar, mas fazia parte de minha personalidade intuitiva. Um de frente para o outro, ambos inflamados por dentro. A qualquer momento esperava uma mão forte a me dar uma surra, porque eu sabia que não tinha chance contra Gerard. Mais que isso. Eu sabia que, à primeira gota de sangue que escorresse de seu lindo rosto, por minha culpa, não faria mais sentido contrair meus músculos.

- Como se você soubesse o que significa amor. Você só age conforme lhe ensinaram.³ Eu sou o vampiro, mas há muito mais humanidade em mim do que em você, Frank.

Ele ainda pronunciava meu nome com a doçura que um dia dominara cada um de seus movimentos. Por um momento, seus olhos pareceram verdes novamente. Ele realmente se achava menos monstruoso do que eu?

- Vá embora agora. Quase todos os vilões estão reunidos em um só lugar e, assim que eu for com Lucille, não restará mais ninguém que possa lhe fazer mal. Ir conosco só colocaria a vida de mais um inocente em perigo. E isso seria egoísmo demais de minha parte. – Virou-se. Escondia seu rosto transpassado por trevas enquanto caminhava de volta ao carro.

- E você? Por um acaso pediu para virar vampiro? – As palavras revoltavam-se dentro de mim; não dava para escondê-las mais. – Esqueceu que, se não fosse por mim, nada disso teria acontecido? Eu não sou tão covarde quando você, Gerard Way! Bob nos salvou uma vez, e eu não vou simplesmente jogar tudo na linha do destino e arriscar minha vida por motivos de força maior! Eu vou salvá-lo porque quero! E não porque alguém quer que seja assim, está me ouvindo?!

Ele abriu a porta do carro e já se preparava para sentar. Apressei-me a correr, até alcançar a porta que quase se fechava por completo, sem temer que meus dedos fossem amassados no processo. O que não chegou a acontecer, já que Gerard imediatamente travou a porta com seu pulso direito. Melhor seria que realmente se houvesse machucado. Pelo menos agora eu conseguira chamar completamente sua atenção. Seus olhos me miravam: um deles vermelho sangue, o outro verde-esmeralda. Sua fleuma já não era assim tão sólida, seu rosto não estava tão impassível. Contorcia sua boca como se evitasse falar qualquer coisa comprometedora. Afinal, ao que parecia, agora tinha uma reputação a zelar.

- Pode ao menos me explicar por que, da noite para o dia, você se transformou num sósia de Ville Valo?

Gerard manteve-se com a boca entreaberta e aqueles seus olhos bicolores focados em mim. Olhava-me por baixo dessa vez. Eu mantinha a mão na porta, mas já não precisava forçá-la: Gerard não movia qualquer músculo. Com o ar que expirava, eu sentia a frieza de seu desespero, embora não cedesse. Já era hora de ele me explicar o que estava acontecendo.

- Será que dá para sair, sr. Iero?

Como a voz de Lucille me irritava, com aquela perfeição maldita.

E então uma mão de Gerard me empurrou para longe do carro. Oh, merda. Mas logo em seguida, ele abria a porta e novamente a fechava. Ele olhava para mim com aqueles olhos despareados. Ele batia duas vezes na lataria para que Lucille seguisse sem ele. Pois então quebrara o acordo? Pois então... O que pretendia?

- Então, já que somos dois monstros, vamos juntos atrás de Robert. – O som se sua voz era tão oscilante quanto a cor de seus olhos. – Mas não espere mais de mim, Frank Iero.

Algo me doía, provavelmente o medo que sentia daquele homem a minha frente. Provavelmente, era a indelicadeza daquelas palavras. Mas não me incomodava. Levantei-me, sacudi a poeira de minhas roupas e fui correndo buscar as chaves no quarto Lírio da Pedra.