O café da manhã na casa dos Granger era farto. Pão integral, pão de grãos, ovos cozidos, ovos fritos, ovos mexidos, torradas, waffles com mel, bacon, salsichas, suco de laranja, cereais e o que mais eles pudessem pedir para Amellia, a governanta pessoal da família há anos, pudesse fazer. Jane Granger estava sentada ao lado da filha, tomando o suco e folheando uma revista de manequim atrás das últimas tendências de roupas para o verão. John Granger comia a pequenas garfadas, bacon com ovos, enquanto se atentava as páginas do jornal daquela manhã. Hermione, se encontrava sentada entre os pais, usando a colher para afogar o cereal em forma de rosquinha, a cabeça distante dali.

Os Granger eram uma família endinheirada, como diziam os caipiras do outro lado do rio, com suas pencas de filhos e suas casinhas de jardim minúsculos hipotecadas uma centena de vezes. John, o patriarca, nascera na costa oeste americana, bacharelado em advocacia em Harvard, com excelência. O melhor aluno da sua turma, dizia aos clientes para justificar seus altos honorários. Já Jane era típica boa moça de berço privilegiado, bonita e culta, mas sem nenhum interesse profissional específico, apenas esperando o príncipe encantado que lhe daria um lar aconchegante e uma condição de vida confortável para poder criar seus filhos tranquilamente.

Twinbrook acolheu o casal de sucesso alguns anos após o casamento, quando Hermione tinha, pelo menos, metade da idade atual. Queriam uma cidadezinha pacata, longe da criminalidade, entretanto que fosse perto o suficiente de algum centro urbano maior para não faltar trabalho a John. Escolheram então aquele município cercado de pinheiros, a cinquenta minutos do Maine, como a morada definitiva.

O bairro deles fazia parte de um condomínio ao sul do mapa, onde a natureza era mais plácida e vistosa. As casas tinham de ter um padrão rebuscado de arquitetura contemporânea e, economizar no acabamento, empobrecia a vista das ruas e poderia significar multa ao morador. Os Granger não tinham nenhum problema quanto a isso, a casa deles era bonita o suficiente. O trabalho artesanal do terraço não cansava de invejar os vizinhos.

─ Meu bom Pai, o que está acontecendo com o mundo…? Sou advogado, mas não consigo parar de me assustar com essa história aqui. E a cada dia a polícia parece mais incerta ─ John comentou, sério, indicando uma página no jornal.

─ O que é? Aquela história sobre Adam Fuller, de novo? ─ Jane perguntou, levemente exasperada.

─ Querida, não faça vista grossa. Quando esse tipo de coisa acontece numa cidadezinha como essa, aí é que devemos nos preocupar. Veja só essa parte “… o oficial Hagrid não entrou em maiores detalhes, mas deixou a entender que as lesões encontradas no jovem Fuller podem não terem sido causadas por um objetivo cortante, e sim pelo ataque de algum animal selvagem…”. Eles não sabem de nada. Absolutamente nada. Dou mais uma semana e a polícia federal vai querer assumir a investigação, e com razão, se quer saber.

─ Não quero ─ Jane fechou sua revista de moda com brusquidão e apontou para a filha, apenas com os olhos, enquanto pegava seu copo.

Hermione viu o movimento da mãe e tratou logo de se posicionar como alguém adulto o suficiente para escutar tudo aquilo. Eles mal sabiam.

─ Na escola só se fala desse assunto também ─ argumentou retomando o controle de seus pensamentos e dando uma colherada no seu café da manhã.

─ O que? Vocês deviam estar era falando sobre as matérias dadas em aula ─ a mãe reprovou, escondendo o choque.

─ Tá bom… ─ John deu uma risadinha conspiratória para filha, que retribuiu ─ Mas a Mione consegue dar conta do conteúdo das aulas e ainda prestar atenção em tudo ao redor dela. Vai ser uma advogada incrível essa minha filhinha.

─ Médica, pai. Eu vou ser médica ─ ela reforçou pela enésima vez, debaixo do sorriso brincalhão do pai. A verdade é que a garota poderia ser o que ela bem quisesse, mesmo John não escondendo o eterno desejo de ver a menina seguir o caminho acadêmico dele.

─ Aliás, Hermione, esse pobre rapaz foi encontrado no sábado a noite. Nesse dia, coincidentemente, você e Gina foram pedalar nas próximas do bairro. Estou certa? ─ Jane perguntou elevando suas sobrancelhas desconfiadas para ela, que engoliu em seco.

─ Ah é? Que coisa… ─ observou, se concentrando na tigela de cereal.

─ Sra. Granger ─ Amellia adentrou na espaçosa cozinha e, de casaco na mão, aproximou-se da mesa informando a patroa e acariciando os cabelos de Hermione carinhosamente ─ Vou ao mercado comprar algumas verduras para o almoço. A senhora quer algo mais? Ou o senhor?

─ Não, não, tudo bem Ame ─ Jane sorriu bondosamente para a empregada, que estava na companhia dos Granger a tantos anos que já era um membro da família ─ Tem dinheiro suficiente no vaso?

─ Ah sim, mais do que suficiente ─ e virando-se para a mais jovem do grupo, perguntou ─ E você, Hermione? Quer algo?

Amellia tinha um grande carinho pela menina de cabelos volumosos a sua frente. Participara ativamente da criação dela, sendo uma excelente babá e uma segunda mãe nos momentos em que os pais precisavam se ausentar. Uma peculiaridade que reservava somente para a filha dos Granger era a mania inflexível de chamá-la de Hermione, e não simplesmente Mione. “Seu nome é lindo demais para ser abreviado”, defendia.

─ Humm… Você sabe, se a banca de jornal estiver aberta pode me trazer uma Palavra Cruzada.

─ E essa vai ser sua diversão nesse sábado?

─ Em partes ─ a menina admitiu sorrindo.

John terminou seu desjejum, levantou-se e pegou a pasta de couro na cadeira ao lado.

─ Eu não quero nada não, Ame. E trio, vou indo porque tenho que encontrar um cliente no escritório em uma hora. O dia vai ser longo, volto pouco antes do anoitecer.

Assim que John foi embora e Amellia partiu para o mercado, Hermione e a mãe retiraram a mesa e cada uma encaminhou-se para uma tarefa. Jane avisou que estaria no jardim cuidado das plantas, a fim de não enferrujar seu curso de jardinagem. Hermione, então, subiu para o quarto agarrando-se a um volume de História Moderna Americana que pudesse distraí-la um pouco até a chegada da visita.

Poucos minutos depois, Gina despontou à soleira da porta, batendo suavemente na madeira antes de entrar no aposento.

─ Oi, sua mãe abriu a porta para mim ─ saudou para a amiga deitada na cama ─ Passando a hora com algum dever de casa, para variar? ─ brincou, apontando o exemplar nas mãos de Hermione enquanto pegava a cadeira diante da escrivaninha e ia se sentar próximo ao colchão.

Hermione deixou o pesado livro de lado, cuidadosamente marcado na página que lia, e aprumou as costas no travesseiro para conversar.

─ Só lendo… Ficou sabendo da novidade sobre Adam Fuller?

─ Hum… Qual? ─ Gina puxou seus cumpridos cabelos de fogo ao lado do ombro esquerdo e se pôs a fazer uma trança com os fios, escutando a outra menina.

─ A polícia está dizendo que pode ter sido um animal selvagem que o atacou.

─ Animal? ─ franziu o cenho ─ Como assim? Lebres? Cervos?

─ Bom, o pessoal sempre diz que tem ursos nessas florestas ─ Hermione argumentou trazendo seu lado cético a luz ─ Não é totalmente impossível.

O rosto de Gina, ao contrário, transparecia a total descrença àquela nova suspeita. Gina nascera em Twinbrook, assim como toda sua família, e nunca havia escutado um relato sequer sobre ataque de ursos contra humanos. Muito menos um que levasse um jovem sadio e forte a cair dentro de uma caverna. “Se eles ainda estivessem em Vermont…”

─ Não sei se acredito nisso, mas até anima um pouco ter tido o que fazer no fim de semana. Foi uma boa aventura pedalar na direção da Boca do Diabo aquele dia. Poderíamos repetir a dose.

─ Gina… Você é meio macabra as vezes ─ a garota morena retorquiu, emulando algum assombro na voz.

─ Falta emoção nessa cidade ─ a segunda bufou, largando os cabelos de lado ─ Acho que vou começar a treinar para entrar em algum clube de ginástica rítmica fora daqui, esse ano… A professora da minha escola disse que tenho potencial, apesar de a minha mãe dizer que já estou velha demais para isso.

Hermione não pôde esconder a ruga de desaprovação que brotou em sua tez a menção nada animadora da mãe da amiga. Não era segredo para ela, nem para ninguém que conhecesse os Wood, moradores da área mais pobre da cidade, a criação difícil pela qual a ruiva passava. A mãe, uma desbocada grosseira, o pai, um alcoólatra ignorante.

─ Nada a ver. Você tem quatorze anos ainda. Que exagero…

─ Não, Mione, minha mãe pode estar certa… Nadia Comaneci já era a melhor ginasta do mundo com apenas quinze anos!

─ Quem é Nadia Comaneci?

─ Uma ginasta romena dos anos 70. A melhor do mundo.

─ Ah… Mas também nada nesse mundo é uma regra. Você pode ser a melhor do mundo com 20, 30, 40, 50 ou 60 anos. No fim das contas, quem vai decidir isso é você ─ tentou animar a amiga, que riu.

─ Acho que aos sessenta não.

─ É ─ Hermione riu também ─ Mas você tem quase cinquenta anos até chegar lá. Me mostre o que já sabe fazer aí, estou curiosa.

Um brilho animador percorreu os olhos de Gina, aceitando o desafio. A garota de cabeleira ruiva deu uma boa olhada no quarto da amiga, um ambiente espaçoso e preenchido basicamente por um guarda-roupa vertical, uma escrivaninha, uma cama de solteiro e diversas prateleiras entupidas de livros. Tirou seu tênis, reservando-o próximo a cama e, afastando a cadeira, encaminhou-se para o centro do quarto. Disse:

─ É só uma pequena amostra ─ e esticou os braços.

Os cabelos tombaram para frente, a trança se desfazendo conforme ela ia inclinando o corpo, as costas harmoniosamente eretas, o olhar concentrado, e, numa flexão elegante rolou para o chão, mantendo-se apenas nos braços por alguns segundos. A seguir, numa sequência rápida demais para os olhos de sua plateia, girou o quadril para trás, ficando de ponta cabeça, antes de parar em pé, novamente. Neste final, se desequilibrou sutilmente para o lado, praguejando.

─ É, ainda preciso treinar isso…

Hermione aplaudiu mesmo assim, empolgada com a agilidade de Gina mesmo dentro de um short jeans.

─ Eu acho que só sei pular corda. Foi fantástico!

Gina corou de leve, ajeitando os cabelos nas costas, e indo se sentar na cadeira.

─ Obrigada… ─ murmurou tímida, calçando os tênis outra vez ─ Ah, tenho outra novidade ─ anunciou após amarrar os cadarços, erguendo a camiseta para Mione.

Pega de surpresa, Hermione arregalou os olhos vislumbrando o sutiã preto e rendado da menina. O tecido contrastando com a pele muito branca e as sardas entre os pequenos seios.

─ Quando comprou isso?

─ Eu ganhei da minha tia ─ a menina disse orgulhosa ─ Lembra que eu disse pra ela no natal passado que queria um sutiã preto? Ela tá lá em casa visitando nós esse fim de semana e trouxe.

─ Ah é? Pois deixa eu te mostrar o que minha mãe comprou pra mim ontem. Que coincidência! ─ exclamou animada, saindo da cama e saltitando até o guarda-roupa ─ Tcham-ram! ─ retirou um sutiã branco, de delicada renda, e esticou para Gina ver.

─ Ficou legal?

─ Ficou sim, quer ver?

─ Demorou.

Alegre, Hermione começou a se trocar. Era um sonho das garotas da idade delas, o limite, o início da encruzilhada, viver desses pormenores que transmutavam-nas da meninice para a vida de mulher. As paixões, as maquiagens, as vaidades, os saltos, a lingerie sofisticada… Elas cresciam e compartilhavam cada descoberta cheia de entusiasmo. Terminado de vestir seu novo sutiã, a garota morena virou-se para a amiga, dando uma leve rodada para que a ruiva comprovasse toda a peça.

─ Ficou lindão, amei.

─ O seu também, tira a blusa pra eu ver de novo ─ pediu, embora no fundo também quisesse comparar se o seio de Gina ficava mais legal no bojo do que o dela, que não passava de dois brotos diminutos.

Um barulho na porta do quarto interrompeu a ação de Gina. A garota recuou rapidamente, enquanto Hermione tinha tempo apenas de virar na direção do som, imaginando ser a mãe.

─ Estamos entrando ─ era a voz de Rony Weasley que invadia o recinto, assim como seu rosto intrometido que pareceu tomado por um balde de tinta vermelha ao ver a dona do quarto apenas de calça e sutiã.

─ SA-SAI DAQUI! ─ ela berrou, chocada, cobrindo o corpo com os braços.

Rony continuou um tempo paralisado, mais estarrecido do que interessado, tão assustado quanto ela. Atrás dele, ocultado pelo amigo, Harry perguntava o que estava acontecendo.

─ SAI, RONY! ─ Gina endossou a bronca, arremessando um livro na prateleira próxima, na direção dele. O objeto acertou a testa de Rony, recuando num berro de dor e batendo a porta ─ Que garoto idiota…

O que houve? ─ Harry perguntava do outro lado, no corredor, a voz abafada pela madeira.

Elas estão meio que… que se trocando… E são malucas! ─ o atacado se explicou ─ Como eu ia saber…? Aí, que dor…

No quarto Hermione Granger vestia a blusa as pressas, extremamente desconcertada e ruborizada. Poderia ser qualquer um, até Harry que não haveria tanto problema. “Mas porque ele? Por que Rony Weasley?”