Envolta em cobertores macios, num sono tão profundo que não lhe permitia ter nem sonhos, Hermione foi despertada contra sua vontade. A luz do dia invadiu a escuridão do seu inconsciente e, insistente, chamou-a para viver um novo dia.

─ Vamos, Hermione! Está na hora de acordar… ─ chamou Ame, terminando de escancarar as cortinas blackout do quarto e virando-se para ela, na cama ─ Passou da hora de acordar, na verdade.

─ Droga… ─ a outra bufou, virando para o lado oposto ao da janela iluminada ─ Deveria ter colocado minha máscara de dormir ─ se queixou.

─ O café da manhã está servido faz mais de duas horas, acorde logo, garota ─ a governanta repetiu bondosa, embora tivesse um “quê” de reprovação em seu tom de voz.

Quando Hermione escutou a porta do quarto se fechando, anunciando o retorno a sua privacidade, virou-se para frente e, lentamente, começou a abrir os olhos. Com a visão embaçada, descobriu que no relógio do criado-mudo, ao lado de sua cama de casal king size, as dez horas da manhã haviam ido embora fazia tempo. Bocejou demoradamente e começou a encarar o teto branco, colocando as ideias em ordem, as tarefas necessárias daquele dia. Café da manhã, tomar banho, se arrumar, ir renovar seu documento de habilitação fora do prazo limite, fazer uma hora em algum shopping center da cidade, almoçar (ou não, dependendo do seu apetite) e, finalmente, entrar no hospital para assinar os documentos de afastamento profissional.

Preferia não pensar muito nisso, se fosse possível. Era como se seu cérebro se desgastasse, diminuísse o prazo de validade, toda vez que se perdia naquelas memórias destrutivas. Alguns diziam que ela estava fazendo bem em parar. Outros a incentivavam justamente ao contrário. “Você pode nunca mais ter coragem de retornar, filha”, dizia o pai. Coragem ou não, o fato era que Hermione não estava mais se sentindo confiante para exercer a medicina, e aquilo poderia durar bem mais do que as pessoas imaginavam.

Irritada por estar novamente pensando no que preferia esquecer, a mulher saiu das cobertas e levantou-se da gigantesca cama. Ainda no criado-mudo, desligou o abajur – nunca dormia sem, pelo menos, uma luzinha acessa – e pegou o prendedor de cabelo, amarrando os fios lisos e dourados num rabo de cavalo frouxo. Como estava em meados de outubro, pleno outono nova-iorquino, vestiu seu robe lilás por cima do pijama, pendurado na poltrona próxima, e encaminhou-se para a sala de jantar.

O apartamento que morava pertencia aos pais, que viviam metade do ano viajando pelos quatro cantos do mundo. Uma incrível cobertura, de aposentos amplos e espetaculares, de vista espetacular para o Central Park. Um imóvel que tinha apenas ela como herdeira, por ser a filha única do casal.

No ambiente seguinte, Ame estava sentada junto a mesa, um óculos de leitura no rosto e o notebook ligado a sua frente.

─ Procurando alguma receita deliciosa para o jantar? ─ Hermione sondou, a voz rouca de sono, indo pegar uma xícara de café para si na cafeteira e sentando-se próximo a empregada.

─ Você acha que eu só faço isso, é menina? Estou conversando no facebook aqui

─ Humm… Com aquele cara do Texas, é? ─ quis saber, animando-se.

─ Não é um cara, é um senhor… e muito respeitoso. E pare de pensar besteira, somos somente amigos.

─ Tá bom, tá bom ─ Hermione disfarçou o quanto divertido achava a vida da sua empregada, a alguns anos de completar sessenta anos, se relacionando com homens da sua idade pelas redes sociais, mas nunca encontrando confiança para marcar um passeio sequer, cara a cara, com nenhum deles ─ Mas ele tem uma fazenda ou algo assim?

─ Não. Ele já teve. Hoje mora num rancho pequeno e tem somente dois cavalos e uma penca de cachorros Border Collie como companhia.

─ Oba! Vamos lá? Eu te levo, falo que sou sua filha, e sou mesmo, e a gente passa o dia com esse seu amigo bigodudo, passeando a cavalo e comendo costeletas de porco, purê de batata…

─ Pare de conversa e coma esses ovos logo, porque daqui a pouco estará tudo gelado e esturricado ─ Ame a interrompeu, impaciente. Na verdade, Hermione sabia que ela se constrangia um bocado de falar sobre Hank, o do Texas. Seu “apenas” amigo, no facebook ─ Aliás, falando em filha, seus pais ligaram mais cedo. Estão preocupados, porque você anda chegando tarde todas as noites e dormindo muito. Também queriam saber se era hoje que você iria para o hospital, assinar sua licença. Eu disse que sim, estou certa?

Balançando a cabeça em concordância, ela retornou a atenção para seu café da manhã, colocando o máximo de comida na boca para que não precisasse falar daquilo. Os pais estavam sondando-a, pressionando para não vê-la tomar a decisão, mas era inevitável, como disse-lhes diversas vezes. Não conseguia mais nem colocar um bisturi na mão, começava a suar e tremer, o mundo parecia que ia desabar em cima dela. Todo o sentimento terrível do dia fatídico retornava, uma sensação opressora esmagando-a de dentro para fora.

Ame ajudou-a muito naquele tempo, quando as coisas haviam acabado de acontecer. Era uma companhia protetora e consoladora para todo sempre na vida dos Granger, aquela agora, senhora. Seus pais também foram duas boas muletas, mas eles viviam mais fora do país do que dentro, e Hermione nunca permitiu que os dois deixassem de curtir suas vidas para pajear uma mulher de quase quarenta anos.

─ Eles ainda estão na Itália? ─ comentou, desviando o foco da conversa.

─ Sim, na Toscana. Sua mãe me mandou umas fotos, muito lindo aquele lugar… O café está bom?

─ Está sim ─ ela respondeu de pronto, ao perceber que Ame a fitava atentamente ─ O que foi?

─ Você parece mais deprimida que o normal hoje, ainda que tente disfarçar. Está decidida, mesmo?

─ Estou ─ Hermione confirmou, vendo que não seria possível desviar do assunto ─ E não é como se eu tivesse rasgado meu registro médico. Vou poder voltar, quando quiser ─ embora achasse que não conseguiria jamais.

─ Por que você não vai encontrar John e Jane na Europa? Fique um tempo com eles. Acho que fará bem, sua mãe já comentou sobre isso.

─ Talvez eu vá ─ respondeu simplesmente.

As vezes, gostaria de dizer a Ame como sua cabeça era um caos. A Europa não ajudaria. Nem a Ásia, a Oceania, ou até os confins da Antártica. Os sentimentos que ela vinha sentindo, nenhum lugar do mundo poderia apaziguar. Quando se punha pensando naquilo, pensando de modo prático, na visão clínica e com uma cabeça científica, inerente a sua formação acadêmica, achava que a cerne de toda a negatividade interior vinha do passado, há vinte e um anos. Em Twinbrook, a jovem Hermione Granger tivera contato com coisas que a adulta não conseguira, nem nas suposições mais esdruxulas, explicar. Aquela fobia do escuro, por exemplo, nunca mais a abandonou.

─ Se quer saber, filha ─ Ame largou o notebook de lado, retirou os óculos de leitura e a encarou carinhosamente ─ Acho que você deveria encontrar um bom rapaz e se casar. Você anda muito solitária…

─ Eu gosto de ser solitária.

─ Ninguém gosta disso ─ a mais velha suspirou em resposta a teimosia da outra ─ Eu nunca entendi porque não deu certo com aquele menino da sua turma de medicina, o Córmaco. Vocês formavam um belo par, eram tão promissores.

─ Córmaco? ─ ela riu sarcasticamente ─ Ele não tinha uma ideia muito concreta sobre monogamia, ou já esqueceu, Ame?

─ Ah, é mesmo… ─ a governanta recordou, desconcertada, a traição do rapaz que motivou a separação dos dois ─ Ainda assim… Deve ter alguém por aí que seja sua metade. Um homem inteligente o suficiente para enxergar o quão maravilhosa você é, filha.

Por algum motivo obscuro, Hermione se lembrou de um antigo amigo de infância. Alguém que ela não via há séculos, que já deveria estar casado, com uma penca de filhos pequenos, barrigudo e feliz. A lembrança a fez sorrir para o nada. Por que foi lembrar dele, Hermione? Pensou intrigada.

─ Se recordou de alguém? ─ Ame captou suas memórias no ar.

─ Não ─ balançou a cabeça em negativa e consultou o relógio do celular ─ Olha, você anda vendo novelas demais, sabia? E eu estou em cima da hora para ir ao centro, ajeitar o documento da minha habilitação antes que fique sem licença ─ informou, terminando seu café num gole só e se levantando da mesa ─ Vou tomar um banho rápido e me trocar. Não precisa se preocupar comigo, nem no almoço e nem na janta. Ah, e pense com carinho na minha ideia… Sobre o Hank, tá?

─ Por que não vai jantar em casa? ─ a governanta perguntou alto, vendo Hermione se afastar para longe ─ HERMIONE? VAI CHEGAR TARDE DA NOITE, DE NOVO?

***

A pior parte do seu dia foi, sem sombra de dúvidas, ficar frente a frente para o diretor do hospital e preencher os papéis. Ele também era contra a ideia e tentou, mais uma vez, dissuadi-la de sua decisão. Hermione havia sido a melhor cirurgiã pediátrica que ele conhecera, segundo as palavras do próprio, mas aquilo servia apenas para deprimi-la em vez de enaltecê-la. A impotência fervia em seu âmago, comparando aquilo que ela foi para aquilo que não poderia mais ser. Na saída do prédio, o melhor hospital de Nova York para um médico trabalhar, o seu sonho de realização dos tempos da universidade, encarou a recepção, os funcionários, a rotina intensa do entra e sai de pacientes, e sentenciou-se mentalmente ao nunca mais. Nunca mais realizaria uma cirurgia, nunca mais exerceria a medicina, nunca mais precisaria carregar a responsabilidade direta sobre a vida dos outros.

Num barzinho de alguma das grandes avenidas de Manhattan, tarde da noite, ela matava um dry martini solitária em seu banquinho, e revivia o dia exaustivo, na mente. A conversa com a governanta pela manhã, a tarde repleta de deveres pouco importantes, a última vez no seu antigo local de trabalho… E, volta e meia, o garoto do seu passado retornava as lembranças. Por que pensara nele naquela manhã? Refez a indagação. Fazia tanto tempo que não se lembrava dele, de nenhum daqueles de Twinbrook, aliás. Devo estar mais solitária do que imaginei…

─ Uma linda mulher como você bebendo sozinha nessa noite me parece um pecado sem tamanho ─ um homem, que ficou flertando com Hermione pelos últimos quinze minutos do outro lado do bar, finalmente se aproximou, após a pessoa do lado dela liberar o assento.

─ Acho que a gente pode pular esse papinho… ─ ela respondeu, ligeiramente bêbada, olhando-o de frente. Era um rapaz lindo, o seu galanteador barato. Moreno, queixo quadrado, olhos verdes, ombros largos, cabelos ondulados à altura dos ombros. Deveria ser mais novo também. Ela daria, no máximo, trinta anos para aquele pelo espécime masculino. Exatamente o tipo dela para seu estado espírito naquela noite.

─ O que você disse? ─ ele perguntou, fingindo confusão e desentendimento, mas sorrindo malicioso.

─ Que eu quero sair daqui com você, agora. Na sua casa ou em algum hotel. Você escolhe ─ foi incisiva.

Meia hora depois, Hermione entrava, aos beijos e amassos, num quarto de hotel qualquer, com o desconhecido. Atracada ao homem, abriram a porta com dificuldade, bêbados e cheios de tesão, querendo se livrar das diversas camadas de roupas o quanto antes, e partirem para os finalmente. Do lado de dentro, um luxuoso quarto pago no cartão de crédito dela, o sujeito pegou-a pela cintura e jogou-a na cama, tirando sua blusa enquanto ela fazia o mesmo com a dele. Se saciaram rapidamente, as risos, os sentidos entorpecidos pelo excesso de álcool.

Depois do sexo, alta madrugada, seu par roncando nos colchões, Hermione entrou no banheiro e tomou uma longa ducha fria para que a bebedeira passasse logo, mas também para se punir. Debaixo do chuveiro, ainda sem saber o nome da pessoa que havia tocado o seu corpo e a penetrado intimamente, chorou, tomando consciência do quão vazio era o desenrolar da sua vida.