Sentado dentro do carro-patrulha na companhia de um copo de café quente, Rony observou o movimento da via num ar entediado. Não havia absolutamente nada para distraí-lo na pista que dividia Twinbrook à cidade vizinha. Carros velhos entravam sacolejando pela esburacada rodovia, alguns habitantes até o reconheciam e davam farol para cumprimentá-lo, mas quase ninguém saía dali. Estavam acontecendo muitos roubos de motocicletas na cidade ao lado, e toda vez que uma moto cruzava o limite para dentro do município ele atentava para o modelo e a placa. Se o condutor corresse, seu início de noite tinha a chance de se tornar mais excitante perseguindo o suspeito. Nas três horas parado ali, no acostamento estreito, apenas o filho dos Simpsons, que tinha um modelo barulhento e velho, passara para dentro daquele pedaço de fim de mundo.

Tomou o último gole de cafeína dentro do copo e pegou a sua garrafinha térmica para reabastecê-la. Seu turno terminava mais cedo hoje, antes das vinte e uma horas, contudo não se importava com a quantidade de café que estava ingerindo. O corpo se acostumara de tal forma que ele tinha certeza que assim que deitasse no colchão, desmaiaria. O tédio também cansa. As pessoas diziam que o café podia amarelar os dentes, e ele já não era nenhum sorriso de comercial de pasta de dente, realmente. Contudo, só de pensar em ter de entrar no consultório da dentista da família, aquela mulher enxerida, a doutora Morgan, seu desejo pelo sorriso mais refulgente do batalhão se esvaía. “Como vai seu pai? Como vai seu pai? Como vai seu pai? Como vai seu pai?” aquela velha morcega não pararia de perguntar. As pessoas não paravam de perguntar.

Um ventinho gelado veio assobiando e farfalhando entre as árvores na densa floresta ao lado do acostamento, e Rony fechou as janelas do carro para se proteger do início de outono. Deteve uma olhadela apreensiva na direção das árvores, antes disso o fazer. Apoiou as costas no banco e ficou encarando a rodovia deserta, os faróis desligados, a espreita do nada. Não conseguia relaxar completamente na escuridão havia muitos e muitos anos, portanto ligou o rádio da polícia para ver se alguma coisa excitante acontecia com seus colegas de profissão.

Tenente Weasley… Aqui é a Sargento Penninck falando. Na escuta? Câmbio.

Ele sobressaltou-se ao colocar a mão no aparelho justamente quando alguém solicitava por seu nome.

─ Sim, Sargento Penninck, na escuta. Câmbio.

Desaparecimento de menor com possibilidade de rapto, senhor. A responsável estava histérica quando os vizinhos ligaram para informar. Agora está em choque, mas disse seu nome, Tenente. Quer falar com o senhor. Câmbio.

Rony se desencostou do banco e aproximou mais a boca do rádio.

─ Qual o 10-86? Câmbio.

Valley Pine Trees, Street Nine, 427. Câmbio.

Os músculos dele se enrijeceram de tensão. Ele conhecia aquele endereço vagamente, mas tinha medo de perguntar o nome das pessoas envolvidas. Se apoiando no volante, girou a chave subitamente e comunicou a colega:

─ Estou indo. Câmbio.

Dirigiu numa velocidade acima do esperado pelas ruas pacatas da cidade. O endereço informado pela sargento Penninck ficava no outro extremo de onde ele estava, na periferia a nordeste do mapa de Twinbrook. Toda aquela região se chamava Valley Pine Trees, mas a maior parte do terreno entre os casebres fora desmatado abusivamente nos últimos vinte anos pelas madeireiras. As poucas árvores em pé no terreno descampado servia apenas para esconder adolescentes de classe baixa consumindo substâncias ilícitas.

Após um trajeto de vinte minutos, a tensão voltou a sufocá-lo quanto mais se aproximava do destino. Atravessou uma ponte de madeira de segurança duvidosa e virou numa rua de paralelepípedo logo na segunda esquina. O carro-patrulha com o giro flex ligado cintilava em azul e vermelho o quarteirão que tinha muitas das luzes dos postes queimados. Ele estacionou bem atrás da outra viatura e, ignorando a meia dúzia de vizinhos xeretas espionando há alguns metros da entrada da casa, subiu o curto lance de escadas.

─ Boa noite, Tenente ─ Meg Penninck, uma negra baixinha de sorriso tímido e olhos grandes, uma das novatas na corporação, cumprimentou-o polidamente à entrada da casa.

─ Boa noite ─ ele acenou, os músculos rígidos de ansiedade ─ O que houve? ─ e emendou a pergunta numa inspeção breve ao cômodo adiante, uma pequena cozinha de azulejos rosas com detalhes em flores brancas.

─ Mulher, solteira, aproximadamente trinta e cinco anos…

─ Não, não, disso eu sei ─ interrompeu-a, impaciente ─ Eu conheço ela. Quero saber o que houve exatamente.

─ Ah, certo ─ Meg reorganizou os pensamentos, tocando no cinto nervosamente ─ Recebemos uma chamada às 17:50hs da Sra. Hughes, vizinha três casas à direita daqui, sobre a Sra. Ginevra Wood. Segundo a testemunha, a vizinha havia corrido por todo o quarteirão chamando o nome do filho por um longo tempo. Depois, ela retornou a entrada da própria casa e se postou na calçada chorando alto e alarmando a todos. A sra. Hughes veio tentar ajudá-la, mas ela parecia em estado de choque. Ainda está, aliás. O que conseguimos dela, entretanto, foi a confirmação de que o filho sumiu. Há fotografias e brinquedos pela casa então a história…

─ Alvo. O nome dele é Alvo ─ Rony sentiu que estava empalidecendo.

─ Ela murmurou ainda há pouco que queria falar com o policial Weasley…

─ Onde Gina está?

─ Na sala ─ Meg apontou para a primeira entrada à direita, no início do corredor, embora Rony já soubesse a disposição dos cômodos dali.

Tomando coragem, o homem caminhou lentamente na direção da sala, parando assim que suas botinas chegaram a delimitação do umbral de madeira. Inspecionando o lugar, encontrou outro patrulheiro junto da amiga, tentando estabelecer alguma conversa produtiva. Kelvin, mais experimente que Meg, sentara-se na poltrona diante da mãe desamparada e perguntava pela enésima vez sobre os detalhes do desaparecimento.

Assim que sua presença foi sentida, Gina ergueu o rosto, macilento e lavado de lágrimas, e viu o amigo de infância aproximando-se. A sensação de familiaridade contagiou os dois, Rony caminhando de encontro a ela, sentada no sofá, ela retornando ao choro copioso.

─ Eu assumo ─ disse à Kelvin e se agachou diante da amiga, que tremia muito ─ Gina… O que está acontecendo? ─ perguntou num tom de voz carinhoso e acolhedor.

─ Rony… Eu… Eu… O Alvo… Droga, sou uma mãe de merda… ─ murmurou entre um soluço e outro.

Ele respirou fundo e pegou nas mãos dela, encontrando um par de luvas verde de borracha sobre a pele.

─ Por que está com luvas de lavar louça? ─ disse, retirando-as gentilmente. Por debaixo da borracha, as pele de Gina estava fria e áspera. Envolveu suas mãos nas dela para aquecê-las.

─ Eu estava lavando a louça… Baixei a cabeça por um segundo e ele sumiu… Não deveria ter deixado… Não deveria ter descuidado.

─ Entendo ─ comentou, após uma pausa ─ Mas você precisa de nos dizer mais do que isso se quiser que encontremos Alvo. Que horas ocorreu o desaparecimento?

Gina molhou os lábios, piscando repetidas vezes e parecendo voltar a se conectar ao mundo. Focou o olhar no amigo policial a sua frente.

─ Por volta… Acho que das quatro horas e pouco… Ele ficou brincando na calçada enquanto eu lavava louça. Meu Deus, desviei o olhar por um segundo…

─ Qual era a roupa dele?

─ Ah?

─ A roupa que o Alvo vestia. A cor e tudo mais. ─ repetiu sem pressa.

─ Era… Era um casaco vermelho… E usava uma calça azul-escuro também…

A sargento Meg surgiu do corredor, as botinas ressoando pelo chão de assoalho e esperou, paciente e a postos, para responder as perguntas que viriam do superior.

─ Interrogaram os vizinhos? Alguém viu uma pessoa suspeita pelas redondezas?

─ Não, senhor. A maioria das casas estavam vazias ainda devido ao horário de trabalho e a única vizinha disponível, a sra. Hughes, diz ter escutado apenas os chamados da sra. Wood.

─ Fiz uma ronda no perímetro, nesse e nos outros quarteirões e perguntei para quem encontrei na rua, mas nada também ─ Kelvin encorpou a informação, gravemente.

─ Alvo… ─ Gina susurrou enterrando a cabeça entre os braços e afundando os dedos nos cabelos cumpridos e desalinhados. De repente ergueu o rosto exibindo um olhar assustado ─ Rony, o Mike! E se o Mike levou o Alvo? ELE DISSE QUE VOLTARIA!

O policial ergueu a mão pedindo para ela se acalmar.

─ Ele está preso. Muito bem trancafiado, eu mesmo me certifiquei disso, lembra?

─ Não importa. Você tem de verificar ─ pegou-o pelo colarinho do uniforme, puxando-o transtornada ─ Se ele levou meu filho, não sei do que seria capaz… Alvo não… Meu filhinho não…

O ruivo se desvencilhou do puxão da mãe desesperada e a abraçou forte, o corpo magro da amiga se perdendo em seus braços. Sussurrando em seu ouvido, prometeu:

─ Vou dar uma busca geral. Também consultarei o presídio para nos certificarmos. Mas fique calma, ok? Alvo precisa da mãe dele inteira quando voltar. Você não pode quebrar.

A sargento Penninck fez um movimento discreto com as mãos, às costas de Gina, para chamar a atenção do tenente. Ele entendeu o aceno como um convite a uma conversa particular, o estômago pesado chumbo, e pediu para a mãe de Alvo esperar na companhia de outro policial. A sós na cozinha novamente, a policial Meg entregou um frasco laranja para ele.

─ Clozapina. Encontrei no armário do banheiro ─ revelou. O homem encarou a embalagem de medicamento, o nome da amiga na prescrição médica, e apenas uns poucos comprimidos ali dentro.

Tocou a nuca, pensativo, colocando a medicação sobre a mesa. A seguir coçou os olhos demoradamente e caminhou para a soleira da porta aberta, observando a rua pouco iluminada.

─ Tenente Weasley. Essa medicação é para controlar esquizofrenia, não? ─ a jovem patrulheira argumentou ao seu lado.

Ele concordou com um meneio de cabeça simples.

─ Qual sua relação com a sra. Ginevra Wood, senhor? A título de curiosidade, digo ─ Meg agarrou seu cinto e torceu-o até esbranquiçar os nós dos dedos.

Suas mãos estavam suadas. Ficar perto de Ronald Weasley a deixava abalada, interagir com ele então, era quase uma provação. Uma pergunta pessoal? Ela não se lembrava nunca de ter coragem para fazer. Tudo que sabia sobre o colega era através de outras pessoas, como a atendente da delegacia que a havia colocado a par do estado civil dele: Divorciado há muitos anos. Completamente solteiro.

Desde a primeira vez que o conhecera na corporação sentiu um puxão estranho no centro da barriga e um formigamento nas palmas das mãos. Sua paixonite pelo colega de trabalho ia desde sentir o peito acelerar ao escutar sua voz rouca e tranquila no rádio patrulha até se perder no rosto dele, tentando descobrir quantos charmosos e raros fios brancos despontavam em sua aparada barba ruiva.

─ Somos amigos de infância. Grandes amigos. Olha, Meg, a Gina passou por muita coisa ruim na vida nos últimos anos, coisas que justificariam atitudes deturpadas, confesso, mas uma coisa que eu tenho certeza é que ela não fez nenhum mal ao filho. O frasco está quase vazio, aliás. Ela está tomando os comprimidos, sim. Vamos nos focar nas possibilidades mais reais como, por exemplo, esse bairro meio barra pesada. Procurar no banco de dados da central possíveis pervertidos nessa área é a prioridade atual, ok?

─ Claro, senhor.

─ Faça um chá, um café, um chocolate quente ─ virou-se para a cozinha outra vez, apontando para os armários descascados ─ Sei lá, qualquer coisa que encontre por aí e possa acalmá-la um pouco. Procure alguma blusa no quarto, ela está gelada. E não pergunte nada, muito menos sobre a medicação, ela vai falar mais quando o baque inicial passar.

─ Certo. E o senhor? ─ quis saber ao vê-lo se preparar para descer as escadas em direção a rua escura.

─ Eu vou dar uma caminhada por aí e tentar descobrir alguma coisa.