Beyond

Capítulo 2


As algemas ainda incomodavam John. Aquela superfície metálica e gelada, a pequena sala de interrogatório, na qual esperava já por duas horas, e o terrível sentimento de solidão não faziam bem para o seu ânimo.

"Porque eu fui ouvir aquela terapeuta idiota?", perguntava-se. Teria ficado por mais anos chorando pelo suicídio de Sherlock, perguntando-se afinal porque nunca tivera sido motivo suficiente para fazer o amigo querer viver, com seus sentimentos atolados em Londres. Mas, ao menos, estaria em Londres.

Sentia o frio sair da mesa de vidro e esfriar a sua testa. Lembrou-se do sangue do amigo encharcando os negros fios de cabelo... Deu um pulo da cadeira quando ouviu a porta se abrir. Uma pasta foi posta à sua frente pelo agente durão cheio de vermes, ou aranhas. Ele a abriu e tirou a primeira foto:

—Você reconhece essas pessoas?

John a observou: uma mulher loira muito alegre, por volta de quarenta anos, e uma garota adolescente parecida com ela.

—Não.

—Você sabe qual o custo de vir para esse lado?

O Dr. Watson olhou para Francis com uma boa dose de cansaço:

—Eu não faço ideia do que você está falando.

—Então você não sabe que elas duas MORRERAM para você e seu amigo virem para cá?

—Amigo?

O agente colocou a foto do assaltante na frente do interrogado:

—Eu quero um nome!

O Dr. Watson tentou cruzar os braços, mas esqueceu estar algemado:

—Eu já disse tudo o que eu sabia. Não tenho mais nada a dizer.

Charles se levantou, dobrando de tamanho. John não se moveu. Sua mão parara de tremer, ele notou. O homem podia triplicar, quadriplicar de tamanho! Aquele soldado, estava precisando mesmo aumentar a adrenalina no seu sistema.

—Vamos te colocar na solitária por alguns dias, então irá querer falar.

—Eu exijo contato com o consulado britânico!

Charles fechou a pasta rindo. Deu a volta para alcançar a porta, mas alguém já a abrira por fora. Olívia acenou para que ele ainda não tirasse o homem da sala de interrogatórios. John foi deixado sozinho novamente.

—Liv? —perguntou Charles, fechando a porta atrás de si.

—Bem, eu chequei, só para ter certeza. O blog que ele disse que existia, não existe desse lado. Inclusive, ele também não existe desse lado.

—Ele é do outro lado, já sabemos disso.

—Sim, mas veja—pediu ela, transferindo para ele um tablet: — Essa notícia é de um ano atrás. A versão dele do nosso lado...

Francis olhou primeiramente para o título da notícia: "Detetive da Scotland Yard e ex-veterano de guerra morrem durante investigação criminal". A foto de John e de Lestrade eram as maiores, mas o agente não se sentiu motivado a ler a notícia e devolveu o aparelho para ela:

—Liv... —ele parou por um segundo, sabia há muito tempo que teria de ter aquela conversa com ela, mas nunca imaginou que teria de ser ali, naquele corredor, no meio de um dia atribulado: —Liv, eu sei que muita coisa aconteceu com você do outro lado... Eu sei que você viu pessoas que julgou serem boas, mas...

Olívia sentiu um misto de vergonha e inconformismo:

—Existem pessoas boas do outro lado, Charles...

—Eu não estou falando do pai do Henri. Mas, Liv, não podemos deixar de lembrar que eles causaram tudo isso no nosso mundo! O evento de hoje foi crítico! Você sabe que ele não poderia ter acontecido. Estamos a ponto de quebrar!

—Eu sei! —disse ela, mordendo o lábio inferior.

—Liv, tem certeza que você não quer ir para casa e...

—Não! Deixe-me interrogá-lo, ok?

Ela sentiu a expressão contrariada do amigo. Mas, ele não conseguiu ceder ao pedido dela, ele dificilmente a via tão fragilizada.

Olívia pressentia que o desconhecido na sala de interrogatório não era o caminho mais óbvio para se chegar a Peter. Não conseguia dormir todas as noites imaginando que o homem que amava a via como uma manipuladora, traidora, e sabe-se lá mais o que. Lembrou-se da outra Olívia... Nenhum dos seus companheiros percebera que não era a original que estivera ao lado deles por todo aquele tempo. Não podia deixar de sentir uma boa dose de irritação por sentir-se tão substituível.

Ela entrou na sala, mais branda que Francis.

—Sr. Watson, porque veio para este lado?

—Eu já disse para vocês, eu não sei do que estão falando.

—Você é um ex-veterano de guerra, sabe muito bem como se safar de um interrogatório.

—E também sei tudo o que vocês poderiam fazer para tentar tirar algo de mim. Se eu tivesse algo para dar, já teria dado.

—Você disse que é vive em Londres. Certo? Mais cedo pediu para que ligassem para o detetive Lestrade na Scotland Yard, também deu o telefone de uma viúva, a Sra. Hudson. Fizemos contato com ela.

—E? —perguntou animado, o tom brando de Olívia começava a lhe dar uma falsa sensação de segurança e otimismo.

—Ela não é viúva, mora com o marido há mais de trinta anos no endereço que você me deu.

—Na Barker Street com o marido? —espantou-se.

—Sei... Eu sei que do seu lado pessoas ordinárias não tem conhecimento do nosso lado. Você trabalhava para a Scotland Yard do outro lado?

—Ah, quase isso—respondeu, imaginando que o trabalho de assistente de consultor poderia não ser aceito como verídico naquelas terras.

Como você veio para esse lado?

Até então ninguém havia feito aquela pergunta. A verdade era, desde que iniciara a briga com o assaltante, não tinha ideia de como tudo mudara tanto.

—Eu não sei o que significa esse lado, mas vou contar o que aconteceu antes de vocês me encontrarem... —e iniciou sua narrativa, como se estivesse descrevendo o seu dia em seu blog. A ruiva ouvia com atenção e quando ele terminou, ela colocou o tablet sobre a mesa.

—Este é um mundo paralelo ao seu. Há muito tempo, nossos mundos se dividiram e seguem histórias diferentes. O seu mundo, culpado por essa separação, está bem, mas o nosso está entrando em colapso. E a sua vinda para cá, ajudou a desestabilizar ainda mais a nossa realidade.

John a olhou espantado. Como queria que Sherlock estivesse ao seu lado para poder se agarrar à certeza de que aquela mulher era louca! Que todos no mundo ficaram loucos!

—Americanos tem uma cultura diferente, mas isso é um pouco de mais... —pensou em voz alta.

Ela passou o tablet para ele. Ele, consternado, passou os olhos pela notícia, sem conseguir lê-la completamente:

"Detetive da Scotland Yard e ex-veterano de guerra morrem durante investigação criminal", "Moriarty é capturado vivo e recebe pena de ser preso em âmbar", "O consultor investigativo Sherlock Holmes se recusa a falar com a imprensa", "O velório e cremação do detetive Lestrade e do doutor Watson ocorrerão nesta quinta-feira".

Ficou estático em frente à notícia. Olívia o observou cuidadosamente.

John estava morto. Ele mesmo estava morto. Talvez estivesse morto de verdade! Talvez o assaltante o tivesse abatido durante a briga. Talvez estivesse em coma em algum hospital. Qualquer que fosse a saída mais lógica, John percebeu que seu coração aos poucos a queria rejeitar. Sentiu uma paralisia geral e não conseguiu deixar de ler por várias vezes a mesma frase: "O consultor investigativo Sherlock Holmes se recusa a falar com a imprensa".

Quando conseguiu voltar a si, apenas uma coisa passava por sua mente:

—Posso fazer uma ligação?

.o.

Olívia parou por um momento antes de entrar no laboratório. Sua mão direita tocou a maçaneta da porta, mas ela se deteve. A breve descrição que Peter fizera da outra Olívia voltou à tona à sua mente. "Ela sorri mais fácil". Engoliu seco. Esperava não ter que voltar ao outro lado, nunca mais...

—Olívia, tudo bem? —ouviu, ao mesmo tempo em que sentiu sua cintura ser envolvida pelas mãos de Peter. Após um beijo breve, a resposta:

—Temos que falar com Walter—disse já girando a maçaneta.

—Olívia! —exclamou Walter. —Veja! Estou iniciando um novo projeto! Brigadeiros com sabor capim! Acho que a nossa amiga vai gostar! —continuou animado, apontando a vaca do laboratório com o olhar.

—Walter, você se lembra do nome Richard Viscosin?

A expressão alegre de Bishop pai adquiriu feições pensativas:

—Richard Viscosin?

—Sim, ele estava envolvido nos testes de Cortexephan?

Olívia lembrava-se de todos os nomes das crianças. Ela mesma fizera a lista. Aquele não era um deles.

—Sim, Olívia. Eu me lembro. Ele ficou por pouco tempo e recebeu uma dosagem muito pequena. Os pais quiseram afastá-lo do projeto na época. Não que tivessem qualquer noção real do que fazíamos. Eu me lembro que o pai dele recebeu uma oferta muito boa de emprego em outro estado, além do que o dinheiro que era fornecido pelo teste não era mais necessário para eles.

—Ele cruzou para o outro lado nesta noite, junto com outra pessoa—ela mostrou a foto para Walter.

—Cruzou? Mas, isso deve ter abalado ainda mais o outro lado! —percebeu Astrid, aproximando-se.

—Sim, Asterix. Receio que sim! —e lançou um olhar de preocupação involuntário para Peter, devolvendo a foto para Olívia. —Precisamos descobrir porque esses dois foram para o outro lado!

Antes de qualquer sugestão, eles se viraram após o estalido da porta se abrindo. Um homem alto, magro, de cabelos muito negros contrastando com a pele pálida e olhos azuis indiscutivelmente observadores. Ele entreabriu os lábios para falar, mas seu olhar ateve-se na vaca, mais ao canto do laboratório. Sim, o breve mugido foi o primeiro som de recepção para Sherlock Holmes naquelas terras americanas.

Voltou-se para Walter estendendo a mão, ao mesmo que observava os outros, ágil:

—Dr. Walter Bishop, eu presumo.

Um pouco desconsertado, ele apertou a mão daquele desconhecido de sotaque britânico. Sherlock percebeu as fotos que Olívia acabara de colocar sobre o balcão.

—Eu o conheço?

—Não, mas eu conheço vocês. Trabalho com a Scotland Yard, estou aqui por causa do desaparecimento de um dos nossos consultores, o Dr. John Watson. Sou o detetive Loshem.

Olívia interveio:

—Você veio aqui através de Broyles? Sou Olívia Dunham. Estou investigando o paradeiro do seu consultor.

—Não, vim através de contatos da Interpol. A não ser pelo Dr. Bishop, que eu já conhecia.

—Bem, a nossa divisão não está habituada a trabalhar em parceria, Sr. Loshem—iniciou a agente. —Terei que contatar meu supervisor.

—Não será necessário. Não pretendo trabalhar em parceria com vocês. Vim apenas fornecer as informações que possuímos—ele entregou uma pasta que carregava consigo, Astrid a apanhou, um pouco perdida. —Por favor, fiquem também com o meu contato, caso precisem de mais alguma informação— disse, enquanto escrevia seu número de celular em uma folha de sua caderneta, arrancou-a, e a entregou a Peter.

—Desculpe, — falou Walter. —de onde disse que me conhecia?

—Eu não disse. Do seu trabalho. Acompanhava algumas publicações suas. Digamos que eu tenho certo interesse pela área científica. Mas, não vou tomar mais do tempo de vocês, foi um prazer, Dr. Bishop—finalizou, cumprimentando-os e saindo visivelmente apressado do lugar.

Enquanto os cérebros do laboratório devoravam as novas informações recebidas, Sherlock caminhava pelo campus de Harvard, esperando pelo carro que logo apareceria. Até dois dias atrás não fazia ideia da existência de outro universo. Mas, acreditava ter mexido nas corretas marionetes. Ao menos, ele estaria perto o quanto fosse possível para garantir que seu amigo fosse resgatado.

O enigmático carro parou ao seu lado:

—Foi daqui que chamaram o carro do prazer?

Ignorando a pergunta de Irene, mesmo que ambos soubessem o quanto ele havia apreciado, entrou:

—Então, há quanto passos de resgatar o seu amiguinho, Sr. Holmes?

—Você não quer ouvir essa resposta, Srta. Adler. Prefere desvendar você mesma.

Ela sorriu para ele, que não deixara de lado a expressão de preocupação pelo amigo. Vendo que o dia findava, disse a única sugestão velada que ela podia-lhe falar:

—Se é assim, vamos jantar?

...

(capítulo 2 de 6)

(continua...)