Beyond

Capítulo 1


Alerta de Spoiler: Esta história se encaixa na terceira temporada de Fringe (após episódio 19) e pós season finale da segunda temporada de Sherlock.

.o.

Abriu o zíper da mala bobamente: fora mais uma noite mal dormida. E, agora, mais uma manhã de chuva fresca para que o ombro ferido na guerra o lembrasse de tudo o que perdeu com a morte do amigo: a capacidade de superar a dor.

Colocou dentro dela algumas roupas escolhidas de qualquer jeito. Fechou o laptop sem observar que o contador do seu blog ainda exibia um grande número de visitas, mesmo após a difamação completa do seu melhor amigo.

Sua mão tremia. Fazia alguns dias que aquele efeito retornara. Saiu do quarto e voltou para a sala de estar. Notou o revolver que Sherlock utilizava nas noites de tédio para se distrair judiando da parede: estava ao lado do violino. Fechou os olhos com força. Tinha que sair logo daquele lugar!

—Querido, tem certeza de que não precisará de mais nada?—perguntou a voz suave e maternal.

—Tenho, Sra. Hudson. Obrigada.

Ambos se abraçaram, silenciosamente. Ela enxugou os olhos. Não se viram desde o dia em que visitaram juntos o túmulo de Holmes.

—Sinto muito por ainda não ter dado um jeito nisso—disse John, apontando os equipamentos científicos espalhados na cozinha. —É só que... Eu ainda não consigo... Mas, quando eu voltar...

Ela fez um gesto para que esquecesse. Ele acenou agradecendo.

—Bem, essa casa ficará muito silenciosa daqui para frente. Sabe quando vai voltar?

—Não tenho certeza, mas, se precisar de qualquer coisa, por favor me ligue.

Ela meneou, ambos sabendo que nunca faria.

—Adeus, Sra. Hudson.

—Adeus, John—choramingou.

John deu passos lentos até a porta e olhou mais uma vez para dentro do apartamento. Toda a bagunça que Sherlock deixara para trás, toda a vida que John ainda sentia que existia, em algum lugar, mas longe dele... Em sua postura militar, não se permitiu transmitir o imenso transtorno que retornar ao apartamento 221B lhe causava. Enterrou bem no fundo do coração toda a dor e saudade sentida, mas não conseguiu deixar de murmurar ao dar seu último olhar para os poucos fragmentos que ele ainda podia alcançar do amigo:

—Adeus, Sherlock.

E fechou a porta atrás de si.

.o.

—Astro, preciso das luvas, AGORA!

Astrid levantou os olhos do computador e encarou Walter com incredulidade. Ele rebateu o olhar dela:

—Você não quer arruinar o meu trabalho, quer, Asteroide?

Ela se levantou, girando os olhos de inconformismo. Pegou as grossas luvas térmicas, do outro lado do laboratório, e as entregou ao aflito cientista.

—Ei, o que vocês estão fazendo? —ouviram Peter perguntar, enquanto caminhava tranquilo da porta para dentro.

—Isso, Peter—disse o orgulhoso Dr. Bishop tirando uma forma de vidro de dentro do micro-ondas: —É a minha invenção mais revolucionária!

O filho cruzou os braços, atento.

—Cupcake de queijo e bacon! A textura do bolinho com o sabor inigualável do bacon e o queijo como recheio. Mas, espere! Isso é só o começo, como o meu Flan de bacon foi um sucesso, o novo passo só poderá ser um: incrível suflê de bacon e barbecue! Magnífico!

Peter e Astrid se entreolharam e riram.

—Mas, onde está Olívia hoje?

—Broyles ligou para ela. Não sei muito bem, mas não deve ser nada muito grave. —respondeu o filho, enquanto pegava um bolinho, mas o colocou de volta cuidadosamente, quando percebeu que Astrid acenava para que ele não o comesse, um pouco ofendido, Walter argumentou:

—Ora, foram apenas duas larvas, nem dá para notar no sabor!

.o.

—Senhor! —disse a loira para o seu superior, ao entrar em sua sala. Broyles, concentrado, observou a Olívia bem disposta.

William Bell ter habitado no corpo dela por dias já parecia um acontecimento muito distante, e ela só conseguia sentir a alegria dos que passam a noite com seu amado. Lembrava-se de Peter, pensava em Peter, respirava Peter. Mesmo sem exibir a expressão tão tensa como era de costume quando era chamada naquela sala, ainda assim a consciência de que aquele chamado não podia trazer boas notícias era iminente em sua mente.

—Como tem passado?

—Bem—respondeu. Bem demais, como o seu sorriso declarava.

Ele estendeu uma pasta para ela. Ao apanhá-la, abriu e começou a ver as primeiras fotos. Ele não demorou a explicar:

—Houve uma situação ontem a noite, no Aeroporto Internacional Gen. Edward Lawrence Logan. Essas fotos foram feitas a partir da câmera de segurança local.

Olívia passava as fotos. Dois homens pareciam brigar, logo os dois sumiam e após o que parecia ser uma distorção no espaço, dois corpos estavam no mesmo lugar. Ela levantou o olhar, sobressaltado.

—Eu tive acesso à fita, mas agora ela está com meus superiores. Tivemos um bom trabalho para deixar o caso longe da imprensa. Segundo testemunhas, o homem moreno na fotografia havia assaltado uma loja de conveniência, o homem loiro tentou pará-lo e ambos começaram a brigar. O que veio em seguida, acho que você conhece melhor do que eu...

Ela assentiu e voltou-se para as fotos, novamente, observando também os papéis abaixo delas:

—Já identificaram os envolvidos—percebeu ela, surpresa.

—Sim. O homem loiro é um londrino, Dr. John Watson, médico e militar, esteve na guerra do Afeganistão, de onde saiu há pouco mais de dois anos. Visto de turista. O outro homem é Richard Viscosin, estava na lista de desaparecidos há cinco anos e—Broyles fez uma pequena pausa e observou-a—agente Dunham, ele é de Jacksonville.

Seus olhos azuis se arregalaram. "Mais uma das crianças tratadas com cortexaphan?".

—Obrigada, senhor.

.o.

"Passageiros para França, por favor, dirijam-se para o portão 4. Passageiros para França, por favor, dirijam-se para o portão 4.".

Não era o seu voo. Mas, pela primeira vez, em dias, alguma outra voz parecia fazer sentido em sua mente. De fato, uma mudança de ares começou a soar como uma boa ideia. Talvez contasse à sua terapeuta que ela estava com a razão, afastar-se de Londres, de qualquer coisa que pudesse relacionar ao suicídio do amigo, fazia bem a ele. A quem queria enganar? Não contaria nada àquela mulher irritante. Jamais confiou nela.

Apanhou sua mala com certa dificuldade. O tremor de sua mão começava a atrapalhar os seus movimentos. Ignorou como um perfeito soldado.

Como queria descarregar aquela fúria escondida! Segurando a sua mala, só conseguia imaginar Sherlock à sua frente. No imenso soco que daria naquela face pálida e sádica. "Alguém ama você. Se eu tivesse que socar esse rosto, eu evitaria seu nariz e dentes também", lembrou-se de Irene dizendo ao amigo. Agora se sentia mais do que disposto a quebrar aquele irritante nariz.

"Deus! Como eu queria poder socar alguém!", declarou-se em pensamento quando ouviu o grito vindo da loja de conveniência.

Observou como se estivesse em campo de batalha: o homem moreno correndo para fora da loja, dois guardas um pouco distantes que começariam a correr no instante seguinte atrás do ladrão, uma oportunidade perfeita para descarregar a sua fúria de frustração. Atirou-se em cima do homem.

O moreno tentou desviar, derrubando o pequeno diapasão que procurava tirar do bolso. O primeiro soco o atingira, mas logo se esquivou do segundo e investiu uma joelhada certeira no estômago de John. Era tudo o que o Dr. Watson precisava para libertar o ódio reprimido: agarrou o braço do adversário e o puxara para si, aplicando-lhe um cadeado que em poucos minutos lhe tiraria a vida. O homem foi capaz apenas de derrubar ambos no chão, enquanto não era capaz de colocar ar no próprio pulmão. Os guardas se aproximavam para separar os dois quando, sem John reparar, Richard Viscosin apanhou o diapasão e, segurando em seu centro neutro, ativou uma das hastes com uma breve pancada.

John percebeu o ar se distorcer. Suas mãos se afrouxaram. Era aquilo, estava delirando, em outro país, e tinha atacado o que provavelmente era um americano. Onde estava com a cabeça? Devia ser efeito do estresse. Acordaria numa cama de hospital. Sua primeira ação teria de ser ligar para o consulado britânico. Talvez fosse deportado.

—EVENTO FRINGE! TODOS SE DIRIJAM PARA A SAÍDA MAIS PRÓXIMA! DEVAGAR, POR AQUI!

Ouviu gritos de desespero à sua volta. Os guardas não alcançaram a briga. Inclusive, os poucos guardas naquele aeroporto pareciam conduzir as pessoas para fora dele. John se levantou, um pouco tonto. Quando deu por si, dois policiais, com roupas que nunca antes vira, apontavam armas para ele:

—Parado!

Ele olhou à sua volta. No teto de vidro que nunca antes reparara, um dirigível se movia no céu. A mala que deveria estar ao lado dele sumira: "aquele ladrão!", imaginara, mas o homem moreno não estava mais ali.

—Espere, há um engano! Eu sou de Londres, estou aqui apenas pelo turismo!

Os homens não se aproximaram para apanhá-lo ou algemá-lo. Apenas mantiveram-se estáticos. John teve a terrível sensação das execuções que presenciara durante a guerra. Aquele tipo de espera não podia ser bom sinal. Ao mesmo tempo, nada daquilo fazia sentido.

—Liguem para a Scotland Yard! —percebeu John sua saída. —Falem com o detetive Lestrade! Ele pode confirmar o que eu digo, o meu nome é John Watson!

Mas, os homens não se moveram e dois agonizantes minutos se passaram, com o Dr. Watson tendo a certeza de sua morte. As portas se abriram e várias pessoas, que pareciam soldados em roupas negras entraram no ambiente. Uma ruiva com um aparelho estranho em suas mãos afirmou:

—Nível 6, vamos ter que ambarizar este lugar! Lincoln!

Lincoln se aproximou do grupo que cercava John e os homens se dispersaram:

—Querendo dar uma voltinha nesse lado, não é? —perguntou com um sorriso irônico e, apanhando seu ombro com a arma apontada para as costas do doutor, fê-lo andar para fora do aeroporto.

—Liv, eu continuo daqui—disse Francis, apontando a saída com o olhar.

Um pouco contrariada, ela concordou. Ambos sabiam que nada podia acontecer a ela, afinal, já tivera sido insistente além do ponto para retornar ao seu trabalho confiando seu filho aos cuidados da babá oferecida pelo primeiro ministro.

—Escute, há um engano. Eu vim apenas por turismo! —repetira John para Lincoln.

—Turismo? —perguntou ele, rindo. —Essa foi a coisa mais absurda que eu já ouvi! Vai ficar fazendo piadinhas na minha cara?

—Não estou brincado! Meu nome é John Watson. Ligue para o detetive Lestrade na Scotland Yard! Ele pode confirmar o que quiser sobre mim!

Lincoln deu um sorriso irritado e decidiu não dar mais atenção ao homem, colocando-o dentro da viatura, após o algemar. Entrou no veículo e logo veio Olívia, sentando no banco do passageiro. O amigo deu a partida e saiu a toda velocidade, assim como os vários outros carros à volta, como se fugissem do inferno.

John ouviu o grande barulho e olhou para trás, uma estranha substância começava a envolver todo o aeroporto. Como uma chave quebrada, o âmbar destruíra sua única forma de voltar para casa.

(continua...)