É claro que tropeço uma boa centena de vezes até o teatro. A porta barulhenta me faz usar uma força que não tenho para abri-la.

Vou até a parte de trás da grande cortina. Uma sombra passa à minha esquerda e após examinar melhor concluo que não passou de imaginação minha. O figurino da peça que os alunos - menos eu, que não consegui um papel nem como parte do cenário - que tem feito as aulas de teatro com o tio Joshua encenarão tem cheiro de poeira e mofo e espirro várias vezes. Meu nariz pinica em uma reação alérgica que me é bem comum. Àquelas peças remontam ao vestuário do teatro de quase seis anos antes. Foi uma surpresa encontrar as roupas ainda inteiras.

– Oi, Ruby - fala.

Volto-me para trás e olho para aquele ser que pensei ser fruto da minha imaginação.

– Veio me ajudar? Precisamos levar muitas caixas - puxo as caixas desmontadas do chão, guardadas bem em cima do palco.

Sinto uma pressão nas costas e uma dor excruciante na lateral da cintura. A ponta serrilhada passeia por minha carne. Não me importo com o sangue e viro-me de súbito para aquela pessoa, que segura uma das facas que usáramos na barraca de cachorro-quente.

Não falamos. O silêncio é interrompido em segundos por um agudo gotejar vermelho e nos acompanha e se assoma ao nosso redor. Nunca um silêncio teve um peso tão grande para mim.

– O que é isso? Por que fez isso? - falo e me surpreendo com a frieza em minha voz.

Que parece a mais calorosa das vozes se comparada ao rosto de mármore daquela criatura, cujo olhos parecem famintos direcionados ao meu corte.

– Porque você merece. Lucius vai ser meu fácil fácil quando eu acabar com você. Vou ter mais sorte do que o que fiz com a estúpida da irmã dele.

– Elli? – sussurro surpresa.

O choque me paralisa e faz com que meus membros adormeçam.

– Isso, Ruby. Quem achou que seria? Joseph - ela bufa - O sondei e ele sequer cogitava te punir por preferir Lucius a ele. Nisso não a culpo. Lucius é como um astro de um planeta exótico - seus olhos brilham - e você é uma vilã, uma bruxa em nosso caminho.

Aperto a parte cortada e ao senti-la molhada sei que tenho que encontrar um modo rápido de sair daqui. Elli vai me matar se eu ficar e apesar de ser maior do que ela, não posso arriscar enfrentá-la diretamente. Há uma faca grande em sua mão esquerda, que toca o chão com sua ponta enferrujada. Parece muito com um daqueles facões que o zelador usa para podar as árvores que ameaçam invadir as salas de aulas pelas janelas.

Preciso de tempo para pensar. Meu cérebro parece se recusar a encontrar uma saída.

– E o que Giane teve haver com isso? Ela por acaso era o meu dragão de estimação?

Ela inclina a cabeça para a esquerda e parece refletir. A meia luz escurece completamente os seus olhos, a fazendo parecer um espectro com órbitas negras e terríveis em grande parte da face.

– Não havia pensando nisso desse jeito. Mas agora que me disse, confesso que parece sim. Sim, mesmo. Ela estava perto de mim e eu senti raiva.

– E só por causa disso?

– Claro.

Preciso de mais tempo.

– E pretende entregar a liderança da escola nas mãos do Lucius?

– E vou consolá-lo e conquistá-lo.

– Acredito em você – encaro seus olhos a procura de um pensamento racional que a faça desistir do que tem em mente.

– Está sendo irônica?

... Mas nada encontro. Nenhum ressentimento nem dúvida.

Meu punho direito se choca contra o seu queixo e o rosto vira completamente. A faca serrilhada passa por minha pele novamente, mas sem tanta intensidade como antes porque já havia me afastado. Pulo do palco e nem sinto dor pelo impacto e corro em zigue-zague até bem perto do portão.

Sinto a aproximação de Elli e antes de cometer a estupidez de usar a porta, noto que está trancada com um grande cadeado. Ou ela estava me esperando. Ou ela entrou pela porta lateral. Que deve estar também trancada.

Desesperada corro mais, ligeiramente tonta pelos cortes que vertem sangue. Instigo minha mente a recordar outra saída. Mas de nada lembro. Noto que Elli voltou para o palco e carrega o figurino com cheiro de mofo.

– Fooogo - cantarola e acende um isqueiro, queimando as roupas - A seda queima absurdamente rápido, vadia.

– Uma fogueira para uma bruxa - diz outra voz.

O nervosismo é tão grande que rio histericamente. Quem diria que o fã clube do Lucius tinha planejado me matar? Tamara puxa o meu cabelo e me faz olhar para ela. Outras mãos me empurram. A garota responsável pelo showzinho contra mim no debate está aliada a elas.

Não me lembro do seu nome.

– Gostou da surpresa? - pergunta Tamara.

– Só vocês três?

– Foi o que consegui - Elli alimenta o fogo com algo que carrega em uma garrafa escura.