A manhã ensolarada muda tão rápido quanto o humor de um adolescente e dá lugar a uma tarde chuvosa. Raios cortam o céu de nuvens cinzentas carregadas de água. Saio de perto da janela do meu quarto e deixo as cortinas encobrirem o que há lá fora. Dou, então, as costas, a uma bela expressão de como me sinto por dentro: tempestuosa e cinzenta.

Estou tão sem vontade de fazer algo que apenas me jogo em cima da cama, machucando o braço esquerdo em que levei pontos. Uma cicatriz rosada estava à mostra e se eu apertasse bem os olhos poderia dizer que fazia mais tempo que eu a havia ganhado.

Minha avó abre a porta sem pudor e me assusta. Ela traja um vestido claro com algumas rendas e uma sapatilha rosa chamativa. Ela conseguia conciliares muito bem cores fortes com cores mais opacas.

– Ai meu coração - falo apertando o peito que pulsa com a força da batida.

– Não seja exagerada. Joshua ainda não chegou e pelo que vejo não vai chegar tão cedo. Sua mãe chega às 21h e eu vou sair. Acha que consegue ficar bem?

Pego meu celular e olho a hora.

– Não sei. Acho difícil ficar sem aprontar por quase quatro horas - digo.

– Engraçadinha. O almoço está todo na geladeira, se quiser esquente para comer ou coma frio mesmo. Cada doido com seu gosto. Mas coma, Ruby, antes que desmaie e acabe no hospital de novo.

– Sim, senhora. Aonde vai com essa chuva?

– À Igreja. Marta vai me levar no carro dela.

Vejo vovó entrando em um carro prateado alguns minutos depois e fecho a casa, e me agasalho na sala com meu cobertor laranja com estampas de patinhos de borracha. Ligo a tv em um filme qualquer e vou para a cozinha. Coloco a pipoqueira com milho, um pouco de óleo e manteiga sobre uma boca acessa no fogão e me recosto na bancada para vistoriar minhas redes sociais pelo notebook que deixei em cima da mesa.

Tenho dez pedidos de amizade no Facebook, mas não os aceito por não conhecer as pessoas que os enviaram mesmo Elli ter me dito para aceitar todas as solicitações. Na minha cabeça havia uma diferença entre ser humilde e adicionar desconhecidos.

As primeiras pipocas eclodiram daquela casca amarela, mas seu som por pouco não foi aplacado pelo barulho intenso da chuva batendo no telhado.

Volto para minhas redes sociais e logo saio enojada pela publicidade que muitos ganhavam por publicarem fotos do incêndio. Havia gente comentando que o incêndio havia sido proposital; gente dizendo que Giane mesmo que incendiara para chamar atenção. O pior ainda eram aquelas pessoas falsas que falavam mal dela e agora estavam bancando seus melhores amigos.

Fiz uma nota mental para dizer isto a ela quando acordasse. O som de milho pipocando cessa e outro som se confunde com o da chuva. A batida se repete. E de novo. Insistentemente.

Coloco a pipoca em uma vasilha grande e ponho sal, delimitando bem minhas prioridades. Vou para a sala e abro a porta em um supetão, tendo a certeza de que nem um ladrão bateria palmas no portão de uma casa antes de assaltar.

– Lucius! - exclamo surpresa por encontrá-lo encharcado no portão.

Seus olhos negros estão afundados em um mar avermelhado pelo choro. Suas lágrimas se confundem com a água da chuva que escorre de seu cabelo.

– Giane deveria ter saído do coma, mas não saiu - ele conta.

Ignoro a chuva e vou até o portão de ferro cor de cobre e o abro. Lucius me abraça no segundo seguinte, esmagadoramente. O deixo chorar torrencialmente e esse choro se iguala a chuva que cai sobre nós.

Ele soluça contra mim e sua dor me inunda ao ponto de se tornar minha.

Quando ele consegue parar de chorar estamos encharcados por completo.

– Acho melhor entrarmos - falo e ele concorda com a cabeça.

Lucius para a porta.

– Vou acabar molhando sua casa. Acho melhor ir.

– De jeito algum. Entra - falei - Você enxuga depois.

Ele sorri.

– Desculpe-me por tê-la deixado - ele fala ainda na porta - Você foi a melhor coisa que me aconteceu e por pouco meu orgulho não te empurrou para muito longe.

– Não precisa se desculpar. Não estou isenta de culpa.

Um raio corta o céu clareando tudo além de Lucius. No momento foi como se dele irradiasse uma aura intensa de choque.

– Entra logo - puxo-o pelo braço e fecho a porta com força - Tio Joshua deve ter uma blusa que dê em você.

– Agora não - ele fala e me puxa pela mão.

Volto-me para ele e bato com força em seu corpo. Ele passa os braços longos por minha cintura, deixando pouco espaço para o ar entre nós e me beija delicadamente e com fervor ao mesmo tempo. Suas mãos brincam com meus cabelos e deslizo as mãos para baixo de sua blusa, arranhando seu abdômen. Ele suspira.

Seu perfume tem cheiro de hortelã, que misturado à água nubla meus pensamentos. Suas mãos ágeis começam a desabotoar minha blusa de botões quadriculada, agora já tão encharcada quanto às roupas dele.

– Lucius, não - falo ofegando - Por favor.

Ele para com dificuldade, claramente lutando para não continuar. Olho para ele e vejo um sorriso mínimo e meu coração se abranda. Lembro-me da primeira vez que resisti às investidas de Vini e de sua expressão de decepção pela minha recusa.

– Tudo bem - ele fala e beija minha testa - Eu entendo.

– Vou procurar uma blusa. Aguenta ficar com essa calça encharcada? - indago parando no corredor, sabendo que Joshua magro do jeito que era não teria nada que servisse em Lucius.

– Você não se aguentaria se eu ficasse sem. Então sim.

Ignoro o rubor que me sobe a face e entro no antigo quarto de Joshua, agora da mamãe, onde ele tem guardado suas malas enquanto procura um apartamento na cidade.

Não encontro em suas coisas uma blusa que dê em Lucius. Joshua é um magrelo e chego a cogitar que suas roupas deem em mim. Vou para meu quarto e do fundo de meu guarda roupa branco com flores rosa puxo um suéter grosso, que bate abaixo dos meus joelhos quando o visto. Ele era do meu pai e o tempo em que está em minhas posses o fez ter meu perfume. E mesmo assim o aperto contra as narinas, querendo sentir o cheiro familiar e reconfortante que eu tanto gostava nele.

Assim como minha relação com meu pai quase inexistente é, sua presença naquele suéter não existia mais.

– Aqui - jogo o suéter para Lucius - Espero que esteja com frio. Foi à única peça que achei que dá em você.

– De quem é? - ele indagou acomodando o suéter em cima do sofá.

– Meu - empinei o queixo.

– Teve algum passado onde tinha o triplo do tamanho?

– Não, palhaço.

Ele riu.

O garoto homem de olhos escuros como a noite me lança um olhar provocante e tira a blusa encharcada, a joga no chão e veste o suéter tão rápido que se eu não conhecesse bem diria que o que manchava sua pele clara de negro era um desenho grotesco.