O fogo dançava como se estivesse vivo. O crepitar era regular e alguns pontos de fogo se soltavam como descargas elétricas. Era hipnotizante ver aquele movimento belo e letal e meus olhos estavam fixos ali, no centro daquele buraco. Desde sempre o fogo e seu poder me fascinava intensamente, cheguei até a brincar com as chamas de um isqueiro determinada vez e as marcas de queimadura que tenho em alguns dedos comprovam isso.

– Estou vendo a hora em que vai pular no meio da fogueira - diz Giane me empurrando com o ombro - Já até vejo sua carne sendo queimada.

– É, eu também.

– O que houve, flor? - indaga Katrina sentada do meu lado em um dos bancos de madeira polida que rodeiam a fogueira.

– Nada. Só estou cansada - acrescentei sabendo a inutilidade daquilo.

Desde cedo eu estava perturbada por minha nova situação. E a fonte de informações parecia querer jorrar cada vez mais para me deixar mais assustada. Um sentimento de sujeira, se é que isso é possível, se fortalece em mim a cada minuto porque ter namorado um psicopata que fez mal as pessoas que estão em minha vida tem me deixado assim.

Sinto meus ombros tensos como se um simples movimento do pescoço fosse capaz de arrebentá-lo.

– Você mente muito mal - ladrou Giane enchendo a boca de pipoca salgada.

– E você é invasiva e nem por isso eu fico anunciando isso - retruco e encho a boca com um punhado de pipocas.

A manteiga e o sal misturado ao gosto do milho invadem minha boca e me acalma. Pipoca me deixa assim.

Um garoto pequeno e engraçado da minha escola, Carlos, iniciou a rodada de histórias de terror. As garotas acompanhadas pelos namorados usam isso para se enroscar mais ainda em seus parceiros. E eu não podia culpá-las por aproveitarem este momento em que os nossos supervisores no acampamento e nossos pais havia nos dado de liberdade enquanto jogam bingo e jogos de baralho no galpão.

– Isso é desnecessário. Este agarramento - falou Eli que sentada ao lado de Katrina dividia com ela um cobertor com estampas de animais.

– Fala isso porque nunca experimentou - murmura Giane revirando os olhos.

Uma pequena discursão dá sinal de aproximação como nuvens negras no horizonte anunciam a chuva e eu decido ir embora. Despeço-me das garotas e nem isso parece aplacar a rixa de Giane e de Eli, que se tornou mais forte mais cedo quando Eli, cega sem seus óculos, sacou a bola de vôlei de forma torta e a bola fez uma curva perfeita para a direita e acertou Giane, que pintava as unhas com seu esmalte preferido a sombra de uma casa de palha. O esmalte escapou das mãos dela e manchou sua roupa, mas o que mais doeu nela foi ter perdido todo o conteúdo do vidrinho.

Dou a volta por fora da roda de bancos, evitando dar poucos passos e traçar uma linha reta porque bem neste caminho está Lucius, ao lado de ML, e mais alguns, inclusive Tamara, que grudou nele como piche durante o dia inteiro. Minhas unhas haviam há muito sido ruídas para tentar aplacar minha raiva daquela garota. Havia ciúme na mistura, mas ela deixava tão óbvio que fazia aquilo por mal que era difícil evitar a raiva. Eu não falava com Lucius desde o dia anterior, quando ele me contou a história por trás de sua tatuagem. E queria muito falar com ele, apesar de não ter o que falar. Eu só queria ficar junto dele.

Encontrei com facilidade a trilha plana, demarcada com pequenas lâmpadas que nos guiava da clareira da fogueira em meio à mata direto para o lado das cabanas. As árvores ali eram mais espaçadas, e a ausência da luz lua deixava tudo mais escuro ainda.

Andei tropeçando nas pequenas pedras pelo caminho. Minha perna enganchou em algo no chão que fez assustar-me. Em seguida as luzes se apagaram. Paralisei, mas quando vi que aquilo em que prendi o pé não era venenoso me abaixei e o peguei encontrando com o tato a extensão que mantinha as luzes acesas. Senti o rosto enrubescer pela estupidez.

Uma mão fria e ossuda pegou em meu ombro. Um grito agudo saiu de minha boca. A luz branca de um celular cegou meus olhos.

– Calma, princesa, não precisa se assustar - sussurra Vini mais perto do que eu gostaria.

– O que quer? - pergunto vacilante e tento me libertar, o que o faz guardar o celular e me segurar pelos ombros com mais força.

– Muitas coisas. Você encabeça a lista.

– Então por que me traiu com minha melhor amiga?

– Sou homem - ele se mexeu e chegou mais perto, porém estava tão escuro que não consegui ver sua expressão, eu apenas senti o aperto forte no meu corpo.

– E você acha que isso é justificativa?! - gritei odiando aquele machismo.

– Quando sua namorada tenta se manter virgem, eu tenho certeza de que sim.

– Você é um cínico!

– Fala a hipócrita que anda agindo como uma cadela no cio perto daquele panaca e prega a castidade.

Meu corpo tremeu tanto que por pouco aquilo não parecia com uma convulsão. No entanto, minha mão se manteve firme quando encontrou o rosto dele. Firme, forte e direta em sua bochecha. Não foi um tapa. Aquele murro merecia ter sido registrado, mas o pique de adrenalina que me tomou conta valia por mil fotos deste momento.

– Vadia - ele disse e veio para mim e foi quando percebi que ele havia me soltado.

Junto da adrenalina veio um extinto primitivo de autopreservação. E foi esta vontade de me proteger que me fez fugir dali. Desta vez eu tentava escapar da retaliação furiosa dele. Vini conseguiu puxar as pontas do meu cabelo enquanto vinha atrás de mim, porém não importava se ele tinha raiva o impulsionando e um corpo atlético de pernas longas porque eu era rápida e sendo mais rápida consegui deixá-lo para trás.

Algo estranho que havia em mim era que ao andar eu tropeçava no nada, mas ao correr eu poderia passar por cima de bolinhas de gude - o que já aconteceu - sem nem vacilar. O chão cheio de pedras e irregularidades nem chegou a me perturbar, e muito menos às vezes que tive que desviar de árvores.

Porém, meu sentido de direção me traiu, partindo do pressuposto de que eu o tenha. Paro de correr e tento ouvir o sinal de mais alguém. Mas apenas o som natural da floresta se propaga. Enquanto eu corria, a lua resolveu dar o ar de sua graça e agora estava fácil enxergar o local desconhecido.

Mantenho-me em pé sentindo a calça jeans que uso ser repuxada por pontadas em minhas pernas. Dobro-me tentando entender o que fazer. A adrenalina bem vinda a pouco me abandona e deixa em seu lugar a culpa pelo que fiz. Não havia arrependimento. Apenas a certeza de que Vini iria ter o desejo de acabar comigo posto em prioridade em sua vida.

Pego o celular no bolso da calça agradecida por ele não ter se perdido e tento usar o GPS naquele aparelhinho. O que se torna uma tarefa não tão infrutífera mesmo quando não consigo minha localização exata porque até a campina da fogueira, cerca de dez metros mata adentro, havia sinal de internet. O que significa que estou mais distante do que antes do centro do acampamento e que quando eu me aproximar vou saber se estou indo para o lado certo só olhando para a barra de serviço do celular.

Faço alguns rabiscos na terra escura com um galho fino de árvore perdido no chão apontando para as quatro direções sem saber qual é qual e marco as pontas com pedras quase iguais.

Começo a andar em direção a minha esquerda em linha reta com passos largos e o conto para voltar aquele lugar, se for preciso. Vinte passos. Sem sinal. Trinta. Nada. Quarenta. Neca. Cinquenta. Chego aos cem passos e continuo sem sinal. Volto pelo mesmo caminho com facilidade e tiro a pedra do desenho no chão que me fez seguir aquela direção.

Tomo o caminho da "seta" da direita e realizo o mesmo processo da vez anterior. A cada dez largos passos verifico no celular se há sinal. Ao 35° passo sei que estou dentro do limite do sinal sem precisar olhar no celular. Vozes me indicam isso.

Ajo com cautela evitando fazer barulho e me aproximo das vozes sem ver os rostos de seus donos. Esgueiro-me por trás de uma árvore de tronco grosso, e me assusto não ao ver os donos das vozes, mas o que eles observam. Uma caminhonete prata com a parte da frente amassada e em alguns pontos arrancada se encontra no meio de uma clareira. Ao lado dela há dois homens: um baixo e atarracado, usando um boné vermelho e o outro, alto, loiro e belo de um jeito velho, Fiore pai.

–... Não consigo parar de repetir, Antônio, foi um estrago bonito este aqui - disse o atarracado batendo com a mão dentro de uma luva no capô do carro.

– Mais do que o que ficou na loja impossível - fala Fiore inflando o peito de orgulho.

Os dois gargalham.

– Lembra-se do que fizemos em 84, Antônio?

– Como esquecer? Até hoje tenho a cicatriz em meu braço e odeio o cheiro de tomates por causa daquela banca - senhor Fiore ri - Mas desta vez a coisa que Vini aprontou por pouco não matou alguém e isto, meu amigo, é difícil de encobrir.

O outro riu.

– Sabemos disso por experiência própria, meu camarada.

O tom trivial e cúmplice daquela conversa turvou minha visão de raiva. O rimbombar no meu peito gritava algo que estava dentro de mim desde o acidente: Vini havia feito aquilo. Vini havia machucado a mim e a Ana.

– Ele estava bêbado e não o culpo, aquela garota, a Ruby, deixa qualquer um doido - senhor Fiore deu de ombros.

– É de família. A mãe dela é igualmente tinhosa e bonita. Então, estamos combinados: levo o carro para meu ferro velho e desmonto sem deixar rastro algum.

– E nada aconteceu. Acho que vou usar este lema para minha próxima campanha.

Os dois amigos, cúmplices e risonhos se afastam do carro rumo ao que deduzi dar no Acampamento.

Afundo no chão de barro, o sentindo úmido ceder sob meu peso. Encosto a cabeça no tronco da árvore e faço uma última ligação.

– Lu?

– Oi, Joia - Lucius me cumprimenta e sua voz doce tem o poder de arrancar de mim à dor que inundara meu peito - O que aconteceu, Ruby?

– Porque deveria ter acontecido algo? - afundo as unhas na terra.

– Você está com a voz doce, quase infantil, o que significa que algo aconteceu.

Pude imaginar em minha mente ele dando de ombros.

– Pode me achar? Eu ligo o GPS do celular e você me acha, ok?

– Ok. Ah, Ruby?

– Sim, Lucius?

– Nada, esquece.

– Ok.