Corri como se fugisse de um monstro feroz.

Fugi por ser covarde e fraca para lidar com minhas próprias lutas. Desde pequena eu corria de discursões, penso que por resultado de ter presenciado as inúmeras brigas que meus pais tiveram antes de se separarem.

Quando minha mãe fechava a porta do meu quarto era sinal de que eles iriam discutir. Mesmo ela tendo cuidado para que eu não ouvisse eu ouvia os berros que venciam as paredes e meu isolamento. Meu pai bebia muito mesmo não sendo alcoólatra e quando isso acontecia ele e minha mãe brigavam por tudo, por coisas triviais e até mesmo por coisas que haviam acontecido antes do meu nascimento.

As brigas nunca se tornaram físicas, mas as palavras machucavam muito. E quando eu chegava ao meu limite eu fugia pela janela, que dava para o lado da casa. Eu corria muito e sempre - até mesmo quando eu não tinha pretensão – minhas pernas me levavam a um prédio de três andares, do qual a tinta era manchada pelo tempo e as pessoas viviam sujas da arte que praticavam.

Aquele prédio me atraía para ele quando eu estava confusa do mesmo modo que abelhas eram atraídas pelo pólen das flores. Talvez, pela mesma energia que nos deixava atraídos pela terra.

Minhas pernas me levaram até aquele prédio depois de eu ter fugido pela janela como se fosse novamente uma criança assustada. Minhas pernas doíam pelo esforço a que eu não estava acostumada e pela distancia que era grande entre minha atual casa e o ateliê e meu braço voltara a latejar pelo ritmo; a atadura ao redor do meu braço irritava minha pele mais do que nunca, porém nada se comparava com o que eu sentia por dentro.

Pela porta de vidro sem fumê vi uma mulher com cerca de 60 anos, mas que possuía a alma mais nova que já conhecia. Uma alma mais nova do que a de muitos adolescentes por aí. Talvez até mais nova que a minha. Lúcia era extremante gentil e jovial e estava sentada atrás de uma mesa lisa de pertences, onde exercia seu trabalho de recepcionista. A única coisa que se destacava além da mulher era um quadro de vidro na parede a sua costa, onde eram guardadas as chaves das salas.

– Você está mais magra, querida – ela disse assim que passei pela porta.

Tive vontade rir por ela ter se agarrado a minha massa corporal e não ao suor que eu sentia escorrer pelo meu rosto nem pela linda atadura em meu braço.

– E você continua aqui. Você merece um aumento bem generoso, Lúcia.

– Sempre fico aqui uns minutos após o encerramento do expediente, estes artistas são tão esquecidos – ela suspirou dramática.

– Como vai a Nessie? – perguntei por sua neta, alguns anos mais nova do que eu.

– Seu pai não contou? – ela perguntou e seu semblante envelheceu deixando as rugas visíveis e os belos olhos azuis apagados.

Confirmei com um aceno de cabeça, mordendo o lábio com medo de ter feito a pergunta errada.

– Ela morreu em um acidente de carro – seus olhos se fecharam e por um segundo, pensei que ela fosse chorar.

Meu peito foi comprimido e algo tentava sugar minhas lágrimas para fora dos meus olhos. Vanessa e eu havíamos brincando algumas vezes quando pequenas e até tínhamos saído juntas quando mais velhas. Mas aí então ela mudou de cidade e nem pela internet mantivemos contanto. Mesmo não tendo estado próxima dela senti a dor da perda como um soco e de certa forma senti vergonha por sofrer por pessoas que me machucavam ao invés de agradecer por continuar viva.

– Os seres humanos eram eternos no início e por isto nós sofremos com a morte, e com a perda e com tudo aquilo que encontra seu fim – Lúcia sussurrou como se pedisse desculpas, ainda mantendo os olhos fechados.

– Sinto muito – digo mesmo odiando frases feitas, mas era sincero.

– Sei que sente porque seu coração continua puro – ela sorriu e finalmente abriu os olhos, os revelando meio avermelhados. – O que a trouxe aqui?

– Eu não sei – optei por ser sincera, de novo.

– Está relacionado à depredação de patrimônio particular?

– Eu... – tossi tentando esconder minha risada – Não desta vez.

Eu não era lunática e nem desequilibrada mentalmente, talvez só um pouco. Havia momentos dignos de arrependimentos dos quais eu não me arrependia e ainda sentia certa graça da situação. O caso da vez foi logo após eu ter descoberto que meu pai namorava outra, um pouco depois de eu ter aberto mão da pintura. Eu havia entrando revoltada no ateliê dele enquanto ele não estava e havia destruído seus pinceis, estragado tinta jogando elas nas paredes e rasgado algumas telas em branco. Não era algo do qual eu me orgulhava, mas também não era algo que me provocava arrependimento.

– Ótimo! – ela cantarolou.

Lúcia se voltou para o quadro de chaves atrás de si e tirou de lá uma enferrujada que me era familiar. Ela me entregou e senti que o metal frio encaixava perfeitamente em minha mãe, encontrando o contorno onde ela costumava ficar antes de eu ter sido retirada dali depois do meu espetáculo.

– Vou ficar aqui só mais alguns segundos, mas antes de ir aviso ao vigia que está aqui.

– Não vou demorar Lúcia.

– Já ouvi essa antes, Ruby.