Cheguei quase sem fôlego ao fim do terceiro lance de escada que eu percorri para chegar ao ateliê. Inseri a chave na fechadura e a rodei, encontrando resistência para empurrar a porta. Há anos tínhamos que abrir a porta empurrando e eu não conseguia acreditar que meu pai ainda não havia mandado consertá-la.

Lá dentro encontrei o interruptor e logo me deparei com aquela sala extremamente organizada. Provavelmente era a nova namorada do meu pai que a arrumara porque eu sabia que ele gostava de trabalhar no caos. Minha tia, irmã do meu pai, me contou que a nova mulher mandava até no que ele comia. Ele estava em um estado critico porque eu sabia que artistas deveriam ser livres e não aprisionados.

Uma teoria que se provou certa quando vi seus quadros. As cores escuras predominavam e pouco se via de pinturas precisas e carregadas de emoção, marcas do estilo dele. O que mais me chocou foi ver a quantidades de quadros incompletos que ali estavam. Me pai nunca deixava algo inacabado.

Adentrei o espaço que ele utilizava apenas para pintar seus quadros e vi que a parede que eu havia pichado antes continuava do jeito que deixei. Meu pai deveria ter resistido para manter a parede daquele jeito mesmo tendo a namorada que tinha. Um calor diferente tomou conta de mim porque entendi que aquilo era a forma dele me manter por perto. Não era o que eu queria e nem o que eu precisava, mas mesmo assim foi bom ver aquilo.

Peguei uma tela branca e encontrei com dificuldade os pinceis e as tintas, que antes eram jogadas em uma mesa e agora estavam arrumadas em armários com porta de vidro. Comecei a trabalhar freneticamente nela. As pinceladas se tornavam mais fortes e mais precisas conforme eu me reacostumava a pintar. Fazia tanto tempo. As lágrimas rolaram por eu ter quebrado minha promessa de nunca mais pintar.

Mais lágrimas foram libertas por tudo que senti e por tudo que passei. Até pela Nessie chorei. Passei alguns minutos tentando parar de chorar para continuar a pintar e mais minutos ainda para limpar os meus óculos que mancharam.

Terminei o quadro e antes de contemplar o todo que eu havia criado observei o céu totalmente negro. Sabendo que eu teria pouco tempo para fazer o que pretendia a seguir.

Voltei-me enfim para a tela. Um gato com a pelagem marcada por todas as cores do mundo enfiava suas unhas feitas de metal em uma massa disforme, cor de carne. Uma trilha carmim jorrava dali como se da feria saísse a pútrida desesperança, acompanhada pala dor e pelo mal. Ali havia ainda a esperança que nascia ao fundo junto do sol.

Era como se o tempo que passei sem aquela arte não houvesse existido. Tudo que coloquei para fora pelas lágrimas não havia bastado, somente a pintura fez isto. Ela era uma forma de filtrar do meu ser tudo para colocar para fora o que não prestava e transformar em arte que poderia ser apreciada por outros que, talvez, se identificassem com as cores e as pinceladas.

Caprichei na minha assinatura no canto inferior do quadro e coloquei a data de hoje. Mesmo não tendo assinatura eu sabia que ele iria reconhecer que o quadro era meu, porém resolvi dar para ele de presente junto do nome que ganhei dele. Era o mínimo que eu poderia fazer depois de ter feito o que fiz na última vez que estive ali.