Era cerca de onze da noite quando Mike acordou respirando alto. Olhou para o companheiro de quarto, um garoto baixo com um gosto grande por músicas sem sentido. Ele dormia, como era de se esperar. Mas algo deixara Mike inquieto demais naquela noite. Estava mais frio que o normal, não se sentia seguro.

“Vou mata-la” e um riso sofrido e afogado “Vou mata-la enquanto estiver sonhando, e quem sabe os sonhos se tornem eternos” seguido de um novo riso bizarro.

As palavras estavam sua cabeça de forma tão vívida que parecia que ele estava pensando naquilo.

Olhou para a porta, parecendo tentar ver através dela. Estava silêncio.

Silêncio demais.

Levantou-se, com cuidado para não bater na cama do amigo e abriu a porta para o corredor.

Olhou dos dois lados, sem ver nada que correspondesse àquele sentimento de inquietação.

“Menininha estúpida” a voz voltou a encher seus pensamentos, e fazia sua espinha congelar. Como se alguém estivesse logo atrás, cochichando em seu ouvido. Exceto que não havia ninguém. “Vai sangrar, sangrar como uma sanguessuga esmagada, sua carne vai ser triturada, e vai sentir tanta dor que vai me agradecer quando…” Mike engoliu em seco, tentando afastar aquela voz fina e agoniante de sua mente “quando eu rasgar seu crânio até chegar no cerebelo. E só então seu corpo vai parar de convulsionar.”

Mike saiu do quarto, respirando o mais baixo que podia. Fechou a porta com cuidado e começou a andar pelo corredor. Aquela voz em seu cérebro não lhe dava a menor ideia sobre de onde vinha aquele que a pensava. Mas tinha alguma ideia.

O corredor estava escuro, e aparentemente deserto. Passou pelo quarto de Dean, e ficou em dúvida sobre chama-lo. O garoto o evitava desde que fora ajudar Sabrina, e de qualquer forma odiara a ideia de Mike lendo pensamentos.

Ficando fora dos meus pensamentos, você pode fazer o que quiser com esse dom”.

Mike não tentara ler a mente de nenhum deles. Sempre que o fazia, era sem querer, e tentava repelir. Era raro, e normalmente com coisas estúpidas. Era um rapaz correto demais pra invadir a privacidade alheia. E sabia que tinha que ficar bem longe dos pensamentos de Dean. Não queria dar mais motivos pra ser odiado, mesmo que sentisse tanta raiva por achar que nunca dera motivo nenhum. No entanto, fez alguns poucos testes e descobriu que não conseguia ler pensamentos pro própria vontade. Eles apenas apareciam em sua cabeça.

Após pensar por alguns instantes, bateu na porta e o chamou. Dean resmungou e não saiu do lugar.

- Acho que as meninas podem estar precisando de ajuda. – ele disse, simplesmente, tentando não parecer suspeito demais, já que o companheiro de quarto de Dean também acordara. Fechou a porta sem sequer esperar que pensasse no assunto.

Continuou andando pelo corredor, com os instintos muito mais aguçados. Conseguia ouvir a respiração dos alunos por trás das portas. Ouvi-los falar. Ou pensar. Não sabia mais reconhecer direto. Apenas continuava andando, até chegar na ala feminina. Bateu na porta de Nina. Ou Sabrina, não sabia. Fora dormir ainda como Sabrina. Mas se arrependeu em seguida, quando se lembrou quem era sua companheira de quarto.

Julia acordou antes, como Mike previra. Aconselhara Sabrina a voltar pro quarto e fingir o máximo possível ser Nina. Ela obedecera, e ele descobrira que ela podia não ser tão má.

- Os pais da Nina estão ligando pro celular dela. – inventou Mike – Ligaram pra mim porque ela não atendeu.

Nina acordou lentamente, e piscou os olhos antes de confirmar que era mesmo Mike na porta. Seu sorriso indicou que ainda era Sabrina. Nina se limitaria a chama-lo de vadia por tê-la acordado. E, na verdade, imaginavam que Nina entraria em choque ao voltar, pois Sabrina dissera que a versão original dentro daquele corpo se lembraria de cada momento.

”É alguma criatura ou algo assim?” ela pensou, sabendo que ele conseguiria ler, para falar sem que Julia ouvisse.

- Sim. – ele respondeu, pois não sabia fazer seus pensamentos irem para a cabeça dos outros.

Sabrina se levantou de imediato, e não se preocupou em vestir nada maior do que o pouco pijama que usava. Mike se lembrava de Nina usando pijamas longos ou camisetões. Provavelmente essa nova versão se sentia melhor desse jeito com tanta pele exposta.

Os dois saíram do quarto e começaram a andar lado a lado pela ala feminina. Ouviram Dean andando logo atrás, e em pouco tempo os três caminhavam pelos corredores dos dormitórios.

Dean andava um pouco atrás, já que estava com duas pessoas que desprezava. Percebeu que não era Nina simplesmente pelo pijama.

Os três chegaram ao quarto de Lua e July depois de cinco minutos andando. Mike encostou o ouvido na porta, tenso, mas não ouviu nada.

Bateu na porta, e então os três ouviram um grito abafado, provavelmente de July. Ao abrirem a porta, a viram tremendo, encostada na cabeceira da cama, abraçando as pernas dobradas junto ao corpo. Lua se limitava a dormir feito uma pedra ao lado.

- July? Está tudo bem? – perguntou Mike.

- Eu não sei. – ela choramingava - Parece que tem alguém, não sei, eu só… acordei com medo.

- Ouvi uma voz na minha cabeça. – disse Mike.

Num segundo, July tremeu três vezes mais do que antes e apontou para algum lugar atrás de Mike, Sabrina e Dean.

Os três se viraram rápido, mas não a tempo de chegarem a ver a forma humanoide com braços grandes demais que os atirara cinco metros dali, fazendo vários hematomas na pele demasiado exposta de Sabrina.

Era alto, talvez dois metros de altura, e diferente das demais criaturas, era bípede. Porém os braços eram enormes, e quase chegavam até o que imaginava ser o joelho. Na cabeça, nenhum nariz, apenas uma massa gelatinosa com um muco recobrindo-o por completo, e uma abertura quase rasgada de onde parecia brotar um grande olho amarelo e estriado por veias e um buraco que se abria e fechava, dando a entender ser a boca.

Aquela coisa esticou o enorme braço na direção de July e começou a andar, demasiado descompassado para um ser com a força que demonstrou ter ao arremessar três adolescentes de uma vez.

No meio disso tudo, Lua acordou. Completamente desorientada, ela se ergueu na cama e olhou para July, coçando os olhos, tentando entender por que a amiga estava se espremendo contra a parede.

- Lua, abaixa! – gritou July, com a voz completamente esganiçada de medo.

A menina piscou e ia olhar pra trás, mas a coisa segurou seu pescoço pela nuca, envolvendo-a com as mãos de cinco dedos esguios e compridos. Ainda com o braço esticado, a ergueu como se não pesasse nada. Lua soltou um pequeno grito de pavor, mas foi logo silenciada ao ser arremessada fortemente contra a parede. Ficou inconsciente imediatamente, e July agora se via sozinha.

Com os passos lentos, a criatura deu a volta na cama de Lua e esticava a mão na direção de July, que se limitava a permanecer tremendo, e espremida contra a parede, tentando, inconscientemente, ir mais pra trás.

Os olhos de July estavam pregados naquela grande esfera com uma íris gigantesca e cobre-avermelhada da criatura. Ziguezagueava na órbita, mas no fim estava focado em July.

Foi quando teve de fechar os olhos, pois alguém acendera a luz. Antes que voltasse a abri-los, ouviu o barulho agonizante daquela criatura, e um calor cobrir seu corpo todo. Descobriu-a queimando quando a olhou, naquele fogo azul que não pegava em nada ao redor, mas era real o suficiente para sentir a temperatura aumentar. Tapou o rosto quando isso a incomodou, e observou aquilo ser derretido, seus membros derretendo e a gosma de seu corpo desaparecendo enquanto curvava os membros em posições horrorosas.

Quando a cena acabou e não restava mais do que cinzas no chão, July respirou fundo e olhou Sabrina, parada na porta com a mão no interruptor.

- Luz. Eles odeiam isso.

Arfava e suava, mas o pânico ainda não a abandonara.

- Lua. – ela disse, apontando a amiga desmaiada no chão.

Mike e Dean entraram em seguida, fechando a porta. Sabrina ficou parada na soleira, olhando enquanto os outros três acudiam Lua.

- Não gosto desses momentos. – disse Sabrina – Vou indo.

- Não, você não… - Mike não teve tempo de terminar de falar, pois Sabrina simplesmente caiu no chão, estatelando-se e por pouco não bateu a cabeça na quina da cama. – Ah, ótimo!

Mike tentou chacoalha-la um tempo, enquanto July tentava ouvir os batimentos cardíacos de Lua. Não demorou até que Sabrina acordasse, olhasse ao redor e soltasse um grito de horror.

- Não foi um sonho. – ela segurou a mão de Mike com muita força – Fala pra mim que foi um sonho, fala que nada disso aconteceu.

- Isso o que, Sabrina?

- NINA! – ela gritou – Meu nome é Nina!

Dean a olhou, mas por pouco tempo, pois ainda estava tendo surtos pela inconsciência de Lua. Muita coisa acontecia ao mesmo tempo.

- Ai, graças que pelo menos a Nina voltou.

- Gente, ajuda! – implorou July – Ela não está acordando!

- Eu peguei o Michel… - a voz de Nina tremia – Nunca mais… nunca mais vou conseguir olhar no rosto dele… - ela balbuciava, indiferente ao caos ao redor.

- Será que eu morri?

Os quatro viraram-se em choque ao ouvir a voz de Lua atrás de si, quando o corpo estava bem a frente.

O susto não foi menor ao verem-na flutuando perto do teto, olhando a cena toda num corpo transparente e impalpável.