Nina engoliu a história sobre Michel, momentaneamente se esquecendo disso quando viu Lua flutuando como uma bolha de sabão, lentamente deslizando pelo ar até o chão.

A garota esticou as pernas parar tocar o piso, no entanto seus pés passaram direto, e seu calcanhar estava na altura do taco. Lua não pareceu perceber.

Mike estava branco, com a boca entreaberta, ainda ajoelhado ao lado de Nina, que permanecia sentada. Não passava pela cabeça deles levantar. Nem respirar. Eles simplesmente encaravam o espectro de Lua. July ainda segurava o corpo da amiga nos braços, completamente inerte, quase frio. Dean não estava menos surpreso, e fora o único a soltar qualquer ruído de espanto.

- Gente, eu morri? – ela perguntou, com a voz trêmula.

- Eu… eu acho que sim… - respondeu Mike, gaguejando. Suas entranhas estavam contorcendo-se dentro dele.

- Não. – disse July – Você ainda respira. – ela afirmou, colocando uma mão na frente do nariz do corpo sólido de Lua – Seu coração bate. Tudo normal.

- E por que eu estou aqui e não aí? – a menina perguntou, sem perceber que descia centímetros cada vez que se mexia demais.

- Desculpem, acabei de chegar. – disse Nina, dando de ombros.

- Eu leio pensamentos, Nina domina pessoas, Lua vira um fantasma. – disse Mike – E monstros surgem esporadicamente.

- Muito plausível. – disse July – Alguém ainda acha que aquela luz naquele dia foi só alguém abrindo a porta e acendendo a luz?

- Gente, eu acho que primeiro precisamos dar um jeito da Lua voltar pro corpo dela. – palpitou Dean.

Mike baixou a cabeça e levantou, assustado, em poucos segundos.

- Tem gente vindo no corredor. Acho que é a inspetora. Ouviram os barulhos. – ele avisou. – não foi preciso dizer que ouvira os pensamentos da tal pessoa.

- Ah, ótimo, agora vou pegar uma suspensão, tenho certeza. – reclamou Nina.

- É só a gente sair daqui! – disse Dean.

- Não dá, vão nos pegar nos corredores! – bradou Mike – Não tem jeito!

- Ou tem… - disse Lua, antes de passar voando em velocidade absurda no meio deles, atravessar a parede como se fosse feita de ar e ir para o corredor.

Lua saiu saltitando no ar, cantarolando. A ideia de estar num corpo espectral parecia muito mais atrativa depois que July lhe confirmou que não estava morta. Podia voar, e podia atravessar paredes. Ainda não sabia como faria pra voltar pro próprio corpo, e admitia que isso lhe causava um desconforto nas entranhas, mas agora lhe convinha mais pensar na adrenalina que percorria suas veias – se é que tinha alguma – em estar flutuando pelo colégio tão próximo da meia noite.

Ela viu uma luz num dos corredores, e logo em seguida viu a inspetora virar a esquina na direção de onde estava. Não sabia o quão visível estava, então entrou na primeira parede que viu, e se encontrou no quarto de duas meninas que nunca tinha visto na vida – o que acontecia com frequência naquele colégio. Deixou apenas a cabeça pra fora, e aproveitou pra ver como era a parede por dentro.

Antes de fazer o que pretendia fazer, Lua bateu palmas, rindo da própria ideia, apenas para descobrir que suas próprias mãos se atravessavam. Mas isso não impediu seu riso. O que a fez se calar foi o grito que as meninas daquele quarto deram ao vê-la.

Saiu do quarto e voou em velocidade suficiente pra que a inspetora não a reconhecesse. Voou na direção dela. Diretamente.

- Buuuuuuuu!!! – balbuciava Lua, em tom agonizante – Buuuuuu!! – e passou pelo corpo da inspetora em choque.

Lua quase teve pena. A mulher caiu no chão, a lanterna voou pra longe, e antes que parasse de rolar, ela já se arrastava, agarrando-se ao carpete numa luta desesperada com os próprios pés para conseguir se pôr de pé e correr. Lua ficou rindo até voltar pro próprio aposento.

- Ela não vai voltar. – pôs as mãos na cintura, ou pelo menos tentou – Mas acho que duas alunas vão querer sair do colégio.

- Ê! –Mike ergueu os braços e soltou uma pequena comemoração.

- Tá. E pra você voltar pro corpo? – perguntou Dean.

- Eu tentaria simplesmente me deitar nele. – July deu de ombros – Quer dizer, não consigo pensar em outra coisa.

- Eu poderia ficar assim pra sempre. Será que eu envelheço nessa forma? – palpitou Lua, deitando-se no ar, girando sem nem se importar.

- Acho que seu corpo de envelhece, e também morre. – disse Nina – Então é melhor voltar.

- Eu gostaria de saber como sair. – disse Lua, voando lentamente até ela mesma – Seria bem útil fazer isso quando quiser – e se sentou em seu próprio corpo, se esforçando pra estar exatamente na mesma posição.

O espectro sumiu dentro do corpo original, ocupando-o por completo. Então Lua expirou uma enorme quantidade de ar de uma só vez, como um ralo sugando água, mas começou a tossir até ficar levemente rubra. Ela piscou algumas vezes, limpou os olhos e tateou o próprio corpo, confirmando que era novamente feita de átomos.

- Pronto, felizes? – ela tentou se mexer, mas percebeu que suas costas e sua cabeça doíam insuportavelmente – Esse corpo de verdade dói mais do que me lembro.

- Foi arremessada contra a parede, é compreensível. – disse July.

- Gente, se não vai acontecer mais nenhuma bizarrice… eu vou pro meu quarto. – disse Dean.

July não soube dizer por que. Mas sabia que Dean não estava nem um pouco feliz com o que estava acontecendo. Não era por causa dos monstros. Eram os tais poderes que todos pareciam ter, menos ele. E ela mesma, mas isso não parecia fazer diferença. O entendia, de certa forma. Também gostaria de ter alguma artimanha com que contar contra aqueles seres. Não fazia ideia do que, mas gostaria.

- Espera. – pediu July – Tem aquilo que a Sabrina disse.

- Nina! Que porra, eu sou a Nina!

- Disso não resta dúvidas. – Dean riu, por causa do palavrão.

- Eu sei que você é a Nina, mas quando disse ainda era a Sabrina. – ela olhou para os demais – Ela disse que os monstros não gostam de luz. E se parar pra pensar, todos eles morreram quando entraram em contato com qualquer fonte de luz.

- É verdade. – ponderou Mike – Mas a pergunta seria como ela sabia disso.

- Ué, você devia saber. – disse Dean, com ar de desprezo – Ficou do lado dela mais tempo que todos nós. Até foi lá consolar ela.

- Dean, se eu não sei, que fiquei dentro dela esse tempo todo… - disse Nina.

- Você ficou mesmo? – perguntou Mike – Tipo, você via tudo que acontecia?

- É, eu vi o Michel pelado. – ela admitiu.

July começou a rir, e Lua a acompanhou.

- E aí?

- Ah, não vou falar disso. – Nina reclamou.

Mike riu e se levantou, botando a mão na maçaneta.

- Eu vou embora, já entendi que é papo de mulher. Fiquem aí falando do Michel pelado. – e fez uma expressão de nojo, antes de sair.

- Eu vou também. Correndo, aliás. É quase meia noite e vão ligar as câmeras de segurança. – avisou Dean, esperando um tempo para que Mike fosse na frente.

Quando a porta se fechou num baque suave, Lua e July se viraram na direção de Nina abruptamente.

- Fala tudo!

Nina deu de ombros.

- Ah, como foi uma transa entre duas pessoas que não respondem pelo próprio corpo? Bizarro. Eu estava de espectadora na minha própria primeira vez. E o Michel? Ele não tinha opção nenhuma.

July percebeu que, ao contrário do que imaginava, não havia sido assim tão legal pra Nina dormir com o homem que tanto idolatrava. Por que pra que isso acontecesse, foi preciso que Sabrina dominasse seu corpo e o de Michel. Não era a mesma coisa.

- Seria legal se agora o Michel quisesse outra vez. – disse Lua, tentando animá-la – E aí seria você e ele, e não a Sabrina e o poder dela.

- Mano, nem ferrando. – negou Nina, sentando na cama de Lua – É o Michel, presta atenção. É o Michel, e uma hora dessas ele deve estar enforcado com o próprio cadarço no quarto, se culpando por ter dormido com uma aluna.

- Menor de idade. – murmurou July.

- Pois é! – concordou Nina, apontando pra July – O Michel nem olha pra decote de aluna maior de idade, imagina dormir com uma menor.

- Ele poderia pegar cadeia por isso. – disse July.

- Ah. – Lua baixou a cabeça, admitindo que a hipótese não era considerável – Mas ele vai ter que vir falar com você.

- ARGH. – grunhiu Nina – Me dá náuseas só de pensar nessa conversa. Mimimi não pode acontecer de novo, foi um erro, não sei o que deu em mim, mimimi.

- O tal encantamento deve ter passado agora. – disse July – Quando você voltou a ser Nina.

- Ou seja, agora ele deve estar tendo lindos sonhos sobre culpa e auto aversão com uma aluna deitada em sua cama. E que merda de história é essa do Mike ler pensamentos? Eu fiquei querendo dizer isso o tempo todo.

- Ele lê. A gente testou. – disse July, lembrando de quando fizeram um jogo de adivinhação pra testá-lo, e ele acertara todas as vezes. – Mas dá pra perceber quando ele lê seu pensamento, se souber qual é a sensação.

- Eu sei, eu sei. Foi comigo que ele descobriu. Com a Sabrina, foda-se.

- E você não sabe mesmo como ela sabia da luz afetar os monstros? – perguntou Lua.

- Não, mano. Não faço nem ideia. Eu não sei quais são os pensamentos dela. O que eu sei é que vocês tem que esconder todos os biquínis possíveis quando ela surge. Vai ser vadia assim lá no meio do inferno.

As duas riram em resposta. Por fim, Nina decidiu ficar naquele quarto mesmo. Já passava da meia noite, e seria pedir por uma expulsão ser pego pelas câmeras de segurança andando nos corredores àquela hora.

Deitada, Lua ficou relembrando a sensação de voar. Agora, real e palpável, ela sentia cada dobra do lençol sob seu corpo, e até o calor da própria pele. Sentia o travesseiro, sentia seus membros. E estava pregada ao colchão pela força da gravidade. Não conseguiria levitar dali nem se passasse a noite toda tentando reencontrar aquela sensação ótima de voar e ficar plainando por aí.

Ficou imaginando como seria, por que saíra de seu corpo. Não se lembrava da pancada, mas do jeito que suas costas e sua cabeça doíam, fora arremessada com força. Será que um impacto físico seria suficiente? Na verdade não estava muito afim de ficar se batendo por aí quando quisesse sair do corpo. E, na realidade, nem sabia se conseguiria fazer aquilo de novo, ou se fora parte do golpe daquela criatura que estava atrás de July.

Aliás, esse foi outro pensamento que lhe ocorreu. Ela fora apenas um empecilho facilmente eliminado para chegar até July. Quando a amiga dos cabelos ruivos saiu do quarto para buscar Nina, foi atrás dela que a criatura surgiu.

Por algum motivo, e Lua não ousava sequer palpitar qual, parecia que era atrás de July que aquelas coisas estavam, e era na presença de July que elas surgiriam.

Nina por sua vez, agora sob o controle do próprio corpo, ficou se mexendo alguns minutos antes de pegar no sono, por mais cansada que estivesse. Queria testar os membros. Queria estar no domínio deles quando qualquer outra criatura surgisse tentando mata-la.

Ou não, já que, pelo menos essa última criatura parecia querer simplesmente se livrar dela e dos amigos para chegar até July. Esse pensamento a atordoou. Olhou para a amiga, já dormindo, e ficou pensando se ela não estava escondendo alguma coisa. Que motivo aquelas coisas teriam para persegui-la? Quem era July?

Uma coisa estava certa: aquelas coisas não parariam de aparecer ao redor de July.

Em seu quarto, Mike também pensava em tudo que havia acontecido. Ele se lembrava com clareza das palavras que ouvira vindas daquele monstro. “Menininha estúpida”. Era atrás de uma das meninas que estava. Então Mike pensou em Nina ou July, já que o último monstro deixara de encurralar Lua sozinha no quarto para perseguir as duas pelo colégio todo. Mas não foi no quarto de Nina que a coisa surgiu dessa vez, e sim no de Lua e July. E quando chegaram lá, aquela criatura se limitou a afastar todos que estavam no caminho até July.

Era atrás dela que estava.

E ela sabia disso. Mike se lembrava de ter ouvido seus pensamentos quando nem sabia que podia fazê-lo.

“Estão atrás de mim”.

July estava escondendo alguma coisa? Será que ela fazia ideia de que os monstros iam aparecer até que estivesse morta?

A ideia fez a espinha de Mike congelar, e ele resolveu parar de pensar nisso e se render ao sono.

Dean, por outro lado, ficou acordado metade da noite, sentindo raiva de Mike. Agora todos tinham um poder, incluindo ele, que não merecia nem o corpo sadio que havia ganhado ao nascer. E Dean? O que tinha? O que faria quando aquelas criaturas surgissem de novo? Lua ia flutuar pra longe dali, Sabrina revelaria saber muito mais do que o esperado e derrotaria a criatura, e Mike preveria qualquer movimento. E Dean, o que faria?

Ele se remexeu durante duas horas, pensando que não achava justo ter de encarar aquelas coisas sem auxilio nenhum. E pareciam estar atrás de July. Então eles é que teriam de ajuda-la. Mike e seu heroísmo arrogante. Não era justo ser ele a ajudar a amiga arriscando a vida quando os outros tinham formas muito melhores de fazê-lo.

A grande questão é que nenhum deles achava seguro andar perto de July, mas todos pensaram que eram os únicos pensando assim.

A parte engraçada é que o último pensamento que passou por Nina foi que no dia seguinte encontraria Michel. Por isso, dormiu coberta, numa reação instintiva do calafrio que percorreu o corpo da ponta do pé até a nuca.