Bad July

A primeira criatura


Depois de meia hora acordados, assustados com o ocorrido, os quatro pegaram no sono novamente. Exceto por July.

Havia algo estranho com ela. Algo que a fazia se sentir tonta. Um medo repentino, uma sensação gelada escorrendo por suas costas. Todos babando em seus travesseiros, completamente alheios ao seu mal estar. Ela começou a olhar ao redor do quarto, o pavor entupindo suas veias. Então, dentro do guarda roupas, ela viu um par de olhos.

Não há heroísmo nessa história, quando o assunto é July. Não por enquanto. A garota dos cabelos ruivos não tinha a menor condição de uma atitude de coragem, porque nesse momento ela tinha o mesmo poder de se manter calma que uma criança de cinco anos diante de um palhaço assustador. Então imagine a você mesmo – e que tipo de história te pede pra imaginar algo? – no escuro, olhando para um par de olhos amarelos, que, por acaso, também olham pra você.

O que você faria?

July ficou imobilizada. Suas pernas congelaram, e ela sentiu que uma onda de frio percorria o quarto.

“Dizem que quando há espíritos por perto, fica frio”.

Por que, diabos, você sempre lembra dos filmes de terror quando está no escuro?

Ah, sim. Por isso ela odiava o escuro.

“Nada vai acontecer.” Ela pensava, encarando os olhos amarelos. “Estou imaginando isso, nada vai acontecer. Não existem criaturas que me façam mal. Não existe. Não existe.”

Ao abrir os olhos, porém, os tais olhos ainda estavam lá.

Um rosnado. A criatura soltou um som parecido com um gutural, algo inumano, e também não soava como um animal comum. Tudo que via era seus olhos, observando-a de dentro do guarda roupas entreaberto.

- Gente… - ela balbuciou, mãos tremendo, talvez de frio, talvez de pânico, ou um misto dos dois – Gente… - ela repetiu, com medo de falar alto e a tal criatura se irritasse – Pessoas... – insistiu, ainda baixo, pavor correndo sua garganta, lágrimas querendo rolar. – PESSOAS! – bradou, e todos acordaram de imediato, exceto Lua, que dormia como uma pedra.

Os três – Nina, Dean e Mike – levantaram o tronco dos colchões e procuraram a fonte do grito. Depararam-se com uma July tremendo e chorando, olhando fixamente para o guarda roupas.

- July? Tá tudo bem? – perguntou Mike, levantando-se e indo até ela – O que aconteceu?

- Tem alguma coisa ali. – ela disse, e apontou o guarda-roupas entreaberto.

Eles olharam na direção apontada.

Mas não havia mais nada ali.

July também não via mais os olhos olhando para ela. De repente, a ideia de que o que quer que havia no escuro não a pegaria se não estivesse sozinha, lhe pareceu coerente.

- Não tem nada ali, July. – disse Mike, quase reclamando.

- Tinha, eu juro! Tinha dois olhos olhando pra mim!

- Você sonhou. – disse Nina. – Agora volta a dormir. – e jogou-se no travesseiro.

- Gente, alguma coisa estranha aconteceu hoje, por que não poderia acontecer outra coisa?

- Alguém entrou aqui, acendeu a luz e saiu, não parece estranho pra mim. – disse Nina.

- Acendeu a luz? – repetiu July, inconformada – Você acha mesmo que aquela claridade toda foi alguém que acendeu a luz?

- Nossos olhos estavam mais sensíveis à luz porque estávamos dormindo. – explicou Dean. – Relaxa, July.

Irritada, a garota dos cabelos vermelhos se levantou rapidamente e acendeu o interruptor. A reação imediata de todos – exceto de Lua, que simplesmente acordou – foi tapar os olhos por alguns segundos.

- Alguém tá sentindo a retina derreter? – perguntou July. – Vocês honestamente estão tendo a mesma dor daquela hora?

- E o que você quer que a gente pense? Que isso foi algum alien entrando no quarto e agora ele está dentro desse guarda roupas? Dorme, July. – mandou Nina.

- Alien? – assustou-se Lua, completamente perdida. – Ahn? O que tá acontecendo?

July tremeu. Ela sabia que ia acabar não conseguindo dormir com a ideia do alien.

- Ai, gente, por que alguém não abre o guarda roupas de uma vez? – sugeriu Dean.

- Deixa que eu abro. – Mike levantou e passou por cima dos demais que dormiam em colchões no chão pra chegar ao guarda roupa.

July, por mais medo que tivesse, queria ser levada a sério. Naquela hora, chegou a querer que aquilo fosse real.

Porque quando não está sozinha, as coisas não podem lhe fazer mal. Então mesmo que existisse, tudo ficaria bem. E poderia dizer ‘eu avisei’ no fim da história.

Mike se interrompeu um momento. No meio do caminho, e pisando no colchão de Dean – que ficara claramente irritado com isso – ele parou.

Vou matar todos eles. Vou tomar o sangue de cada uma das crianças. Vou mata-los. Assim que a luz for apagada. Vou mata-los.”

Mike virou-se para o grupo e parou o olhar em todos os amigos, procurando quem havia dito isso.

- Ok, gente, quem foi?

- Quem foi o que? – perguntou Lua.

- Quem disse isso?

- Isso o que? – perguntou Nina.

- Sem brincadeira, gente.

- Que brincadeira? Abre logo o guarda roupas! – mandou Dean.

Mike deu de ombros e voltou-se na direção do armário.

Apaguem as luzes, crianças, vou mata-los, e vocês não vão nem ver. Vou mata-los, vou mata-los.”

- Quem é que tá fazendo essa voz? – perguntou Mike, já irritado – Não tem a menor graça.

- Que voz? – July era a única que parecia estar levando a sério.

- Ah, cansei da brincadeira. Se quiserem abrir o guarda roupas, podem vir. – ele pulou Dean e parou ao lado de uma escrivaninha, próximo do armário.

- Ai, mas é uma bicha. – disse Nina, levantando-se e passando por todos muito rápido, até botar a mão na porta do guarda roupas.

Isso, garota, abre a porta, e eu vou mata-la, abra a porta e eu vou saltar na sua jugular e fazê-la em pedaços”.

Mike olhou para os demais. Ninguém estava falando. Nina estava puxando a porta.

Então ele puxou a amiga pelo braço bruscamente. Ela caiu sobre ele, e a porta se abriu.

De lá saltara uma criatura com o corpo marrom, coberto por uma gosma, com escamas desproporcionais e algo parecido com um exoesqueleto. A boca era uma abertura enorme com dentes em formato de serra. A criatura babava, e seus oito membros estralavam em cada movimento. Ela caíra no chão, de frente para Dean, que imediatamente se jogara para trás, o mais distante possível.

O grito não foi instantâneo. Todos no lugar engoliram as vozes em suas gargantas secas, sem pronunciarem um único som a tempo de perceberem que, ao fitar a luz do quarto, aquela coisa, com seus olhos amarelos, contorceu seu o corpo todo dolorosamente. O primeiro par de patas dobrou-se na direção contrária. Os demais dobraram e seu corpo ficou junto ao chão. Uma fumaça mal cheirosa começou a ser exalada de suas escamas, e a coisa bradou como híbrido de corvo e cobra. Em questão de segundos, aquilo pegou fogo . Chamas azuis brotaram o consumiram por completo, sem danificar nada ao redor. Tudo que sobrou foi uma carcaça carbonizada e retorcida. E esta rapidamente também se desfez, restando não mais que pó no chão.

Completamente imóveis, eles permaneceram com a respiração alta e o coração agitado por alguns segundos, incapazes de tomar qualquer atitude razoável diante da situação.

Mas não foi preciso pensar muito, já que a porta do quarto se abriu com um estrondo e a monitora da ala feminina entrou arfando.

- O que está acontecendo aqui?

Os meninos teriam entrado em pânico por serem pegos na ala feminina àquela hora. Isso se já não estivessem em pânico por outro motivo.

Agora o desafio mental era basicamente responder àquela pergunta.

- Uma coisa entrou aqui. – disse Nina.

- Uma coisa? – ela apontou os meninos – Eles?

- Não. – July negou – Uma coisa.

- Que coisa?

- Um animal, sei lá! – desesperou-se Mike. – Uma coisa.

- Que porcaria de coisa é essa? – irritou-se a monitora.

- Filha, se a gente soubesse, não chamaríamos de coisa. – irritou-se Dean.

A monitora inflou o peito como um animal preparando-se pra briga.

- Um menino encontrado na ala feminina a essa hora devia tomar mais cuidado com suas palavras.

- Ai, falar ou não falar, estamos ferrados mesmo. – ele deu de ombros.

Nina bateu em seu braço.

- Mas é verdade. – ele continuou.

- E não só os garotos. Quem é a dona desse quarto?

Nina encolheu os ombros e ergueu a mão.

- Eu.

- Os dois meninos e você vão conversar com a diretora amanhã logo cedo. Por enquanto, cada um vai pro seu devido quarto.

Eles até tentaram se preocupar com aquilo, mas a ideia de que uma coisa que já aconteceu uma vez pode facilmente acontecer de novo era muito mais preocupante do que a bronca da diretora. Dormir havia se tornado muito mais difícil. E perigoso.