Aquela noite havia sido bizarra demais para que suas mentes compreendessem.

Nina e os garotos haviam se entendido com a coordenadora, na medida do possível. Eles foram proibidos de transitar pela ala feminina mesmo de dia, e todas monitoras haviam sido avisadas. Não que fosse grande coisa, uma vez que eles já eram proibidos de ir pra lá à noite, e não fosse o guincho daquela coisa ninguém teria descoberto que passaram a noite lá.

A pior parte tinha vindo para Mike, provavelmente, já que os pais de Nina pouco se importavam se os amigos dela passaram a noite em seu quarto, e os pais de Dean não tinham número ou endereço – ou sabia-se da existência deles – para serem contatados. Mas os pais de Mike ficaram extremamente irritados ao descobrir o que acontecera, mesmo o tendo deixado dormir no quarto da amiga. Parece que isso não incluía ser pego.

Todos os demais ficaram surpresos quando descobriram que Mike não contara aos pais o que acontecera naquela noite. Sempre preocupado em contar até o que comeu no almoço, July foi a primeira a perguntar por que aquilo fora exceção.

- Eles me tirariam daqui se eu contasse. E não entenderiam, achariam que estou louco. – ele contou. – Não me sinto menos culpado, se é o que estão perguntando.

- Entendo. – disse July, pondo a mão em seu ombro – Meus pais sempre me acharam esquizofrênica. Teriam certeza, caso eu contasse.

- Talvez sejamos todos fruto da sua imaginação! – disse Lua, mexendo os braços – Talvez sejamos apenas seus amigos imaginários.

- Fale por você. – disse Nina – Eu sou bem real.

- Mas pensa. – insistiu Lua – O conjunto dos reais pertence ao conjunto dos complexos, onde estão os imaginários.

- Que merda você está falando? – riu Mike.

Dean balbuciou qualquer coisa de irritação, já que aquela frase lhe lembrou que tinham prova de matemática dentro de dois dias.

- Um número real não é um número imaginário só porque ambos são complexos, Lua. – desdenhou Nina, e July achou que aquela conversa estava divagando demais.

- Mas são complexos. – ela abriu muito os olhos, erguendo a cabeça, como se desse ênfase àquela palavra.

- E daí? – riu Nina.

- Sei lá, só quis dizer isso. – deu de ombros.

July riu, e já fazia algum tempo que não ria. Por medo, um medo sempre presente. Desde o incidente, passara as noites em claro – quatro, já que faziam quatro noites desde o ocorrido. Dormira muito pouco, não por falta de sono. Mas porque sentia que, se dormisse, aquela criatura poderia voltar. Por ela. Um sentido bastante egocêntrico em seu interior dizia que aquilo aparecera para matar ela. Motivo? Nenhum. Só o estranho sentimento infantil de que os monstros no seu guarda-roupa vão deixar você viver se tiver um adulto por perto, mesmo que sejam plenamente capazes de rasgar um homem em dois. Os monstros não querem ser vistos por ninguém, a não ser por suas vítimas.

Esse pensamento fazia sua cabeça girar, e seu riso, diminuir.

Eles não conversaram muito sobre o ocorrido, pois após quinze dias, nada anormal aconteceu. Começavam a esquecer, e a achar que aquela cena bizarra havia sido apenas sonho. Mas a repreensão dos pais de Mike havia sido real, tanto quanto a bronca da diretora. E a monitora não teria nunca entrado naquele quarto não fosse o guincho não humano da criatura, já que nenhum deles fez som algum. Então tudo era muito real e palpável. Apenas não soava real. E eles não estavam muito dispostos a tentar fazer isso soar realidade pra qualquer outra pessoa. Se um deles já tivesse chegado a qualquer conclusão sobre o que era aquilo, certamente teria dito. E como nenhum se pronunciou, não falavam no assunto.

Nina foi quem esqueceu primeiro. Ou talvez esquecer não seja a palavra certa, mas deixou de se importar antes dos demais. Tinha plena certeza de que aquilo não voltaria a acontecer, e dormia com mais tranquilidade que os amigos. Seus sonhos não tinham virado pesadelos, diferente dos outros quatro.

A única coisa que havia mudado é que ela não se sentia mais tão bem no quarto sozinha. E porque sua parceira de quarto passava o começo das noites no clube de pintura - o que era motivo de zombaria do grupo todo, já que a menina gostava de se exibir com isso, mas pintava como uma criança de sete anos – ela resolvera ficar até mais tarde estudando matemática. A prova dali dois dias estava matando a todos, inclusive a ela, que tinha as notas mais altas dentre os cinco na matéria.

Ficara na sala, sozinha, concentrada em números e rindo ao se lembrar de Lua falando dos complexos. Foi assim durante uma hora, até ouvir passos no corredor.

Se é que isso é possível, Nina brigou com o próprio cérebro por trazer à tona a imagem daquela criatura bizarra se contorcendo e estalando em sua frente. A espinha congelou, e seus músculos ficaram tensos.

Sem fazer barulho, abaixou a caneta e esticou o pescoço para ver quem era. Não eram passos cautelosos de quem está evitando fazer barulho. Eram despreocupados. “Não pode ser nada de mal”. Ela se levantou e foi até a porta, ou teria ido, se não tivesse topado com alguém e quase caído pra trás. O susto a deixou cega por poucos instantes, mas então olhou para cima e suas pernas viraram geleia por dentro. Ou não, mas ela sentiu como se tivessem virado. Os joelhos quase dobraram.

- Michel. – ela disse, surpresa e tentando não fazer a voz tremer – Eu estava estudando pra sua prova. – e esse era o resultado de tentar pensar em algo pra dizer.

Michel tinha cabelos escuros, um cavanhaque extremamente bonito. Alto, já com quarenta anos, com um corpo bom, atraente e motivo de fascínio na maioria das alunas. Pele branca, mas não tão clara, cabelos não tão arrumados, um ar de arrogância e autoconfiança penetrado em cada poro. Porém, reservava seu cinismo e respostas secas aos alunos que pouco se importavam com a matéria. Nina não era assim.

- Eu teria ciúmes se fosse pra outra prova. – ele disse, sorrindo.

Nina sentiu aquela sensação das pernas virando geleia percorrer o corpo todo até os braços, e teve certeza de que se tocasse o rosto o sentiria quente e vermelho.

- Não tem outra prova, então não tem concorrência. – ela deu de ombros, igualmente sorrindo, tentando não expressar a balburdia de sentimentos, mas entrando no jogo.

- Infelizmente algum infeliz cortou o cabo da internet do meu quarto. – ele levantou um notebook para mostra-lo – Então cá estou, vou usar a internet aqui na sala, se não se importa com a companhia.

- Se quiser me ajudar também, não me importo muito.

Ele entrou e sentou-se à mesa do professor, ligando o notebook. Nina achou que ele ia trabalhar ou qualquer coisa assim, mas não conseguiu se impedir de rir ao ouvir o barulho do msn.

- O que seria de mim nesse internato se não tivesse contato com o mundo externo? – ele brincou com a situação.

- Aos domingos as portas estão abertas. – lembrou Nina – Quase uma prisão.

- Pros professores as portas estão abertas todos os dias. – ele deu de ombros – Mas depois de tanto tempo confinados, os cães costumam deixar de tentar fugir e simplesmente agradecem pela comida e a água.

- Deve ser difícil manter uma relação assim. – ela se arrependeu imediatamente após ter inserido o assunto ‘relacionamento’ na conversa.

- E é. – ele não desviava os olhos do computador até então, mas riu e a olhou nos olhos antes de continuar a falar. – Tanto que não tenho nenhuma.

Nina corou de imediato, pois achou que o professor jamais dividiria esse tipo de intimidade com ela. O sorriso dele a encantava muito mais do que gostaria que os amigos soubessem. Que parecesse um amor platônico adolescente para os demais. Nina trocaria qualquer garoto da sua idade por Michel.

E também parecia realmente absurdo que um homem como Michel fosse solteiro.

Como o chamavam mesmo? O homem de ferro”.

Um dia, há dois anos, Michel pegara qualquer tipo de doença nos olhos, e ia pra aula usando um óculos de tom arroxeado, como o que o personagem Tony Stark usava, e também o próprio ator. E era o óculos daquele personagem porque era só aquilo que faltava para que os alunos percebessem a semelhança óbvia e gritante entre os dois. E também o fato de que a doença deixara Michel extremamente irritadiço ajudou bastante no apelido de Homem de ferro.

Hoje os olhos escuros estavam muito bem expostos, e faziam Nina se sentir inquieta na cadeira.

- Você pelo menos pode sair quando quiser.

- Acredito que meninas da sua idade consigam um relacionamento presas aqui dentro muito mais fácil do que eu, na minha idade, livre como um pássaro.

Agora ela realmente sentia que ia gaguejar se dissesse alguma coisa. Engoliu a fala. Nina não era tímida. Não era de pensar antes de falar. Michel a deixava assim.

- Sou forçada a não acreditar nisso.

Ele a olhou algum tempo, tentando entender, num sorriso simpático, mas então pareceu desistir.

- Estuda aí. – ele disse – Estuda que a prova vai estar sangrando quando eu recolher.

- Não sendo meu sangue por mim está ótimo. – ela riu, conseguindo relaxar melhor quando o assunto desviou.

Ela ficou estudando enquanto conversava com Michel até perto das dez da noite. Podia ter passado a madrugada toda lá. E conseguiu estudar. Conseguiu pedir ajuda, conseguiu rir, conseguiu passar horas e horas ao lado de Michel.

Os dois só se prepararam pra sair depois que o professor olhou para o relógio no susto, e percebeu que o toque de recolher dos estudantes já tinha passado há meia hora.

- É melhor você ir ou vou ter que fingir que não sabia do horário. – ele disse, desligando o notebook.

Nina agradeceu a ajuda e deixou a sala antes dele. O corredor estava vazio e as luzes só parcialmente apagadas. O colégio era antigo, o piso havia sido de madeira até poucos anos atrás, e possuía extensos corredores que, à noite, pareciam hospitais abandonados.

Ela respirou fundo e tentou cravar no cérebro a imagem do professor sendo tão gentil, e não o monstro retorcendo as patas. Mas naquela semiescuridão tal coisa ficava muito difícil. E Michel a acharia estúpida se pedisse para acompanha-la por ter medo.

Seu coração deu a impressão de parar. Só a tempo de explodir em batidas frenéticas e completamente descompassadas quando virou uma esquina e se deparou com uma pessoa parada no pé da escada.

- Oi? – ela disse, com a voz trêmula.

- Nina?

Ela reconheceu a voz de July e respirou fundo. Um mar de sentimentos e medos havia sumido. Agradeceu pela amiga estar ali, apesar de não saber o que ela fazia até aquela hora nos corredores. A amiga pôs se a correr até ela, e por um momento Nina achou normal. Só até perceber que July corria rápido demais.

- Foge! – gritou July.

Os pés de Nina congelaram no lugar. Então começou a ouvir o som de pisadas fortes no piso das escadas. July passou por ela e agarrou seu braço de forma que quase deslocou seu ombro. Estava se virando quando viu algo saltando do último lance de escadas até o piso. Fosse o que fosse aquilo, havia se chocado contra a parede do corredor como se não fosse nada, e pôs-se a persegui-las de imediato. Nina não teve tempo de definir uma forma praquela coisa, pois estava de costas antes de conseguir fazê-lo.

As duas viraram a esquina e foram na direção contrária da sala onde Nina antes estava. O colégio era um grande prédio quadrado como uma moldura para as duas quadras e uma piscina no centro, e aquele corredor principal circundava esse pátio, com grandes janelas que davam vista às quadras super lotadas durante o dia. Mas estava noite e nenhum estudante estava nos corredores, a não ser as duas correndo e uma coisa a galope logo atrás.

Por não fazer ideia do que era aquilo, July sentia como se fosse ser agarrada pelos calcanhares a qualquer momento. Podia ouvir seus passos, os pulos, os grunhidos agudos e assustadores logo atrás de si. Lembrava o correr de um grande cão mastin, e ela sentia que podia ser destroçada com uma simples mordida. Talvez por isso não tenha sentido as pernas doerem, as forças se esvaírem. Elas iam completar uma volta completa em torno do corredor principal da escola, e ainda não faziam ideia de como fugir daquilo.

Ouviu um som diferente dos demais, e o barulho da coisa que as perseguia se deslocou. Ela resolveu olhar, de relance, o motivo daquilo, e seu coração congelou e se destroçou em milhares de fragmentos que feriram suas entranhas quando reparou que a criatura corria na parede do corredor. Tinha um rosto parcialmente humano, como se fosse uma mulher com o rosto deformado e cheio de pústulas, virado quase completamente em relação ao corpo. Os braços estavam retorcidos e em posição semelhante a uma aranha, porém eram cor de carne queimada até grudar nos ossos. As mãos eram como dedos muito grandes, semelhantes a galhos quebradiços e finos. O arrastar da grande barriga mole na parede causava um som real demais pra que tudo aquilo fosse só um pesadelo.

A coisa pulou até a parede onde havia as janelas, e deslocou-se para o teto, correndo neste como se estivesse no chão. A cabeça retorcia-se para focalizar as duas, que já arfavam e suavam. Nem todo o medo do mundo conseguia disfarçar o cansaço que consumia suas pernas. A coisa estava logo acima delas, ziguezagueando no teto.

Estava brincando com elas. July teve certeza de que, se quisesse, aquilo poderia ter simplesmente saltado e caído sobre elas.

- Pra trás! – gritou July, e as duas mudaram de direção, deixando a criatura seguir em frente por alguns poucos metros, o que lhes deu um pouco mais de vantagem.

Nina entrou em desespero em certo momento e chegou a olhar para o pátio, pensando em quebrar o vidro e pular. A morte não podia ser tão certa saltando do terceiro andar quanto era estar naquele corredor. Mas ao lado de uma das janelas tinha um extintor de incêndio. “Dióxido de carbono, dióxido, por favor…”. Ela puxou o pesado extintor e o arremessou na direção da criatura. E, internamente, desejou que a coisa fosse realmente muito forte.

- July, aqui!

July mudou de direção assim que a ordem foi dada, e as duas entraram num corredor qualquer, a tempo de evitar que pedaços extremamente pontudos e mortais do extintor as atingissem quando explodiu feito uma granada gigante graças à mordida da criatura. O barulho poderia ter acordado um surdo a dez quilômetros dali. Sentiram o chão tremer e acharam que tudo ia cair. Sete janelas quebraram com o impacto de pedaços do extintor, e outras quatro por causa do barulho.

O colégio todo estava acordado, incluindo a diretora. Souberam disso quando todas as luzes se acenderam. Era isso que acontecia nos momentos de emergência, quando algo estranho estava acontecendo.

July espiou o cadáver da criatura e se assustou quando percebeu que havia pedaços vermelhos e gosmentos pingando do teto, e espalhando seu mau cheiro insuportável pelo corredor. A cabeça havia rolado até perto delas, lhe causando ânsia, com o crânio aberto e espalhando seu conteúdo.

Deu um salto quando tudo aquilo pegou fogo. Um fogo azul e brilhante, que consumiu a carne até os ossos, e os ossos até o pó, mas sem chegar ao chão ou às paredes. O vento da noite liberto pelas janelas quebradas tratou de espalhar aquilo o suficiente pra que não se tornasse suspeito.

July e Nina decidiram que não queriam estar no meio da confusão quando a diretora chegasse, então com o que restavas forças e arfando, as duas subiram as primeiras escadas que viram, em direção ao quarto andar, parando no meio para respirar e só então continuar.

O quarto andar era a ala de dormitórios, e estava absurdamente lotado. Todos haviam saído de seus quartos e foram impedidos de descer as escadas. As duas se enfiaram no meio antes que percebessem de onde vieram, e se tornaram apenas mais duas meninas no meio de outros tantos se perguntando o que tinha acontecido, exceto pelo suor excessivo e a necessidade de se jogar num canto qualquer pra sentar e descansar. As pernas doíam terrivelmente, e elas sabiam que seria ainda pior no dia seguinte.

- Acho que distendi um musculo. – gemeu Nina.

- Acho que distendi todos. – reclamou July, jogando-se no chão, deitada, longe dos sapatos da multidão se perguntando o motivo do barulho.

Elas ouviram alguém dizer que tinha estourado um gerador ou algo assim. Estavam sentadas num canto atrás de um pilar, perto das escadas, onde as pessoas não iam pisar nelas. O quarto de cada uma ficava longe demais pra se esgueirarem até lá.

- Atenção. – uma voz saiu dos autofalantes presos nos tetos. Reconheceram como sendo da diretora imediatamente – Um extintor de incêndio explodiu no piso três. Peço que todos voltem às suas camas. As aulas de amanhã estarão suspensas até que se confirme que os demais extintores são seguros, portanto estarão proibidos de andar no terceiro piso. Para as refeições, utilizem as escadarias que levam direto ao refeitório. Repito, voltem às suas camas. Quem for pego perambulando nos corredores após vinte minutos a partir de agora, terá uma detenção.

Rapidamente os corredores se esvaziaram, e as duas tomaram coragem pra atravessar o lugar até seus quartos.

Dessa vez eles precisavam falar sobre aquilo. Ficou muito claro que não era um evento isolado. Mas as duas acharam perigoso demais se reunirem ainda naquela noite. E estavam simplesmente cansadas demais pra qualquer coisa.

Não que o cansaço tenha sido suficiente pra fazer July pegar no sono depois daquilo.

Fato era que July tinha medo. Um medo agora que lhe acompanhava pra onde quer que fosse. Porque, até então, quando estava sozinha no escuro, o que lhe vinha na cabeça era “Não existe nada no escuro que possa me machucar”. Mas agora isso não era mais verdade. Agora ela sabia que havia algo lá, poderoso o suficiente para lhe causar muita dor.

Morrer era simples. July não temia a morte. Via isso como um fechar de olhos, um sono do qual não se acorda, e ela gostava dos próprios sonhos, gostava de estar dormindo. O que ela temia não era a morte. Era o sofrimento. Temia que o que quer que estivesse lá fora a fizesse sofrer o suficiente para desejar a morte. De alguma forma insana, ela temia ver seu corpo sendo feito aos pedaços, em tiras sangrentas e úmidas, sem poder dizer nada, na iminência de perder os sentidos, e imaginava que tal iminência durasse séculos.