Lance viu a jovem meio-kitsune chorando a sua frente, após revelar o que ele julgou ser um segredo. Ele via a dor e o arrependimento dela e não pensou muito no que fazia, apenas agindo, ele a puxou para si e a abraçou, tentando conforta-la. Iduna sentiu no abraço dele algo que não sentia a muito tempo, ela se sentiu reconfortada, mas não entendia por que, nem pensou muito sobre isso, apenas quis estar ali e chorar tudo o que havia guardado a muito tempo. Ficaram assim por muitos minutos, sem saber exatamente quanto tempo. Um pouco mais calma, Iduna já havia parado de chorar, mas não quis sair daquele abraço. Foi quando ambos ouviram vozes se aproximando. Sem saber o que fazer, mas imaginando o estado lastimável que seu rosto estava, a garota tentava secar as lágrimas que ainda tinha passando a mão no rosto. Foi quando Lance a pegou no colo sem aviso, e pulou com ela pela sacada que estavam. Durante o movimento, ele abriu suas asas e, usando sua forma híbrida, levou Iduna para a floresta próxima a cidade, pousando no alto de uma colina. A jovem o agarrou com força, sem entender o que estava acontecendo, em um primeiro momento, mas quando pousaram, ela viu as asas dele.

— Eu não sabia que você voava. – Iduna disse observando as asas azuis dele.

— Sendo um dragão, é esperado que eu, pelo menos, saiba voar. – Lance respondeu tentando usar o humor para aliviar a tensão da situação.

— Eu não sabia que você era um dragão.

— Está se sentindo melhor?

— Estou sim, obrigada.

— Quer conversar sobre o que me disse a pouco?

Iduna olhou pra Lance, acreditando que veria julgamento em seu olhar, mas viu preocupação e condescendência. Por alguma razão, ela sentia que podia confiar nele. Ela se sentou em um tronco caído que estava próximo. Lance veio logo atrás e se sentou ao seu lado.

— Eu sou a filha mais nova da minha família. Éramos eu e meu irmão mais velho, Kohaku. Eu o amava de todo meu coração e nossa mãe nos amava muito. Eu não conheci meu pai, ele morreu quando eu era muito nova. Meu avô era minha figura paterna, mas era Kohaku que me ajudava quando eu tinha problemas. Ele era péssimo em magia, mas era um excepcional lutador, muito melhor do que eu tanto em kendô quanto em aikidô. Ele disputava profissionalmente como atleta em campeonatos oficiais.

— Atleta de luta? – Lance estava confuso com esse conceito.

— Na Terra, os humanos teoricamente praticam luta por dois motivos, pra se defender ou por esporte, já que é ilegal resolver problemas com outras pessoas através de uma briga física. Meu irmão lutava por esporte, dentro de regras pré-estabelecidas pelos juízes das lutas. Na sua última luta, ele estava ganhando, era a final. O juiz deu um intervalo e ele foi para seu lado da arena. Seu oponente não estava feliz por perder, então ele deu um golpe no Kohaku quando ele estava distraído com a pausa. Ele caiu com o pescoço em cima de um banquinho que ele tinha para sentar e descansar, eu estava lá e vi tudo. Ele desmaiou na hora e quando acordou, estávamos no hospital, ele teve uma lesão permanente na coluna. Ficou paralisado do pescoço para baixo. Ele nunca mais se levantaria novamente. A lesão era muito séria e não poderia ser curada com as habilidades que eu e minha mãe tínhamos. Ele ficaria naquela cama pelo resto da vida. Um dia, durante uma visita, ele me pediu para tirar a vida dele. - Lance pareceu chocado, mas não surpreso.

— Eu imagino o quanto ele deveria estar desesperado para pedir isso a você.

— Ele realmente estava desesperado. Tanto que, quando eu recusei fazer isso, ele arrancou a própria língua com os dentes, na esperança de sufocar com o sangue. Ele teve de passar o resto do tempo dopado por tranquilizantes. Após essa tentativa eu vi o quanto ele estava sofrendo, sendo apenas a sombra de quem ele tinha sido, apenas querendo que aquela dor acabasse. E somente eu tinha forças pra isso. Eu relutei muito, mas um dia fui ao hospital a noite. Peguei um uniforme de enfermeira e me disfarcei, fui ao estoque de medicamentos e peguei o anestésico mais forte que consegui achar. Ninguém estranhou quando entrei no quarto dele, eu era só mais uma enfermeira. Eu entrei e ele me reconheceu na hora, mas não conseguia falar nada por causa da língua. Eu dei uma dose de remédio forte, para o organismo dele ficar tão adormecido que pararia de funcionar. Eu fiquei do lado dele até o final e ele balbuciava a palavra ‘obrigado’ para mim mesmo sem sair som. Quando ele fechou os olhos e deu o último suspiro eu saí, sem olhar pra ninguém, segurando o choro. Não voltei pra casa aquela noite, andei sem rumo pela cidade e... – Iduna parou de falar por alguns instantes.

— Pode parar se quiser. – Lance disse, tentando passar compreensão para sua companheira.

— Eu nunca contei como vim parar em Eldarya, não é?

— Você disse que foi durante a crise de fusão.

— Foi na noite em que ele morreu. Eu andei a noite toda sem rumo pela cidade e acabei indo parar em uma grande ponte, era bem alta. Estava olhando intensamente para a água, sentia ela me chamando, como se meu irmão me chamasse para ir para o outro lado, um pensamento intrusivo veio, de me jogar daquela ponte, de que eu não merecia mais viver pelo que tinha feito com meu irmão. Mas então lembrei da minha mãe, que ela iria perder os dois filhos de uma vez, então tentei tirar aquele pensamento da cabeça. Enquanto tentava colocar as ideias no lugar para voltar pra casa, o choque entre Eldarya e a Terra aconteceu onde eu estava. De repente, fui transportada para esse mundo, um lugar estranho que eu não conhecia, mas que me pareceu bem familiar.

— Você tirou a vida do seu irmão para poupar ele de mais sofrimento. Você teve misericórdia dele.

— Eu sei disso, mas não me sinto melhor pensando assim. Eu só penso que deveria ter feito isso de outra forma, uma forma que o mantivesse vivo e bem.

— E por causa disso você acha que não merece estar viva, não merece estar feliz ou se sentir bem. Por isso você é tão imprudente e se lança nas lutas sem pensar na sua autopreservação. Se você morrer protegendo alguém, acha que compensaria o que fez com seu irmão. – Lance falava isso olhando para a vista da cidade e do castelo de Zugyara. Iduna olhou para o rapaz, visivelmente surpresa. Ele leu seus sentimentos de uma forma que não imaginava que alguém poderia. Ele se virou para ela e viu a surpresa em rosto.

— O quanto você sabe da história de Eldarya?

— Um pouco. Eldarya foi criada pelo Sacrifício Azul, quando os Dragões e parte dos Aengels usaram sua energia para criar esse mundo para os faerys que queriam fugir da perseguição dos humanos. Mas os Aengels estavam desunidos nessa causa e a parte que não aceitou o sacrifício foi corrompida e se transformou nos daemons. Eldarya não foi um mundo muito sustentável por causa disso. Mas a uns nove anos houve uma batalha que quase destruiu o QG, mas a Erika e o Leiftan se sacrificaram e hibernaram um tempo dentro do cristal, esse foi o Sacrifício Branco, e por causa disso Eldarya conseguiu se tornar autossuficiente.

— Você sabe quem era o inimigo que quase destruiu o QG? – Iduna fez que não com a cabeça, e Lance olhou fundo em seus olhos. – Era eu, eu tentei destruir Eldarya.

A jovem kitsune estava perplexa, ouviu muitos companheiros da guarda falarem sobre o Sacrifício Branco e a batalha daquele dia, mas não lembrava de terem mencionado Lance como comandante inimigo. O rapaz percebeu a confusão da moça.

— Huang Hua pede para que as pessoas não mencionem minha participação na guerra, ela acha que estou pagando minha dívida com o QG assumindo o fardo de ser comandante da Guarda Obsidiana.

— Por que tentou acabar com Eldarya? – Iduna não se impediu de perguntar.

— Como você disse, os dragões se sacrificaram para salvar os faerys dos humanos criando Eldarya. Eu não sabia disso quando era criança, minha mãe escondeu a mim e meu irmão antes de nascermos, nossos ovos quero dizer.

— Mesmo fazendo sentido, é estranho imaginar que você nasceu de um ovo. – A jovem observou e Lance deu um riso discreto.

— Depois que nascemos, fomos acolhidos em um vilarejo e crescemos lá, escondendo nossas origens. Quando fomos para a Cidade de Eel e entramos pra guarda, eu fiquei sabendo do sacrifício dos dragões através de livros antigos e como todos os faerys pareciam conviver bem com isso. Além do fato de antigos líderes da Guarda terem sacrificado dragões remanescentes, como eu e meu irmão, para tentar reestabelecer o equilíbrio em Eldarya. Eu fui tomado por um sentimento de ódio e vingança, me ressentia por todos que viviam suas vidas despreocupadamente em troca do sacrifício do meu povo. Eu era chefe da guarda Obsidiana na época, mas forjei minha morte para começar meu plano para destruir Eldarya. Eu juntei aliados e no fim ataquei o QG da guarda. Foi uma luta bem difícil e no final eu acabei... – Lance relutou um pouco para dizer– cego pelo ódio, eu matei meu irmão.

Iduna estava boquiaberta pela história que acabara de ouvir. Era difícil acreditar que o chefe da sua guarda, que parecia tão dedicado a seus subordinados poderia ter destruído o mundo. Ela pensou no que dizer, mas não conseguiu, apenas o olhou com pena e complacência.

— Eu me arrependi do que fiz no mesmo segundo. Eu fiquei preso por um ano por isso e nesse tempo tive muito no que pensar. Assim como você eu desejei morrer, mas acho que tinha medo de encarar meu irmão no pós-vida. Talvez por isso nunca tenha tentado, mas tudo o que você sentiu, eu senti também, vontade de morrer, a sensação de ser errado ficar feliz, de ter coisas boas na minha vida, sendo que eu fui o responsável pela morte da pessoa que eu mais amava. Eu entendo seus sentimentos melhor que qualquer um em Eldarya.

— Eu não conheci o seu ‘eu’ de antes. Tudo que conheci sobre você até agora me inspira confiança, e se Huang Hua te deu uma chance de se redimir, não serei eu a julga-lo pelo passado. - Iduna e Lance trocaram um olhar cúmplice e um sorriso sincero.

— Acho que ficamos fora muito tempo, podem sentir nossa falta. O rei Edwin é meio temperamental e se ofende fácil, acho melhor voltarmos.

— Então vamos. - Iduna começou a caminhar pela floresta, em direção a cidade, seguindo o rumo do castelo.

— Para onde você está indo?

— Para o castelo, você mesmo disse que tínhamos que voltar.

— Se formos andando, chegaremos bem depois da festa, vem aqui. - Lance pegou Iduna no colo e abriu suas asas novamente. Ele alçou voo e seguiu para o castelo, para a mesma sacada de onde tinham partido. Mesmo tendo vivido isso a pouco tempo, Iduna não se impediu de ficar sem graça. Ao aterrissar na sacada e voltar para o baile, perceberam olhares indiscretos de Erika, Matheus e Leiftan que conversavam. O jovem humano não se conteve e, com um olhar divertido e um riso de diversão, falou.

— Hum... Os dois sumiram e de repente voltam juntos... Significa.

— Devia mudar seu nome de ‘Matheus’ para ‘Maria Fifi’. - Erika disse, repreendendo o companheiro que retrucou.

— Você também estava achando o sumiço deles estranho, não vem pagar de santa.

— Eu não estava passando muito bem e sai pra tomar um ar, o Lance me acompanhou pra não me deixar sozinha, por conta do ferimento e tudo mais. Foi isso. - Iduna tentou parecer o mais casual possível. Nevra se aproximou do grupo e falou.

— De qualquer forma, é melhor terminarmos essa noite logo. Partiremos amanhã à tarde. Temos que passar o relatório para Huang Hua o quanto antes. Enviei um relatório preliminar pela Skala, mas ela certamente vai querer o completo. O rei nos deu quartos aqui no castelo, os criados mostrarão pra vocês.

Todos concordaram que deveriam se deitar. A viajem que os esperavam no dia seguinte seria longa. A noite passou em um instante e o dia seguinte veio com algumas surpresas. Uma caravana improvisada de habitantes da cidade queria seguir os membros da guarda para a Cidade de Eel, pois não se sentiam mais seguros em Zugyara. Nevra ficou preocupado com o tempo de retorno, além dos membros da guarda, havia mais umas 15 pessoas que queiram acompanha-los, entre crianças, adultos e alguns idosos. Não teve muito o que eles pudessem fazer, a não ser deixar a caravana acompanha-los e proteger todos na viajem de volta. A saída do grupo foi festejada pela população de toda a cidade, o que trouxe o sentimento de incômodo novamente a Iduna. O rei Edwin ofereceu alguns dos soldados do reino para ajudar na viajem e na proteção de todos, e se durante a ida eles haviam chegado em tempo menor que o esperado, na volta levou meio-dia a mais, mas felizmente sem nenhum perigo na estrada.