— Ache uma abertura e explore ela para conseguir derrotar o oponente. - Iduna dava as instruções enquanto Van e Eloy treinavam com espadas de madeira.

Havia se passado 1 mês e meio desde que Iduna e o grupo haviam voltado de Zugyara. Ela ainda precisou ficar em repouso por dois dias após a chegada por ordens médicas, então só pôde voltar a treinar com Van após esse período. Aproveitou para encontrar a pequena Yuka e sua amiga Mariko. Acabou encontrando também Eloy e Totoro que seguiram seu conselho e buscaram asilo junto a Guarda de Eel. Totoro e Yuka se tornaram amigas imediatamente e Mariko acabou adotando a pequena menina. Totoro tinha 8 anos e pele rosada, com cabelos brancos e olhos azuis. Ela também tinha orelhas levemente pontudas, o que fez Mariko supor que ela tinha algum antepassado elfo. Eloy ficou feliz da sua pequena irmãzinha ter uma nova mãe que cuidava dela, apesar de ele sentir saudades da pequena Totoro. Mas ele não se sentia à vontade junto a família de Yuka. Eloy tinha 15 anos e já vivia por conta própria desde que vivia na Terra. Ele morava nas ruas de Nova York e sabia se virar, por isso se adaptou bem a vida de criança de rua em Eldarya. Quando chegou no QG, quis virar recruta na guarda, imaginando que assim poderia proteger Totoro. Eloy era habilidoso para artes marciais e tinha a malandragem das ruas ao seu favor. Ele e Van acabaram se tornando amigos e rivais no campo de treinamento, sempre com supervisão de Iduna.

As missões de patrulha e coleta haviam voltado a rotina de Iduna, as vezes com Van outras com Eloy e algumas os três juntos. Ela havia criado uma ligação com aqueles garotos, se sentia responsável por eles. Durante os treinos, pegava pesado com ambos e cobrava empenho. Após mais um dia de treino, foram para a cantina para uma merecida refeição. Conversavam sobre banalidades quando Matheus, Koori e Erika se aproximaram e se juntaram a eles para a refeição.

— Boa noite a todos. - Cumprimentou Erika. - Faz bastante tempo desde que conversamos, não é Iduna.

— Desde a missão e Zugyara, se não me engano. - Apontou Matheus. Iduna fez uma cara pensativa e constatou.

— É verdade, desde essa missão, não conseguimos nos encontrar, nem nas refeições.

— E imagino que esses dois sejam o motivo de estar tão ocupada. - Koori apontou para os dois discípulos da meio-kitsune. Eles se entreolharam no meio de uma garfada.

— Com certeza! Ela está sempre treinando esses dois. Quando chego para treinar, os três já estão lá e quando eu saio, eles ainda ficam. - Matheus continuou o relato. - Lance já comentou que esses dois evoluíram muito no comando da Iduna. - Os olhos dos garotos brilharam.

— O comandante Lance acha que somos bons? - Van parecia esperançoso.

— Não foi isso que eu disse, ele falou que vocês evoluíram. Mas isso não quer dizer que ficaram bons, só estão menos ruins. - O brilho nos olhos dos garotos sumiu.

— Que maldade, Matheus. Eu aposto que eles são melhores lutando do que você fazendo poções. - Koori disse, debochando do companheiro que respondeu com uma careta de desaprovação, o que fez os jovens recrutas rirem da situação. - Mas e vocês, meninos, qual a história triste das suas vidas?

— Por que você acha que temos histórias tristes? - Eloy perguntou.

— Eu era um cara sem amigos e com família complicada na Terra, a Koori tinha um marido abusivo. A Erika tinha uma vida boa na Terra, veio parar aqui por acidente, se sacrificou por Eldarya, ressuscitou e comeu o pão que o diabo amassou antes de descobrir que o pai dela queria dominar o poder do maana. Todo mundo da guarda tem uma história triste.

— Eu morava com meu pai em um vilarejo nas montanhas de Genkaku. – Van começou - Quando o Tenji tomou o poder, foi criada uma resistência que queria tirar o poder dele. Mas a resistência perdeu miseravelmente e foi aí que perdi meu pai. Como retaliação, Tenji mandou seus soldados invadirem o vilarejo e dizimou todos. Eu escapei porque me fingi de morto. Depois que eles se foram, eu corri feito um doido para o lado oposto a Genkaku e acabei em um porto, peguei o primeiro navio que saiu e vim parar em Eel. Eu tinha 13 anos.

— Pareceu o que aconteceu comigo em Zugyara. – Eloy complementou. – Minha mãe não conseguia cuidar de mim quando eu era pequeno e ela acabou se envolvendo com umas paradas erradas e foi presa. Eu fui mandado para um orfanato, mas não me adaptei e fugi. Passei anos nas ruas na Terra até ser transportado para esse lugar e passar anos nas ruas de Eldarya. Em muitos aspectos, Eldarya parece com a Terra, principalmente a indiferença dos abastados para com os mais pobres.

— Uau! É bastante coisa para garotos tão jovens terem que lidar. Se precisarem de ajuda, podem contar com os irmãos mais velhos. – Matheus estende o punho fechado para os garotos, que o cumprimentam com o mesmo movimento, dando um ‘soquinho’.

Naquele momento, Iduna percebeu que não sabia de nada sobre seus discípulos. Se focou tanto na luta que não sabia nada do passado deles. Ficou tentando lembrar se ela havia tentado saber, mas eles não quiseram contar, ou se nunca havia dado abertura para isso. Talvez, inconscientemente, achasse que se ela perguntasse sobre o passado deles, teria que falar do seu, o que era óbvio que não lhe agradava. Ela foi tirada de seus devaneios por um estalar de dedos de Koori em frete ao seu rosto.

— Estava perdida? – Koori disse com sarcasmo. – Mas e você, Iduna? Qual a sua história?

Iduna temia essa pergunta, não havia pensado em revelar a seus companheiros toda a história tensa do seu passado. Pensou rápido e decidiu não entrar em detalhes.

— Nada de mais, eu tinha uma vida normal, família normal e vim parar por aqui por conta de um azar, estava no lugar errado na hora errada.

— Sempre tem alguém que destoa. – Matheus disse quase como um lamento. Eloy bocejou e Iduna viu a oportunidade para sair daquela situação sem parecer suspeito.

— Vou descansar. Vejo vocês amanhã. – A jovem se levantou cumprimentando a todos com um aceno. Ela entrou na sala das portas, mas não quis ir para o quarto, queria espairecer as ideias. Seguiu para fora do QG, quando ia atravessando o portão principal viu que Lance estava mais a frente, parecia distraído. Ela se aproximou devagar, mas fazendo barulho para não assustar seu chefe. Ao ouvi-la, olhou para trás e a viu, Iduna se pôs ao seu lado e cumprimentou com um sorriso. – Boa noite.

— Boa noite. Também está sem sono? – Disso o dragão, curioso.

— Não exatamente, só queria vaguear e pensar em algumas coisas.

— Para onde estava indo?

— Nenhum lugar específico, mas vi você quando sai do portão e resolvi me aproximar.

— Quem está seguindo quem agora? – Lance falou brincando, Iduna deu uma risada baixa.

— Eu precisava espairecer e eu gosto de conversar com você.

— Me sinto lisonjeado. Já foi a praia?

— Ainda não, sempre tive vontade, mas nunca tinha achado tempo ou oportunidade.

— Vamos agora, gosto de ir lá quando preciso dar um tempo do QG.

Eles caminharam lado a lado, conversando coisas do dia a dia, sobre as guardas e as missões. Chegando à praia, Iduna não escondeu seu encanto com o local. A areia era clara quase branca, as ondas estavam calmas, quase fazendo o mar parecer um espelho e a lua estava nascendo no horizonte. Era maravilhoso.

— De fato, é um lugar muito lindo. Bom para esquecer da vida por alguns momentos. - Iduna disse, observando a lua e se sentando na areia.

— E o que te deixou tão perturbada a ponto de querer se afastar do QG? – Lance se sentou ao seu lado.

— Ah... sobre isso... - A jovem tentava procurar as palavras. - Você conhece o Van e o Eloy? Os garotos que treinam comigo.

— Sei quem são, vocês estão sempre juntos. Inclusive, está fazendo um bom trabalho com eles. Evoluíram muito com seu treinamento.

— Obrigada, mas eles são muito esforçados também.

— Sem orientação, até o melhor guerreiro não consegue evoluir, mas o que tem eles?

— Após o treino de hoje, fomos jantar e acabamos encontrando a Koori, o Matheus e a Erika. Conversamos um pouco e a Koori perguntou sobre o passado dos garotos. Quando eles falaram, eu percebi que não sabia nada sobre eles. Sou sua mestra e não me dei ao trabalho nem de perguntar como havia sido o caminho deles até aqui. Eles tiveram vidas bem difíceis, e quando penso nisso, eu vejo o quanto eu fui privilegiada por ter uma boa família que me amava. – Iduna deu um suspiro longo e prosseguiu. – Depois disso, Koori perguntou qual era a minha história. Eu não consegui contar tudo, omiti a parte mais... delicada. Isso só me fez sentir pior, eles estavam sendo totalmente sinceros sobre seus passados e eu omitia a minha desgraça. – Iduna tinha um olhar melancólico, observando as ondas curtas na beira da água. Um silêncio se pôs entre os companheiros de guarda até que Lance falou.

— Não é fácil admitir algo que te causa dor. É sempre difícil falar a respeito de algo que você sente ser odioso sobre si mesmo.

— O que você me contou sobre você, durante a missão em Zugyara, foi difícil para me contar?

— Não foi muito fácil, é verdade, mas no meu caso é um pouco mais simples porque não é um segredo, necessariamente. De uma forma ou de outra você ia acabar sabendo. Naquela hora, achei que deveria te contar porquê você precisava de ajuda pra sair de um desespero que eu já conheci. Essa sensação de que o simples fato de estar vivo já é um erro do destino, que outra pessoa devia estar no seu lugar, que nada do que você está vivenciando é de fato seu.

— Como se tudo que você tem deveria ser de outra pessoa, que você roubou isso dela e que por mais que digam que a culpa não é sua, o sentimento nunca vai embora. - Lance e Iduna trocaram um olhar cúmplice por um momento, Iduna perguntou. – E você? Disse que vinha aqui para dar um tempo do QG. O que te deixou chateado?

Lance pareceu surpreso com a pergunta.

— Eu precisei ficar um pouco longe do QG hoje porquê... – o dragão hesitou por um momento. – Hoje é o aniversário da morte dele.

— Sei como é. Quando essa data chega para mim, minha vontade é de sumir, desaparecer da face da terra. Quando cheguei aqui, eu estava destruída pelo que eu tinha feito. Eu me dedicava a ajudar qualquer um, não importava quem fosse, eu precisava achar uma razão para viver, se não o desespero ia me consumir e eu ia mesmo tentar desaparecer desse mundo. Com o tempo consegui suprimir esse desespero, mas quando a data chega, esses sentimentos retornam.

— É parecido com a relação que eu tenho com a guarda. Eu assumi a responsabilidade e fiz disso minha razão para viver, cuidar da guarda e dos meus comandados. Mas em dias como hoje eu também sinto que sou um usurpador. Valkyon era o chefe da Obsidiana antes de mim. Assumiu o posto quando eu forjei minha morte e ficou com uma responsabilidade que era minha. Quando eu reassumi a guarda, não sentia como se fosse o real líder, mas sim uma fraude. Mesmo assim fiz meu melhor para proteger todos os meus subordinados. – Lance se surpreende com a facilidade que teve em revelar aqueles pensamentos a Iduna. De alguma forma, ele também gostava de conversar com ela. Eles mantiveram o silêncio, mas não desconfortavelmente, mas sim absorvendo o que um havia revelado ao outro.

O som calmo das ondas, o brilho da lua no mar e o vento fresco que soprava fez a meia-kitsune desejar entrar na água. Sem muita cerimônia começou a tirar os sapatos e depois a roupa, ficando apenas com uma lingerie básica preta. Lance observou a jovem se despir e quando ela chegou na beira da água ele indagou.

— Vai nadar?

— Não dá para resistir a esse visual. Você vem? – O dragão não recusou o convite, se pôs de pé, enquanto Iduna entrava na água, tirou suas roupas e entrou na água logo após ela. Ele veio por trás da jovem e reparou em algo nas suas costas.

— Você tem uma tatuagem bonita aqui. – Ele afastou o cabelo dela da frente do desenho. Por impulso, Lance acariciou o desenho na pele de Iduna, o que fez sua pele arrepiar. – É um desenho de máscara, certo?

— É um desenho de uma máscara de raposa japonesa. Eu não tenho orelhas nem rabo, mesmo sendo meio-kitsune, queria ter algo no meu corpo que mostrasse minhas raízes. Minha mãe ficou louca quando apareci com ela em casa. – Iduna riu, virando de frente para Lance, enquanto nadava na maré.

— Ela não gostava de tatuagem? – O chefe da guarda perguntou confuso, a jovem explicou.

— Não sei como os eldaryanos veem a questão de tatuagens, mas no país de onde eu vim, isso é um tabu. Tatuagens são muito malvistas, coisas que apenas bandidos e mafiosos fazem. Então quando eu apareci com esse desenho em mim, minha mãe quase me pôs para fora achando que eu tinha entrado para uma gangue. Até explicar tudo para ela, levou quase uma noite toda. Depois de um tempo ela acabou se acostumando. Mas eu não podia andar por aí com a tatuagem a mostra. As outras pessoas julgariam muito se vissem, então eu sempre cobria fora de casa, mas como ela está bem no meio das costas e não é muito grande, é fácil de esconder. – O rosto de Iduna se iluminava quando ela falava da própria família. Era visível como ela os amava e Lance reparou nos olhos cor de âmbar dela.

— Seus olhos – ele pôs a mão no queixo dela e virou seu rosto para o dele, aproximando-se. – Seus olhos são da mesma cor que os do Valkyon, eu ainda não tinha reparado.

Aqueles olhos azuis profundos a encaravam tão de perto que podia sentir a respiração dele em seu rosto. Iduna, sem saber o que fazer, mergulhou e nadou para mais fundo no mar. Ela sentia seu coração bater forte enquanto nadava, sem entender bem o porquê, nunca tinha visto seu chefe de guarda como um interesse romântico, apesar de achar ele realmente muito bonito. Mas aquela proximidade, fora do ambiente do QG parecia ter mostrado um lado dele que ela não tinha reparado, um lado mais sexy, lado que ela nem sabia se ele queria mostrar ou se era natural a ele, algo inconsciente. Após esse mergulho, emergiu numa parte mais funda do mar, achando que Lance havia ficado para traz, mas assim que pôs a cabeça para fora, viu ele ao seu lado novamente.

— Vai ficar me seguindo na água também? - Iduna disse sem graça.

— Mas foi você que me chamou para nadar, se lembra? - Lance retrucou rindo.

Sem saber o que fazer, a reação da garota foi de jogar uma onda de água na cara de seu chefe. Ele revidou, jogando mais água e a tensão que a jovem sentiu se dissipou naquela brincadeira infantil. Após um tempo na água, decidiram que já era tarde, que precisavam voltar. Saíram da água, se vestiram e seguiram o caminho para o QG. Não trocaram palavras por boa parte do caminho, mas, antes de chegarem no portão da fortaleza, Lance resolveu falar.

— Obrigado por ter passado esse tempo comigo. Hoje é um dia bem complicado para mim, mas ter você comigo pareceu que foi menos pesado.

— Não foi nada para mim, já disse que gosto de conversar com você. Você é um bom chefe e tenho sorte de ser sua subordinada. - Lance pareceu incomodado com a fala de Iduna e parou de andar, fazendo a garota parar também e se virar para ele.

— Eu não te vejo só como uma subordinada. Eu não sou tão bem quisto no QG, não tem muitas pessoas que são próximas a mim. Eu gostaria que você me visse como seu amigo, pois é assim que eu te vejo. - Iduna pareceu surpresa num primeiro momento, mas após isso, sorriu para ele e respondeu.

— Tudo bem, somos amigos, mas não vai me pedir dinheiro emprestado, porque eu estou sem. - Ambos riram e seguiram para os quartos para se preparar para mais um dia de serviço.