As Sete Ameaças

Parte II: O Reencontro – O errado mais certo.


A carroça chacoalhava, fazendo os pequenos vidros se baterem, produzindo um som tilintante.

Quatro pessoas estavam na carroça: um comerciante de produtos lácteos chamado Luca Vanolli, um homem alto e forte com uma fala cantada e o sorriso vacilante; Antonella Vanolli, uma mulher claramente do campo, com uma bandana cobrindo os cachos loiros e um vestido gasto que tinha a mania de alisar a cada minuto; Luna Vanolli, a filha do casal, com seus vinte anos e temperamento expansivo, se recusava a trabalhar com os pais a não ser na parte do comércio, gostava muito de moedas, quanto mais douradas e brilhantes melhor; por último o viajante calado Nino Flaminco, um homem magro e sujo com o passado duvidoso e um corte de cabelo muito feio.

Os quatro viajavam a uma velocidade tão baixa, que Nino estava a ponto de gritar. Precisava chegar à vila rápido. Por melhor que seu disfarce fosse, não tinha como mudar sua face, totalmente reconhecível.

— De onde você disse que veio mesmo? – perguntou Luna, desconfiada.

— Eu não disse.

— Então diga, ora!

— Venho de uma vila perto da capital de Gapazium – respondeu e não era mentira, contudo existiam, no mínimo, dez vilas perto da capital.

— Interessante. Soube que os Sete são de lá.

A mente de Nino travou e ele estava se preparando para usar seu poder de indução para mudar a mente da garota, quando Luca deu gordas gargalhadas.

— Que imaginação fértil! Os Sete são só uma lenda, Luna.

A garota deu de ombros.

— Nunca se sabe quando lendas são realidade, ora.

— Lenda? Não conheço essa lenda.

— Ora, mas deveria! É uma lenda muito conhecida.

— Me explique, por favor.

— Ora, mas é claro! – Luna entrou em uma narração envolvente sobre os sete pupilos de mestre Ivo Jaroisk e como sumiram sem deixar rastros. Mas Nino não precisava escutar aquela história, ele a conhecia vividamente.

— Bobagem – disse Luca – Uma história que contamos para crianças.

Antonella, que estava calada por todo o trajeto, finalmente se manifestou.

— Mas é uma bela história, de fato.

— Oh, sim. Uma bela história, mas não passa disso.

— Sim – confirmou Nino – Uma bela história. De acordo com essa história, o que houve com o mestre?

— Ivo? Ora, ele continuou na vila deles vivendo uma vida miserável. O homem é real, entende? A história que é mentira. O povo daquela vila gosta de parecer superior.

— Entendo.

A viagem continuou e logo Nino não aguentava mais o tilintar insistente das garrafas de leite.

— Onde estamos?

— Muito longe ainda! Andamos devagar, mas é por que não podemos arriscar que as garrafas de quebrem.

— Por que viajam tão longe para vender leite? Aposto que muitas vilas pelas redondezas comprariam.

— Bobagem, esse povo é muito caipira para apreciar um bom leite e um queijo saboroso. Vendemos para nobres que sabem degustar nosso trabalho.

— O trabalho de vocês, ora.

— Sim, por que você se recusa a colocar a mão na massa – falou a mãe parecendo exaustivamente zangada.

— A mão no queijo, e claro que não vou deixar minhas lindas mãos ficarem engelhadas e fedidas como as suas, ora!

— Luna, filha, pare de falar “ora”, é irritante.

— Eu nem falo tanto “ora” assim, ora! E eu nunca noto quando uso.

— Mas é muito irritante, não é mesmo, Nino?

Nino saiu de seu transe e olhou para os três rostos que o olhavam.

— Não me importo muito.

— Viu? Nino tem bom gosto, ora! Estou começando a gostar de você.

— Obrigada, eu acho.

— Luca, vamos parar, querido. Estou cansada.

— Está bem.

Então os cavalos pararam e foram soltos para que pastassem, enquanto Luca, Antonella e Luna pegavam um vidro de leite, pão fresco que levavam em um alforje e um quarto de um queijo amarelo de aparência ótima. Distribuíram com Nino também e começaram a comer.

— E então, Nino, por que estava tão longe de casa? – Perguntou Luca.

— Minha família estava com problemas financeiros alguns anos atrás e saí a procura de emprego. Consegui bastantes moedas para ajudar, mas fui assaltado antes de chegar ao vilarejo que encontrei vocês – começou a inventar.

— Então irá voltar de mãos vazias?

— Sinto uma dor ao pensar que sim, mas minha saudade pelos meus irmãos é tão grande que não cabe em meu peito.

— Oh sim, como dizemos aqui: “família em primeiro lugar e dinheiro se sobrar tempo” – disse Antonella com o peito inflado de orgulho da própria citação.

— Sim, pretendo passar um tempo com meus irmãos e depois viajar novamente. Eles precisam dessas moedas para se sustentar, são pequenos demais para trabalhar.

— Entendo perfeitamente – falou Luca dando uma mordida que quase acabou seu jantar por completo.

— Ora pai, Nino está com dificuldades! Deveria devolver suas moedas.

— Oh, não faço questão que as devolva. É o único meio de agradecer o que vocês têm feito.

— Claro que papai vai devolver de qualquer jeito, ora! Você precisa mais que nós.

Contudo, Luca parecia subitamente muito interessado em seu almoço.

— Vejo que é um rapaz muito bonito, Nino – falou Antonella para quebrar o desconforto da situação – Sem toda essa fuligem e um corte de cabelo decente, seria um atraente cavalheiro.

— E roupas decentes também.

— Luca, querido, você tem algumas sobrando?

— Mas é claro! – falou o homem animado pela mudança de assunto.

— Não é preciso, de verdade. Não desejo chamar atenção.

— Mas que besteira! Venha Luna, traga a tesoura e vamos dar um jeito em Nino.

— Agora mesmo, mamãe!

Elas nem mesmo deram chances de Nino argumentar, em alguns segundos, Luna já estava fazendo um novo corte e Antonella limpando a fuligem do rosto do rapaz. Luca também não ficou de fora: pegou um conjunto de roupas novo e limpo e entregou para ele se trocar.

Em uma hora, Nino saía de trás das árvores com um visual novo.

E Antonella estava completamente certa: com o rosto limpo, roupas novas e um corte decente, Nino era um cavalheiro muito bonito. Talvez tivesse alguns traços feminizados, mas achava que esse era o seu charme especial.

— Ora, não é que o mendigo agora virou um príncipe? – falou Luna corando um pouco.

— Obrigada.

— Garoto, você mudou da água para o vinho! E por falar em vinho, temos uma garrafa especial para a noite!

— Sim, para a noite, mas agora temos que continuar o caminho, Luca – afirmou Antonella – Não podemos deixar que o leite se estrague antes de chegarmos em Luzarium.

— Claro! Todos na carroça!

Os quatro subiram em seus respectivos lugares e as garrafas voltaram a tilintar novamente.

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O sol estava se pondo quando eles pararam e fizeram uma fogueira para assar um coelho e comer com mais queijo e pão. Os Vanolli abriram seu vinho especial e serviram Nino e Luna em taças, enquanto o casal bebia no gargalo.

Logo Antonella e Luca estavam tão bêbados que riam de qualquer coisa e beijavam-se de modo animalesco. Os dois correram para dentro da floresta e Nino e Luna não mais os ouviram.

A menina também já estava rosada e risonha, mas Nino nem tinha tocado no vinho, a bebida o lembrava da época em que era da casa de damas e aqueles homens asquerosos levavam garrafas de vinho barato para aproveitar o momento.

Luna falava sem parar sobre as viagens que a família fazia e todos os homens que a cortejavam, mesmo que ela não lhes desse abertura.

- Homens nem um quarto tão bonitos quanto você.

— Eu entendo, faziam o mesmo comigo. Indico que simplesmente os ignore e finja ser uma criatura asquerosa e arrogante, eles rapidamente perdem o interesse. Ou a maioria o faz.

— Quer dizer que muitas mulheres também lhe cortejavam? – falou Luna ligeiramente menos sorridente.

Nino se amaldiçoou internamente por ter dito aquilo. Aquela história era de Nina Flamingo e essa garota deveria ser esquecida, permanecer a lenda que já era, pelo menos temporariamente.

— Sim – inventou – Muitas mulheres.

— Por isso se vestia como um mendigo?

— Acho mais fácil chamar menos atenção do que me preocupar com isso.

— Se eu fizesse isso, você prestaria atenção em mim?

— Como?

— Se eu me vestisse como uma mendiga, você prestaria atenção em mim?

— Luna... não tenho certeza se sei onde você quer chegar...

Mas nem mesmo completou o raciocínio, pois a boca de Luna estava grudada na sua. Pensou em todos os motivos para aquilo ser errado. Primeiro: seu nome verdadeiro nem mesmo era Nino. Segundo: Luna achava que ela era um homem. Terceiro: eram duas mulheres se beijando. Quarto: estava abusando da hospitalidade dos Vanolli. Quinto: tinha certeza que se os pais os vissem, mesmo bêbados, não seriam tão amigáveis assim.

Então pensou na única razão para aquilo parecer certo: o fato de seu coração estar batendo assustadoramente rápido de um jeito bom e de seu estômago estar se revirando como se borboletas estivessem acasalando lá dentro. Só sentira isso uma vez na vida: quando beijara Clyde, doze anos atrás.

Então Nino se permitiu beijar Luna e se entregar a ela. Se a outra não descobrisse a mentira, talvez não se importasse tanto.