As Sete Ameaças

Parte II: O Reencontro – Infecção.


Quando recobrou a consciência, Yuki ouviu o cantar dos pássaros e a textura da terra molhada em suas mãos. O cheiro de árvores e animais selvagens inundou seu olfato e ele sorriu. Quantas vezes não quisera estar ali, na natureza? Conseguia se lembrar do quanto adorava estar ali. Sempre adorou.

— Que bom que acordou – falou Hocela com sua voz grossa levemente abafada pela volumosa barba que tinha.

Yuki levou seus dedos da mão esquerda aos olhos e sentiu as linhas grosas que ligavam seus olhos.

— Tire isso daqui, por favor.

Hacela foi bem prestativo. Embora Chô não pudesse vê-lo, sentiu quando ele se debruçou sobre si e encostou delicadamente a ponta de uma faca, cortando devagar a costura de seus olhos.

— Pronto – falou quando estava acabado.

Yuki abriu os olhos como conseguiu. Fazia doze anos que não abria seus olhos. Sentiu o vento em sua pupila e as lágrimas que inundaram seus olhos involuntariamente. Estavam sensíveis à luz e ao vento, mas ele não se importava. Ter seus olhos abertos novamente era tudo o que podia querer.

— Obrigado.

Sentiu Hocela sentar-se perto e ouviu quando ele suspirou.

— Seus olhos...

— Já me disseram que são completamente brancos.

— Não, mas são próximos disso. Como?

— Nasci assim. Minha mãe uma vez me disse que quando estava sendo gerado minha íris, por algum motivo, não foi formada. Então nasci cego.

— Sua família é supersticiosa?

— Está perguntando se eles acreditam que minha cegueira é fruto de um erro de meus ancestrais?

— Em minha cultura, é isso que seria visto. E você iria passar a vida mendigando nas ruas.

— Que vida triste. Que bom que não sou da sua cultura.

— É uma boa cultura, se você não se importar com todas as injustiças, mas que tipo de cultura não tem injustiças, não é mesmo?

— De onde você é?

— Do extremo norte de Luzarium. E você?

— De uma pacata vila ao sul de Gapazium.

— Não estamos tão longe assim, então.

— Sim...

— É para lá que quer voltar?

— Sim. Preciso voltar.

— Por que? Por que agora?

— Eu lembrei.

— De quê?

— De tudo. Eu não tinha nada. Nenhuma memória, nem mesmo meu nome eu sabia ao certo. De repente, tudo voltou. Eu lembrei de tudo.

— Então seu nome não é Haru?

— Não.

— Então vamos começar novamente então, sim? Sou Ibraim Almasor.

— Que nome bonito... o que significa?

Ibraim riu.

— Você se importa com isso?

— Claro. Os nomes são poderosos.

— Bem, meu nome significa “o pai das multidões vencedor”. E o seu?

— Yukiko significa Filho da neve ou criança feliz e Chô significa borboleta.

— Borboleta?

— Sim. O animal mais delicado do reino animal. Meus amigos diziam que combinava comigo.

— E, sem mais nem menos, até amigos você tem.

Yuki soltou uma leve risada.

— Eu sempre os tive em meu peito, só não me lembrava deles...

Então levantou a mão direita e gritou com a dor.

— Yukiko! Seu braço ainda está com a flecha.

— Oh. Creio que temos que tirá-la.

— Temo que se a tirarmos o sangramento voltará.

— Não posso ficar com uma flecha cravada em meu ombro para sempre, Ibraim.

O homem respirou fundo e concordou.

— Ok, mas creio que irá doer como o diabo.

— Vá em frente.

Yuki sentiu Ibraim tocar sua pele com as costas de uma das mãos. Então sentiu a seta de madeira curvar-se levemente dentro da carne, conseguindo até mesmo escutar o barulho da mesma se revirando ali dentro. Cerrou os dentes para não gritar.

O barulho de madeira de quebrando foi escutado.

— Pronto – disse Ibraim – Agora vou retirar o resto da flecha. Vai doer muito.

— Só agora?

Almasor riu um pouco.

— Se tivesse um pouco de aguardente, eu a daria para beber um pouco.

— E eu insistiria que a guardasse para desinfetar a ferida.

— Escolha interessante.

— Vamos logo com isso, por favor.

— Tudo bem, aqui vamos nós.

Então Yuki sentiu aquele pedaço de madeira saindo devagar de sua carne, parecendo que tirava um pedaço de sua alma a cada centímetro movido. Gritou até seus pulmões não terem mais ar e suas forças se esvaírem.

Estava ofegante quando o amigo acabou, mas ainda assim, sentia a carne onde tinha sido furado, ardendo como se tivessem jogado ácido ali.

Gemeu de dor, envergonhado por demonstrar tamanha fraqueza. Não iria se permitir derrubar tão fácil. Como Ibraim disse, estavam tão próximos da vila... podia quase sentir o clima quente do verão de lá. Não iria desistir, tinha que continuar.

Levantou com a ajuda do tronco de uma árvore próxima.

— O que está fazendo? – perguntou Ibraim assustado.

— Preciso chegar à vila. O mais rápido possível.

— Yukiko, seu ombro está sangrando muito, você não pode ver e estamos longe ainda.

— Não temos nada para ajudar na recuperação de meu ombro, distâncias podem ser encurtadas e, se não for pedir muito, gostaria que me guiasse até minha vila.

Ibraim apenas olhou atônito para o outro.

— Algo que eu diga irá lhe convencer que é uma má ideia fazer essa viagem?

— Não.

Ibraim suspirou, sorrindo discretamente, impressionado com a força de vontade de Yukiko Chô.

— Certo, então vamos.

—x-x-x-x-x-

Ibraim estava ofegante, mas não podia se comparar a Yukiko. O garoto estava molhado como se tivesse tomado um banho e parecia estar com falta de ar, mas ignorava qualquer tentativa do homem de parar.

— Yukiko, tenho que parar. Sou velho e estou cansado.

— Você... pode aguen... tar.

— Yukiko, eu tenho que parar – insistiu Ibraim.

— Seu... fraco.

E mesmo assim, desabou no chão. Sua respiração fazendo um chiado enquanto tomava gordas lufadas de ar.

O mais velho sentou-se perto do outro.

— Francamente. Você é muito teimoso.

Mas Yuki não respondeu. Parecia que quanto mais tempo ele passava parado, mais difícil ficava respirar.

— Yukiko, deixe-me fazer um curativo.

— Não, vamos... con... tinuar.

O garoto estava se levantando, mas Ibraim o segurou, sentindo sua pele.

— Você está quente.

— Não...

— Yukiko, deixe-me ver seu ferimento.

— Não...

Mas Ibraim já estava sobre o outro, que não tinha forças para levantar. O homem rasgou as vestes de Yuki para revelar o ferimento: um buraco coberto por uma pasta amarela e fétida, veias vermelhas saíam da ferida, que também estava inchada.

O amigo teve que tampar o nariz para se proteger do cheiro de carne podre que sentiu.

— Isso não é nada bom.

— Eu... estou... bem...

— Não está. Preciso mandar uma mensagem para Quon.

— Quê?

— Escute, eu sei de um homem que pode lhe ajudar, mas vamos ter que parar em algum lugar seguro.

— Não... Tenho que... chegar... à vila...

— Do que adianta chegar se você estiver morto?

Ibraim olhou ao redor e viu uma pequena cabana de taipa abandonada. Pegou Yuki nos braços e o carregou para dentro dela. Era muito simples, sem portas ou janelas, apenas passagens, e o chão de terra com uma mesa empoeirada no centro.

Colocou Yuki apoiado na parede e limpou a mesa como pôde para colocá-lo ali. Então fez seu melhor para limpar o ferimento do amigo com o pouco de água que tinham no cantil.

— Vou tentar contatar Quon, fique aqui.

— Onde... eu... iria?

Ibraim correu para fora e assobiou. Uma pomba pousou à sua frente, com um pequeno rolo de pergaminho amarrado na perna: um mensageiro de Quon. O homem desenrolou o papel e fez um furo no dedo para deixar um ponto vermelho, então amarrou o pergaminho novamente na perna do pombo e o jogou para cima, para que voasse.

Agora era só esperar e torcer que Yukiko tivesse tempo suficiente.