“O comandante observa cada um de nós como se fôssemos sua próxima refeição enquanto passa pela fila formada às pressas. As pessoas ao meu redor abaixam as cabeças, mas o meu olhar está erguido. Ele para em minha frente e cruza os braços atrás das costas, me perfurando com seus olhos sem expressão. Pergunta se sou corajosa ou somente estúpida. Falo que para descobrir basta me escolher.”


Sonhou que voltara a Evion. A brisa fez seus cabelos voarem de encontro ao rosto e ela os amarrou com uma tira de couro, sentindo-se leve e feliz. Os campos verdejantes estavam cobertos por prímulas de todas as cores e pequenas ilhas de margaridas adornavam a grama como pequenos tapetes brancos. Um rouxinol cantava nos arbustos em tom estridente e em algum ponto da floresta um pica-pau trabalhava incessante contra a madeira. A campina entre o vilarejo e a floresta estava cheia de crianças. A pequena Anya estava abaixada na relva não muito distante dela e trançava uma tiara de flores silvestres. Sorriu um sorriso manchado de vermelho pelas amoras que se espalhavam ao seu redor no capim e entregou a tiara para o irmão mais velho. A atenção de Ezra era toda de Lyvlin e quando se aproximou dela havia amor na forma com que a olhava.

– Estamos tão felizes por ter voltado. – disse colocando as flores trançadas em sua cabeça com cuidado – Por que demorou tanto?

– Eu tentei. – retrucou a garota, e subitamente tomou o rosto dele em suas mãos e acariciou as suas bochechas cobertas por sardas, desejou poder contá-las - Queria voltar depois do primeiro passo, desejei que nunca tivesse partido eu... – e parou, incapaz de controlar o nervosismo, sentia-se vulnerável e as bochechas queimavam. O ar se encheu com o riso de Ezra e Lyvlin percebeu como sentira falta dele, o rapaz a beijou ternamente na testa.

– Está tudo bem pequena, eu quase morri de saudades também.

A envolveu em seus braços e Anya formou com seus amigos um círculo ao redor dos dois. As crianças cantavam e dançavam de mãos dadas e riam descalças sobre a grama. Um relincho e o som de cascos chamaram a sua atenção e de repente Flecha irrompeu da floresta, os músculos fortes fazendo com que parecesse flutuar sobre a campina enquanto galopava. Agora Lyvlin também ria e chamou a égua para perto de si. Mas então um segundo cavalo deixou a floresta, o pelo negro reluzindo azulado com o sol da primavera. Reconheceu Darius, mas a cada passada que o garanhão dava ficava mais claro que algo estava terrivelmente errado. Quando chegou perto o bastante soube o motivo e estremeceu, segurou o braço de Ezra com força enquanto o cavalo se aproximava cada vez mais. Porque não era o pelo que brilhava contra o sol, mas carne queimada e enegrecida. Onde antes estiveram olhos selvagens e determinados as órbitas vazias encaravam Lyvlin sobre a crina quase completamente consumida pelo incêndio.

– Está tudo bem – repetiu Ezra ao seu lado, mas a garota se afastou e bateu sem querer em Anya. Quando quis se desculpar a menina sorriu um sorriso vermelho e Lyvlin foi tomada pelo horrível pensamento de que era sangue que manchava os seus pequenos dentes. Tropeçou, fazendo com que a tiara de flores caísse sobre o seu rosto e imediatamente o toque das flores e folhas transformou-se em garras que arranhavam a sua face e se enterravam fundo em sua carne. Lyvlin gritou e pediu ajuda, mas Ezra e sua irmã apenas ficaram em pé diante dela, as suas figuras bloqueando o sol.

– Está tudo bem. – disseram os dois em uníssono – Porque todos nós estamos mortos também.

Acordou de sobressalto, as vestes coladas contra o corpo suado. Encarava o teto encardido de um pequeno aposento, pelas marcas negras nas paredes em algum momento servira de espaço para cozinhar sobre uma fogueira. Agora continha apenas uma cama de palha e um pequeno banco sobre o qual estava uma bacia com água e um pedaço de pano limpo. O coração ainda martelava em seu peito, mas conseguiu de alguma forma sentar-se, o fez lentamente e encarou por algum tempo as espirais de poeira que dançavam na luz que adentrava o cômodo através de uma janela. Tentou lembrar-se de como viera parar ali, em vão. O pesadelo ainda a fazia tremer e repetiu contra as paredes de que era apenas isso que fora, um pesadelo. Ezra e Anya estavam a meio dia de distância e em segurança, a insignificância de Evion os protegeria como os havia entediado por anos. Jogou água contra o rosto e o frio a fez acordar para os problemas que tinha diante de si. Gilbert a deixara para trás, revelando ser alguma espécie de Laoviah para outro deus qualquer. Cerrou os punhos e percebeu que estava sozinha, não havia caminho a seguir. Despiu as vestes suadas e lavou-se o melhor que pôde. Os ferimentos da noite passada não a incomodavam mais, o braço direito estava bom e quando olhou o seu reflexo na bacia viu que os arranhões no rosto estavam sarados. A garota que a encarava de volta era uma estranha para ela, certamente eram os mesmos cabelos ruivos amontoados como um ninho no topo de sua cabeça, mas o violeta de seus olhos estava mais profundo. Ou foi a sua pele que empalidecera? O rosto fino sempre lhe parecera muito comprido e o nariz quebrado em nada ajudava a suavizar os protuberantes ossos das bochechas. Os garotos de Evion costumavam chamá-la de fuinha, o que ela não levava a mal porque lhe dava motivos para bater neles e também porque, como ela ainda pensava, fuinhas não eram nem de longe os piores animais que conhecia. Vestiu a mesma roupa que usara antes, calções de couro e uma camisa de linho que deveria ter duas vezes o seu tamanho. Não encontrou o casaco de peles e ponderou se Casimir e Raoul o teriam guardado para evitar que fugisse, sem um casaco estaria congelando no momento em que pusesse os pés para fora da casa. Era uma tentativa válida se fosse aplicada a qualquer pessoa do sul uma vez que pareciam ser estranhamente sensíveis ao frio, mas no norte se estava contente quando o inverno durava apenas quatro meses. Enfiou os pés nas botas desgastadas e saiu do quarto, a casa parecia silenciosa o bastante e caso se apressasse poderia escapar antes que dessem por sua falta. Quando chegou à sala onde tinham discutido na noite anterior encontrou Raoul sentado no chão, tinha as pernas cruzadas e mantinha os olhos fechados. Lyvlin o observou por algum tempo, nada em sua postura ou aparência denunciava que havia sido ferido gravemente há pouco tempo. Os cachos caíam nos ombros, dourados e limpos como quando o conhecera. Já tinha cruzado metade do cômodo quando abriu os olhos.

– Bom dia. – disse sem fazer qualquer movimento de que tentaria impedi-la – Como se sente?

– Bem. Estava dormindo sentado? - Lyvlin quis saber, se aproximando.

– Estava meditando. – corrigiu-a, achando graça – Não acha que o amanhecer é o momento ideal para se tirar um tempo para a contemplação?

– Não quando há apenas paredes para contemplar.

Raoul riu.

– Você soa como alguém que conheço, mas teremos tempo o suficiente para que possa lhe ensinar a acalmar o corpo e deixar a mente vagar livre.

– Deixar a mente vagar livre é algum costume do sul? - Lyvlin não via utilidade em nada daquilo. Libertar a mente para ela significava deixar velhos fantasmas puxá-la pelos pés.

– É um costume meu. – disse Raoul – Apesar de que encontraria o sul em melhor organização caso fosse um hábito espalhado.

Das janelas entravam os sons costumeiros de uma cidade como Perth. Gritos de homens que conversavam na rua, o ranger das rodas de carroças carregadas com mercadorias sendo levadas para o mercado e os risinhos das moças ao caminho do poço pareciam estranhos aos seus ouvidos, onde estava o luto pelas pessoas que haviam morrido e o silêncio que costumava se instalar em cada viela depois de uma grande catástrofe?

– Esteve dormindo por quatro dias. – o homem adivinhou os seus pensamentos – Me preocupei que os danos tivessem sido maiores do que Casimir quis admitir.

– Ele me atacou.

– Ele a salvou. Estava completamente fora de controle e a magia a estava consumindo. É perigoso quando isso acontece Lyvlin, não pode deixar acontecer novamente.

As palavras não tiveram efeito algum. Agora que se acostumava com a ideia a magia a havia ajudado. Se Casimir não estivesse presente poderia ter derrotado Raoul com facilidade e fugido. O pensamento a agradou.

– Não vejo Casimir. – comentou, olhando através da pequena janela. Um grupo de garotos corria pela rua com paus nas mãos. Fingiam que eram espadas e caçavam o menor do grupo sem piedade. Observou o garotinho ser derrubado e receber pancadas por ser tão lento. Lyvlin não sentiu pena, foi tendo a cabeça segurada contra a lama enquanto recebia os golpes que endurecera. O grupo abriu o círculo e saiu correndo, o garoto que recebera a surra levantou devagar, checou os ferimentos e depois os seguiu gritando insultos. Um pequeno sorriso varreu o rosto de Lyvlin. É exatamente assim que se faz, garoto.

– Casimir foi chamado para Faolmagh.- disse e não revelou nada mais - Espera fugir, Lyvlin?

A sinceridade da pergunta fez a sua atenção voltar para Raoul. As vestes que usava debaixo de seu pesado casaco não eram menos dignas de se olhar e provavelmente deveriam ser ainda mais caras. A túnica negra e ajustada de veludo era adornada com fios de prata nas mangas e próximo ao pescoço e era acompanhada por um cinto de couro, que apesar de parecer discreto tinha sido entalhado com vários desenhos. Quando se levantou, a garota viu que eram dele que pendiam várias pequenas lâminas e duas adagas, uma de cada lado do quadril.

– Fugirei na primeira oportunidade que aparecer diante dos meus olhos.

– Admiro muito a sua impulsividade e comprometimento com a verdade, mas receio que não são a melhor atitude se pretende viver por longos anos. Não por minha causa, é claro. – apressou-se a dizer quando viu o seu olhar sobre as armas - Você diz que fugirá e sei que não conseguirei uma resposta se perguntar para onde, pode até agir sem pensar e ser facilmente tomada pela raiva e frustração, mas não é burra.

– Isso deveria soar como um elogio, eu suponho.

– Deveria – anuiu Raoul e deu um pequeno sorriso – A questão, Lyvlin, é que Casimir acha que você, e aqui uso as palavras dele e não as minhas, não seria estúpida o suficiente para escolher como destino de sua fuga o único lugar que sabe onde a procuraríamos primeiro. Já eu acredito que voltaria para Evion porque seria o único lugar onde se sentiria segura.

– Não sou estúpida.

– E eu disse que não era. E com certeza não colocaria os seus amigos de Evion em risco.

– Falou que jamais machucaria pessoas inocentes. – disse, levando a mão à anca esquerda, mas tocou o vazio. Não achou que o impressionaria com Arcturus, mas ainda se sentiria melhor na companhia da espada.

– Não falo de mim ou de Casimir. – permaneceu em silêncio por um momento ponderando se deveria ou não mencionar que segundo não veria problema em fazê-lo, mas a garota já o sabia – Falo de você. De você e da sua magia. Acha que sempre terá a sorte de estar entre inimigos ao perder o controle?

– Então vocês são o inimigo afinal.

– Olhe para as nossas ações desde o nosso encontro Lyvlin, acha mesmo que são as de pessoas que buscam de alguma forma lhe fazer mal? Ciandail mantém registros sobre todas as pessoas que são conhecidas por terem o dom, ou serem tocadas pela magia para que seja fácil encontrá-las. Não lhe deve ser estranho que todos os magos devem ser treinados para dominar completamente a sua energia e você é prova viva do que acontece quando não são iniciados na Academia logo que os primeiros sinais começam a se manifestar. Eu poderia arrastá-la até Ciandail pelos cabelos, mas os deuses sabem como odiaria fazê-lo. Não gostaria de saber como Casimir consegue moldar a magia como se fosse um ferreiro habilidoso e a energia pura seu metal derretido? Não quer dominar o poder que guarda dentro de si e não viver com medo de usá-lo?

– Não tenho medo. – mentiu.

– Muito bem, espere um momento. – Raoul deixou o aposento com passos apressados. Lyvlin olhou para a porta. Não achava que a chance que procurava apareceria tão rápido, mais seis passos e estaria livre. E para onde iria? O pesadelo ainda se encravava fresco em sua mente e se não sentiu arrependimento ao atingir Raoul o mesmo jamais se aplicaria a Ezra ou Anya. Um baque a trouxe de volta. Sobre a mesa o aço escuro de Arcturus refletia a luz que adentrava pela janela. – É uma boa espada – avaliou segurando seu casaco de peles nas mãos – Não deveria perdê-la de vista de novo ou deixar que a tomem de você. E isso – jogou também o casaco– é para que não passe frio. Agora vá. – ao ver que não se mexia, o repetiu – Vá!

– Não entendo. – disse Lyvlin olhando da mesa para o homem. Pela primeira vez não soube o que fazer.

– Estou dizendo que você deve ir, agora. – Raoul indicava a porta – Não pretendo arrastá-la contra a sua vontade por semanas e ter que dormir com uma adaga na mão para o caso que resolva me apunhalar enquanto durmo. Direi a Casimir e todos os outros que fugiu e se me permitir acrescentarei que teve mais um momento de descontrole para não ferir o meu orgulho. Você tentou salvar a minha vida quando nos esbarramos agora deixe que eu faça o mesmo com a sua liberdade porque é ela que você perderá em Ciandail.

– Eu – começou Lyvlin, sua convicção fora completamente destruída. Sentia-se nua sem a teimosia de fazer sempre o contrário ao que queriam dela, o que ela realmente queria? – Eu não sei o que fazer.

– Não posso tomar a decisão por você, mas posso te dar as opções. Você sai por aquela porta, arranja um cavalo e foge para o mais distante daqui que conseguir antes que descubram e me mandem atrás de você, sinto muito, mas não poderei fazer esta oferta da próxima vez que nos encontrarmos. Ou junta as suas coisas e se prepara para deixar a cidade comigo antes do meio dia. É uma escolha simples.

– Está tentando me manipular, Língua de Prata. – acusou a garota. O sorriso de Raoul desvaneceu um pouco, mas se manteve onde estava.

– Estou conseguindo?

– Não sou uma marionete que dança quando você puxa as cordas. – respondeu e para reforçá-lo avançou sobre a espada, fazendo o sorriso morrer nos lábios do homem.