Marchem! Marchem! Exigem os tambores. Morte! Morte! Gritam os corvos.”

Foi acordada por um serviçal tímido e deixou o quarto depois de lavar o rosto, prender os cabelos em um rabo de cavalo e vestir-se. O criado trouxera em seus braços vestes novas, o que era um indicativo bastante claro que não se adequava aos padrões de Ciandail. Enquanto puxava a túnica azul profunda por cima da cabeça agradeceu por não terem ido longe demais, afinal ainda lhe deram calças de couro gasto o que era suficiente para mantê-la em sua zona de conforto. Ninguém esperaria que aparentasse estar impecável, mas sentiu as olhadelas do rapaz enquanto tentava memorizar todas as curvas e escadas pelas quais passavam.

– Achei que os serviçais do Monte do Rei fossem mais discretos. – comentou tirando os olhos de um vitral que mostrava um dragão atacando a cidadela. Uma pena estarem extintos. Iria adorar cortar os ares sobre asas gigantes e queimar qualquer um que a desagradasse. Começando pelo rei. As asas da bela criatura eram de vidro esmeralda e prenderam os olhos de Lyvlin por alguns momentos.

O serviçal também deveria estar envolvido, porque assumiu a postura de quem havia sido acordado de um sonho bom. Seu nome era Bertie e era tristemente baixo para a idade, espinhas explodiam em suas bochechas e testa o que lhe dava a aparência de estar enfrentando uma alergia permanente ao mundo.

– Eu – eu... É que falam muito sobre a senhora.

– Eu? Senhora? Não. Apenas vim para ser treinada, não há nada senhoril sobre mim.

– Ah... Imagino que sim, senhora. Sendo quem é...

– Se há algo para me dizer fique à vontade, mas no momento não passo de um aprendiz atrasado uma década. – quando viu que não responderia acrescentou – Pensei ter ouvido uma voz cantando ontem à noite, na torre de acomodações.

O rapaz pareceu feliz com a mudança na direção da conversa.

– Era Atyia. Ela é uma sacerdotisa de Tiadelik e uma de suas tarefas consiste em cantar.

– Cantar?

– Encantamentos. Descobriu que cantando sua magia se torna mais poderosa do que apenas falando. Dizem que a sua voz agrada aos deuses e a chamam de Rouxinol. Ela conjura defesas em torno do Monte do Rei e tenta se comunicar com Tiadelik. Mas há meses não obtém respostas.

– Talvez Tiadelik tenha coisas melhores para fazer do que participar de um número musical. – comentou Lyvlin e quando notou que o rapaz não estava mais ao seu lado parou e olhou para trás – Sou uma estranha aqui e ainda é difícil me adaptar aos novos ares. Não quis ofender.

Raoul ficaria orgulhoso.

– Não ofendeu, quero dizer imagine, senhora. Pode falar o que quiser.

– Não se quiser manter a minha cabeça Bertie. Agora me leve para a primeira lição e oremos aos bons deuses que não envolva canto.

Não envolvia canto, no lugar disso foi enfiada em uma masmorra mofada e posta diante de uma vela. A chama dançava alegremente diante dela e a maga que a testaria tinha cabelos compridos e olhos fundos. Se chamava Mala e a odiou quase de imediato. Bertie se esgueirou para fora do aposento cobrindo o nariz para proteger-se da fumaça sufocante de incenso sem lhe desejar boa sorte e depois de dar uma olhada ao redor Lyvlin percebeu que seria uma aula particular. Maravilha.

– Bom dia. – tentou.

– Eu fui obrigada a testá-la para a arte de magia mental, mas só olhando-a já posso dizer que será perca de tempo. – Mala a encarou por trás dos olhos de gato – Sente-se.

– No chão?

– Se conseguir sentar-se na parede senhorita Tessart, me impressionaria.

Sentou-se cruzando as pernas e a olhou para mostrar que estava pronta.

– Não assim! – exclamou indignada – Sentada por cima dos joelhos!

Quis sugerir que a mostrasse, mas duvidava que sujaria a bela túnica branca que a trajava. No lugar disso fez a melhor imitação de Raoul meditando que conseguiu e viu um lampejar surpreso em seu rosto rígido. Pousou a vela diante dela e ordenou que a apagasse.

– NÃO! – gritou quando fez menção de assoprá-la – Com seus pensamentos.

Ah. Claro.

Esforçou-se de verdade. A fagulha tremulava desafiante, quase tão desafiante quanto os olhos de Mala. Já havia feito isso uma vez, sabia que poderia fazer de novo. Concentrou-se. Você não pode me machucar. Disse para a chama solitária e tentou lembrar-se de como se sentira quando estivera cercada por uma muralha de fogo. Em vão. Desejou de todas as maneiras que a vela se apagasse, rogou pragas e foi tomada pela frustração. Mas o fogo continuava ali, a única diferença era que a vela se consumira pela metade.

– Continue. – exigiu Mala que observara todas as suas tentativas em silêncio – Não está se concentrando o suficiente.

– Você deveria estar me ensinando! – Lyvlin levantou-se – Eu não vou ficar aqui o dia inteiro olhando para uma vela!

– Não podemos treiná-la sem conhecer a natureza de sua magia. Seria gastar as energias de todos desnecessariamente. – explicou a mulher – Agora se sente.

Sentou. Não porque se importava em gastar energias desnecessariamente, mas porque se sentia desafiada. Se não conseguisse apagar uma simples vela, como seguiria seu treinamento? Suas sobrancelhas se juntaram cada vez mais com o passar do tempo e quando a vela finalmente foi apagada não foi por comando dela, mas porque a cera havia derretido completamente. Quando viu que Mala pegava uma vela nova quis chorar de frustração e fome. Tentou convencê-la a deixá-la tomar café da manhã, mas obteve apenas um dar de ombros.

– Nas primeiras horas da manhã a nossa mente está completamente desperta, poderá comer assim que terminarmos.

“Terminarmos” levou mais duas velas e quando a maga finalmente a dispensou Lyvlin estava suando.

– Não é comum a magia revelar-se na primeira tentativa. – disse quando Lyvlin se levantou, as pernas agindo como se tivesse passado horas em cima de um formigueiro temperamental.

Não esperava as palavras quase gentis.

– Eu devo ter feito três centenas delas.

– Impaciência não é uma boa característica de um aprendiz. – Mala observava os incensos e Lyvlin soube que caso acendesse mais um não haveria mais ar suficiente para respirar. Não depois das velas – Espero vê-la amanhã. Duas horas mais cedo.

Não discutiu, o estômago já se manifestava tão fortemente que aceitaria qualquer coisa por um pedaço de pão e carne.

Dessa vez teve que se sentar junto aos demais aprendizes. Não apenas aprendizes, porque alguns tinham por volta da sua idade e já deviam ser iniciados. O imenso salão de refeição tinha mesas longas com bancos compridos que embora não estivessem completamente lotados ainda propunham uma plateia razoável para sua entrada. A sensação desconfortável de dezenas de olhos nela fez Lyvlin amarrar o cabelo novamente, apenas para que suas mãos estivessem ocupadas. Sentou-se o mais distante possível de todos e quando Bertie começou a se afastar o agarrou pela manga.

– Para onde você vai?

– Pegar a sua comida. Serviçais não comem aqui.

– Você não pode me deixar aqui sozinha, eles vão me devorar. – falou – Por favor.

– Sinto muito, senhora.

– Se me chamar de senhora novamente terei que puni-lo. – não sabia se aprendizes tinham o direito de punir quem quer que fosse, mas impressionou Bertie o suficiente para que a chamasse pelo nome dali em diante.

O observou se afastar com passos apressados e tentou não olhar para o rosto de mais ninguém. Seus olhos se voltaram para as paredes. Notara que praticamente todos os espaços da academia tinham toques de magia, mas aquele refeitório parecia comum.

Claro, o comum do Monte do Rei provavelmente seria categorizado em “belo” em qualquer outro lugar que conhecia. Imensas janelas faziam a luz jorrar para dentro, fazendo com que se tivesse a impressão de estar comendo ao ar livre. Os grossos pilares que davam estrutura eram, como os portões principais, recheados de inscrições e símbolos. Aparentemente havia uma divisão não oficial entre os ocupantes das mesas. A mais barulhenta tinha apenas aprendizes e iniciados alquimistas, o que era fácil de perceber pelos truques que faziam entre uma mordida e outra. Uma garota havia acabado de fazer orelhas de raposa nascer na cabeça de outra, mas não devia ainda ser muito boa porque o novo par brotou acima das originais. A mesa mais perto de Lyvlin era mortalmente silenciosa e os oito ocupantes não pareciam trocar palavra alguma até um deles levantar a voz e despejar o conteúdo de sua taça no rosto de um colega. Perguntou-se se os seguidores de Sydril poderiam se comunicar mentalmente, como Laoviah fizera com ela.

Bertie não tinha resposta para isso quando voltou com sua comida. Lyvlin engoliu boa parte em questão de segundos. Estava na metade da tigela de mingau quando mordeu a colher que usava. Olhou para o talher vazio, depois para a tigela que um momento atrás continha uma grossa camada de mingau de aveia que era um pouco duro para seu gosto, mas que esperava terminar antes de levantar-se e procurar por Bertie nas redondezas. Certificou-se de que a tigela também estava vazia. Estava tentando superar o desaparecimento do seu pedaço de pão quando alguém atrás dela riu baixinho.

Não era bem um riso, era um risinho.

– Nossas refeições tem horário para terminar novata.

Lyvlin girou para encarar a mulher mais bonita que já vira. Seu cabelo loiro caía sobre os ombros e chegavam até a cintura, emoldurando os brilhantes olhos verdes. Verdes como os campos veronis depois das chuvas que saciavam a sede da terra. Eram os olhos de uma caçadora impecável, o que não passara despercebido por Lyvlin. Era alta e esguia, de porte erguido e orgulhoso. Levou a mão até a boca num gesto contido e puxou o seu vestido longo para fora do caminho para se sentar ao lado de Lyvlin.

– Onde estão minhas maneiras? Meu nome é Atyia. E você é Lyvlin Tessart, certo?

Lyvlin anuiu.

– Eu a ouvi ontem à noite. – comentou e olhou novamente para o prato vazio – Eles realmente não vão devolver a comida?

– Não. Foi a maneira que encontraram de todos estarem em seus devidos lugares no horário certo. – disse Atyia, voltando seus olhos assustadoramente belos para a mesa dos alquimistas que agora transformavam os talheres no que parecia ser ouro líquido – Não funciona sempre. Você gostou?

– As salsichas estavam um pouco queimadas.

Atyia riu novamente e era difícil não se deixar levar pelos mínimos gestos que seu corpo produzia.

– Não, não. Eu estava falando dos meus encantamentos cantados. Espero que não tenham perturbado o seu sono.

– Eu me acostumei depois de um tempo. – Lyvlin mentiu. Por que ela está aqui?

Com uma pontinha de satisfação percebeu que o rouxinol não era acostumado a ser tratado como uma pessoa comum. Atyia piscou seus longos cílios dourados algumas vezes, depois a observou levantar-se e a imitou, o vestido de veludo azul agraciando cada curva que tinha.

– Já iniciou os treinamentos?

– Se você pode chamar um jogo contra uma vela de treino.

Atyia tinha bochechas rosadas, que ficavam proeminentes cada vez que sorria. Lyvlin sentiu uma necessidade urgente de se afastar daquela beleza amedrontadora. Não compreendia o motivo de sua aproximação e se não o compreendia não a queria por perto.

– Ainda fazem isso com os recém-chegados? Eu achei que morreria sufocada naquela masmorra. Quando vai ter a lição em magia verbal?

– Assim que me dispensar de suas perguntas. – Lyvlin fez uma mesura que deveria ser completamente errada e a deixou para trás. Sentiu os olhares da pequena comitiva que cercava Atyia como setas em suas costas e deu de ombros. Pensou ter ouvido risadas e murmúrios quando passou pela mesa dos alquimistas, mas também não parou para confrontá-los. Ou talvez estivessem rindo de Atyia, o que era um pensamento agradável. Não se esqueceria do rosto aberto e gentil sendo cruzado pela indignação e a suave ruborização que tomara conta de sua cabeça.

Contou o que acontecera a Bertie, que não pareceu tão entusiasmado com a história que ela. Lyvlin o deixou guiá-la para fora da Academia e pensou até quando a queriam fazer acreditar que era apenas ele quem a vigiava. Notara desde o início que nunca passavam mais que alguns segundos até encontrarem um mago ou maga que acompanhava a dupla com o olhar, procurando por qualquer sinal de... De quê? Rebelião? Eram pessoas mais velhas, com certeza de formação completa em magia. Se o Conselho tinha tanto medo dela a ponto de fazê-la tropeçar sobre eles a cada momento, que assim fosse. Essa era um jogo que podia jogar sem problemas.

Momentos depois estava sentada em meio a um grupo de crianças que deviam ter a metade de sua idade e tentava pronunciar corretamente o que parecia ser um trava-língua. Sentia o chão frio através das roupas e não conseguia entender como alguém em sã consciência esperava aprender qualquer coisa quando se estava ocupado demais tentando não morrer de tédio. Mas ao menos não envolvia fogo.

Qualquer resquício de bom humor que sobrava acabou quando começou a repetir centenas de vezes o mesmo grupo de palavras e observar crianças de seis anos conseguirem conjurar uma pequena esfera de luz que tremeluzia diante de seus rostos antes de gradativamente se apagar. O ambiente da aula também não ajudava, na verdade a estava fazendo-se sentir uma atração de mau gosto. A lição dada por um mago que a lembrava mais Gilbert do que suportava acontecia nos jardins do Monte do Rei. O ambiente florido e verde que emanava sossego por cada pétala e folha estava enchendo sua paciência. Ouviu uma abelha zumbindo e vez ou outra uma borboleta passava cruzando em sua viagem para a flor seguinte. As crianças (e Lyvlin) estavam sentadas no chão de madeira de um templo aberto, os mosaicos nas paredes mostravam a trajetória de Tiadelik desde o seu nascimento até se tornar o favorito de Maelan. Lyvlin sempre o considerara muito presunçoso e mesmo não tendo irmãos imaginava que demonstrar predileção por um dos filhos não tornava ninguém um bom pai. Mas não o mencionara para o mago que se chamava Alain e que era tão franzino e velho que esperava que fosse levado pela brisa morna que fazia as bandeiras de Vassand tremeluzir no alto das torres.

– Você deve acreditar no que diz. – aconselhara depois de a garota perder a paciência e abanar a esfera do garotinho ao seu lado para longe – Nós que seguimos os ensinamentos de Tiadelik sabemos o poder contido nas palavras.

– Eu sei o poder contido nessas duas palavras: eu desisto. – disse Lyvlin levantando-se.

– Você não pode deixar uma lição pela metade – falou o mestre enquanto a garota tentava não pisar em nenhuma criança enquanto tentava atingir a saída do templo – Essas coisas levam –

– Tempo? - Lyvlin o interrompeu – O quanto você sabe sobre mim “professor”?

– O suficiente para saber que você não desiste facilmente.

– EU NÃO ESTOU DESISTINDO! – gritou a garota, virando-se – Eu apenas estou cansada de fingir fazer parte dessa peça particular de vocês! - e antes que desse por si estava baixando o tom de voz – Por que estão me fazendo passar por essas lições inúteis se sabem muito bem qual é a natureza da minha magia? Estão com medo e esperavam ganhar tempo para resolver o que fazer comigo enquanto me fazem parecer uma idiota nas mais diversas formas?

As crianças pareciam estar tendo o momento de suas vidas, mas Alain franziu as sobrancelhas.

– Não vou permitir que traga bagunça para a minha aula! E se faz mais feliz, não é a única que se desagrada com esta situação. Agora volte para seu lugar e repita o feitiço.

– Beijaria um porco antes de repetir essas baboseiras de novo! – uma pequena comoção se formava ao redor do templo e os olhares curiosos apenas a fizeram inflar-se se raiva – Já que nossos ilustres mestres parecem decididos a me tomar por burra, me digam: o que vocês fazem com aqueles que possuem magia de Vaus?

Por algum tempo ninguém disse nada. Alain estava assumindo todas as variações de vermelho em seu rosto que Lyvlin conhecia, mas finalmente alguém abriu a boca.

– Nós os prendemos! – gritou um garoto que devia ter dez anos.

– Os encarceramos e matamos!

– Matamos! – veio o coro.

A verdade. Ali, diante de seus olhos. Lyvlin quis agradecer e surrá-los ao mesmo tempo. Agradeceu por não ter resgatado Arcturus de seu esconderijo, porque a voz começava a sussurrar em seus ouvidos novamente. Mate-os. Cantarolava tentadora. Mate-os, ou a matarão. A voz era mais agradável do que os insultos que gritavam para ela, melhor do que as tentativas de alguns de acalmar a pequena multidão, mais doce do que a sensação de autocontrole. Tamborilava contra suas têmporas e enchia a sua cabeça, empurrando quaisquer pensamentos para o lado, como ondas.

– Matamos, matamos! – gritavam aqueles que deviam ser seus colegas, que deveriam recebê-la como qualquer outra aprendiz. Que deviam ser seus amigos.

– NÃO MAIS! – urrou Lyvlin e os gritos morreram. Olhos vidrados a observavam de rostos tomados pelo medo. Sim, assim está melhor, não está? Inquiriu a voz, recompensando-a com satisfação. Levantou a mão para afastar os cabelos molhados pelo suor que pregavam contra o seu rosto, quando viu o que emanava de seus dedos quase gritou.

Era como a névoa prateada que Casimir comandara naquela noite que parecia pertencer a outra vida, mas a energia que emanava não era luminosa como as esferas de seus colegas de aula ou prateada como a do linair de Sydril. Era negra como piche e parecia absorver toda a luz que tentava tocar a garota. A abraçava e protegia, mas o mais importante, não a assustava como os olhares acusadores. As pessoas ao redor do templo pareciam ter criado raízes, mas ouviu um murmurinho tomar conta do círculo e viu um garoto sair correndo para dentro dos muros do castelo.

– Então é isso, minha magia. – falou sem emoção e voltou-se para Alain – Orgulhoso?

Foi nesse momento que percebeu que o mago não prestava atenção no que ela estava fazendo, seus lábios moviam-se em frenesi e os olhos estavam cravados nela. Quando se deu conta do que iria fazer a ira explodiu.

– NÃO! – ela gritou e feixes desprenderam-se de seu corpo e caíram sobre Alain – Não! – ela repetiu quando viu seu corpo ser jogado contra um dos pilares.

– Vão embora! – gritou para a magia e bateu nas próprias roupas como se tentasse extinguir chamas, tentou alcançar Alain.

Foi quando a primeira pedra a atingiu no ombro. Depois uma passou zunindo a centímetros de sua orelha direita e quando se virou uma colidiu contra sua sobrancelha.

– Eu não quis isso! – exclamou – Parem ou vão acertar os outros!

As pedras não pararam. No lugar disso melhoraram a pontaria.

– CHEGA! – gritou uma voz e Lyvlin experimentou a mistura de alívio e rancor.

Raoul viera e estava tão resplandecente em suas vestes de guarda real que nenhuma nova pedra foi lançada no ar. Dava ordens para o pequeno grupo de guardas que o seguira até o templo e dois homens abaixaram-se ao lado de Alain que, como a garota constatou aliviada, ainda respirava.

– Como você está? - Raoul estendia uma mão ao seu encontro. A garota nem se lembrava de ter caído.

Afastou a sua mão com uma tapa e ergueu-se sozinha, a paisagem tremulando diante de seus olhos.

– Está sangrando.

– Suponho que sim, graças aos grandes amigos que fiz. – sibilou e a preocupação em sua voz a vez respirar fundo duas vezes antes de recomeçar. Não queria vê-lo se machucando também – Você sabia disso? Sabia que o rei me quer como arma para comandar como bem quiser?

O silêncio falou por si só e Lyvlin cerrou os punhos para se certificar que não usaria magia acidentalmente daquela vez. Raoul não esperava, mas se desviou do murro mesmo assim e a cabeçada no peito se mostrou pior para ela porque cega pelo sangue que escorria do corte em sua sobrancelha e pela raiva não percebeu que usava armadura leve.

Esperava uma repreensão, mas Raoul a afastou e a apoiou com um braço ao redor do ombro.

– Vamos sair daqui. – falou e Lyvlin anuiu porque sabia que choraria se abrisse a boca, ou faria coisa pior.

Os olhares hostis a machucaram quase tanto quanto os cortes e os galos que teria em breve. Mas não a enfraqueciam, pelo contrário.

– Está me levando para a prisão? - perguntou quando estavam alcançando a margem dos jardins. O sol começava a se pôr e nuvens pequenas e numerosas cobriam o céu.

– Neste estado? Não. Esperava levá-la para uma lição com armas e escudos. Imaginei que melhoraria seu humor depois de um dia entre magos.

– Por que não aceitam a verdade e me ensinam como controlá-la? - quis saber, aborrecida com as pulsações que vinham do lugar onde sua cabeça encontrara o aço. Nunca dar cabeçadas em alguém com armadura. Acrescentou à lista das coisas que aprendera naquele dia. E tinham sido todas lições dolorosas.

– Como? Não existem mais mestres que sigam Vaus e aqueles que atuam na beira da lei não são confiáveis e tem seus nomes nas listas de recompensas mais altas do reino. Você é uma situação nova para a qual não estavam preparados. Por todos estes anos depositaram suas esperanças em achar que fosse a linair de Tiadelik. Mas tenha paciência, você não anda lidando exatamente bem com as pressões.

– Eu não lido exatamente bem com me enrolar em fantasias e realidades imaginárias.

– Acho que mestre Alain está sentindo isto agora.

– Acha que está muito machucado? - acha que serei punida? Era a pergunta escondida.

– Machucado o suficiente para te render mais uma sessão com o conselho.

Lyvlin revirou os olhos, ao que Raoul sorriu.

– Você mentiu para mim Raoul. – ela disse e fez o sorriso morrer em seus lábios – Você disse que faria amigos, que seria feliz.

– Não está sendo justa. Eu disse que perderia sua liberdade em Ciandail e dei a você a chance de fugir –

– De ser caçada por rastreadores, você quer dizer. – interveio – Não me disseram o que fazem com seguidores de Vaus quando arrancam a magia deles.

– Isso porque não é conhecido. Seguidores de Vaus costumam ser muito... Inconstantes. Matá-los de imediato é a única maneira de contê-los.

Lyvlin pousou seus olhos na baía dourada. Navios chegavam e deixavam o porto, descarregando todo tipo de especiarias e levando para longe mercadorias que poderiam ser vendidas ou trocadas em lugares distantes. Quis poder viajar a bordo de qualquer um deles naquele momento.

– Apenas mais uma coisa que você esqueceu-se de me contar. Eu o considerava um amigo. – disse, olhando-o – Agora sei que estava enganada. Não me fale de amizade e felicidade em um lugar que me quer por motivos muito diferentes.

– Eu sou um membro da guarda real Lyvlin. Tenho obrigações para com o rei e o reino, para com a minha ordem e princípios. – cruzou os braços atrás das costas e seu olhar também se voltou para o pôr do sol – Às vezes cada uma exige algo diferente e às vezes coisas contrárias. São conflitos que até agora consegui resolver, para melhor ou pior. E se o estou dizendo agora é para que não se esqueça no futuro. Não se esqueça de onde minha lealdade está e como ela me impede de ser mais claro que gostaria com pessoas que tem minha afeição e respeito. Um dia espero ganhar sua confiança de volta.

– Estarei esperando.

Raoul voltou as costas para a baía e anuiu em silêncio. No momento seguinte seus olhos se estreitaram. Lyvlin acompanhou o seu olhar e sua testa se franziu.

– O que é – começou a perguntar, mas Raoul a ignorou.

A mancha estava no céu acima dos muros de Beltring e com uma batida descompassada do coração Lyvlin viu que a imensa nuvem negra estava se aproximando. Era mais rápida do que qualquer nuvem que já vira, quando estava perto o bastante viu que era constituída de centenas de pequenas partes. Corvos. O farfalhar de centenas de asas chegaram aos seus ouvidos como um mau agouro, o crocitar unificado os fez tampar os ouvidos. Raoul soltou o seu braço e disparou em direção à Fortaleza Real.

– Para onde você está indo? - gritou Lyvlin atrás dele.

– Ao rei! – foi a resposta apressada.

Nunca o alcançaria e não estava nem um pouco disposta a ver Osric mais do que era o exigido. A imensa nuvem de aves atingiu a cidadela como uma onda gigantesca e depois sobrevoou a muralha do Monte do Rei em círculos cada vez menores. Quais grandes novidades traziam Lyvlin não queria saber.

Porque duvidava que fossem boas.