“Fadrick não coloca os pés para fora de sua tenda há dias. O acampamento inteiro comenta, mas ninguém dá certeza. O que as pessoas dizem é que recebeu uma carta e o conteúdo dela fez suas mãos calejadas tremerem de uma maneira que a derrubou no chão. Não sei se os boatos são verdade, mas os gritos que o acordam de seus pesadelos fazem calafrios percorrerem minha espinha.”


Andou colocando os pés no chão com cuidado para não pisar em nenhuma ave. Os corvos haviam se acumulado em qualquer superfície que o Monte Real proporcionava. Estavam nos telhados, nos muros, nas passarelas das construções e no chão. Um grupo havia se acomodado na beira de um dos bebedouros para cavalos e grasnou curioso quando Lyvlin passou por ele. A cidadela havia ganhado um tapete de penas gigantesco, que saltitava e gritava em intervalos curtos como uma horda temperamental. Mas Lyvlin não se importava. Queria saber o que cada um dos corvos trazia preso em sua pata e o que a mensagem significava, mas em meio ao caos que a chegada dos animais havia instaurado ela viu uma oportunidade.


Uma oportunidade de ver Ezra antes que o Conselho resolvesse o que fazer com ela. Foi fácil sair dos jardins, os guardas tentavam agora capturar cada uma das aves negras, o que, Lyvlin percebeu com um sorriso, deveria levar dias. Encontrou o arbusto no qual escondera Arcturus no dia anterior e sentiu-se imediatamente melhor ao fechar sua mão sobre o cabo da espada negra. Refletia o vermelho e laranja do pôr do sol de uma forma tão hipnotizante que teve que se concentrar para devolvê-la a bainha que carregara fazia durante todo o tempo, ansiosa por um momento em que pudesse recuperá-la. O deslizar da espada contra a bainha a fez pensar que o dia não havia sido uma perda total. Fez uma pausa ao passar pela fonte que borbulhava na entrada da cidadela e empurrou alguns corvos para o lado para poder jogar água em seu rosto e nuca. O corte acima do rosto ainda sangrava, o que a fez aproveitar a desculpa de proteger os olhos contra a luminosidade que banhava diretamente a descida até Beltring para pressionar o antebraço contra o ferimento. Se tivesse sorte e encontrasse Ezra ele não precisaria ver como passara o primeiro dia de treinamento. O faria ter ideias estúpidas.

Uma vez que deixara a confusão penosa e grasnante para trás teve medo de não encontrar o caminho para as docas novamente. As construções de Beltring refletiam as cores do firmamento, brilhando como pedras derretidas contra o sol e para ela todas pareciam iguais. À medida que descia até o coração da cidade as coisas ficavam mais calmas. Comerciantes arrumavam suas mercadorias com a aproximação do fim de mais um dia de trabalho, crianças corriam de volta para suas casas e mulheres carregavam água dos poços para cozinharem o jantar. Tentou imitar o caminho que haviam feito na direção contrária no dia anterior, mas com a noite aproximando-se cada vez mais Beltring lhe pareceu estranha. Por fim decidiu que seguiria em linha razoavelmente reta até a baía e isso lhe deveria levar onde o Ligeiro estava aportado. As gaivotas gritavam no céu vermelho e o vento que adentrava a baía carregava sal do oceano e bagunçava seus cabelos. O que talvez fora o motivo da aproximação.

– Não tem um lugar para passar a noite graçinha? - veio de um grupo de marujos que dissecavam peixes. Jogavam as vísceras no mar, causando um alvoroço entre as aves que lutavam pelo banquete. Algumas partes nem ao menos atingiam a água.

– Pode dormir em minha rede se quiser! – a sugestão foi acompanhada de gargalhadas aprovadoras – Eu arranjaria uma forma de curar as suas feridas e causar algumas outras.

– E eu arranjaria uma forma de impedi-lo, de uma forma ou de outra. – Lyvlin os encarou e os sorrisos murcharam – Onde está o Ligeiro?

– E o que uma coisinha bonitinha como você poderia querer com o velho Mirek?

– Sim, venha para o Sereia Vesga conosco e terá a melhor noite de sua vida!

– Ou a pior Jill, esqueceu que está proibido de pisar lá pelas próximas semanas?

– Aquele maldito taberneiro, não sabe o que é diversão de verdade.

Cruzou os braços, tentando se lembrar que não deviam ser más pessoas. Eram estúpidos, ignorantes e mal-educados, mas provavelmente não mereciam ser alvo de sua magia. Já tive o suficiente dela por hoje.

– Então sabem onde o Ligeiro está atracado ou não?

Eles sabiam. Lyvlin agradeceu e como havia passado por um dia difícil ignorou os comentários que a seguiram, se arranjasse problemas no porto de Beltring provavelmente iria direto para a prisão. Levaria dias até Raoul encontrá-la, caso os corvos não tivessem trazido notícias ruins em uma maneira que tomaria toda sua atenção. Não. Sua visita a Ezra teria que ser rápida e discreta. Enquanto descia a rua do cais manteve as orelhas bem abertas, mas só ouvia conversas entre capitães esbravejando sobre quais águas explorariam a seguir. Uma quantidade razoável deveria servir de codinome para outras coisas pensou a garota com as bochechas enrubescendo diante da narração de um comandante de meia idade que a essa hora já estava bêbado como um gambá. Envolvia uma sacerdotisa, um monte de feno e uma lua cheia e era mais que esperava ouvir sobre o que casais faziam quando estavam a sós. Homens. Resmungou revirando os olhos enquanto as risadas dos companheiros ainda soavam em seus ouvidos. Sempre agindo como idiotas. Por todos os lados mercadorias eram carregadas até os navios aportados. Havia uma fragata de Rattra, que era fácil de identificar pelos ricos tecidos que os supervisores usavam, que chamou a atenção de Lyvlin. A madeira da qual fora esculpida era escura e delicada, ao mesmo tempo em que seus mastros pareciam fortes o suficiente para aguentar qualquer tempestade. Suas duas velas mostravam um imponente falcão dourado e eram negras como breu, o que tornava a embarcação diferente de qualquer outro navio nos arredores. Lyvlin olhou sua bandeira tremular e parou por algum tempo para observar o vai e vem dos marujos. Sabia que Raoul e Dechtere eram rattrianos, mas nenhum dos dois tinha a tez dos orgulhosos nortenhos. Estes homens tinham, suas peles eram do tom mais profundo de moreno que Lyvlin já vira e parecia uma criança observando algo inédito até um deles soltar a caixa que carregava e olhá-la com olhos inquisitivos.

– Rattrianos. – falou Mirek mais tarde, depois de tê-la convidado a bordo do Ligeiro - Eles pensam que tem o reino no bolso das calças. Rico ou pobre, criança ou ancião, você não vai encontrar pessoas mais orgulhosas na sua vida. Não sem motivo, é claro.

– É a região mais rica do reino, não é? - Lyvlin falaria qualquer coisa para calar as perguntas sobre seus machucados. Mirek gritara em agonia e quase arrancara a sua cabeça quando tentara dar uma olhada melhor no corte em sua testa.

O homem bufou. Era um mercador que vez ou outra realizava algum trabalho para a coroa, recebendo um abono nos impostos sobre suas mercadorias. O fazia há décadas, se suas palavras eram inteiramente confiáveis e deveria ser um dos homens mais ricos de Beltring. Não que parecesse, com sua pele de urso cobrindo os ombros e jeito rude. Contara que deixava todo o ouro que ganhava com sua mulher e filhos que viviam em algum lugar entre os montes de Alterf, numa casa que não denunciava a sua riqueza. “É bom para manter os lobos longe” dissera em uma das noites que passaram a bordo do Ligeiro, oferecendo mais um gole de cerveja que Lyvlin sempre recusara. Era bom vê-lo inteiro depois do episódio com Giles.

– Costumava ser. Nos últimos tempos todo o dinheiro da mineração vai para reconstrução e não apenas de Adrahasis. Nossos compatriotas estão carregando montes e mais montes de pedras preciosas, ouro e prata para Ciandail em suas mulas de carga especialmente vistosas. É isto que o Turmalina está trazendo em seus porões.

– Parece um ato generoso. – Lyvlin observou o céu que tornava-se mais escuro. Em pouco tempo o sol desapareceria no horizonte da baía Dourada. Devo me apressar. Lembrou-se, tentando conter a curiosidade. Adoraria ouvir todas as histórias que Mirek tinha para contar sobre Rattra.

– Generosidade que não é unânime entre todos os nortenhos, disso você pode ter certeza. O rei se preocupa tanto com Kerdis, Wodan e Namtar, mas se me perguntassem é sobre Rattra que precisamos manter um bom olho. É de lá que a tempestade virá.

Lyvlin duvidava disto. Achava que o Conselho deveria saber mais que pessoas comuns que viajam de um canto do reino a outro, que nunca passavam pela corte ou sequer pisaram na sala do trono. Naquele tempo, claro, não conhecera nenhum espião.

– Mirek. – ela disse, tentando voltar ao motivo da visita – Eu preciso achar Ezra.

– O ruivo. Sim, ele não deveria ser muito difícil de achar. – disse o capitão, virou-se para o lado e gritou ordens a Cador. De repente lembrou-se de acrescentar algo – Ele não está aqui.

– Onde ele está?

– Você sabe, eu gostei dele. O máximo que posso gostar de alguém que matou Desmera.

– Mirek...

– Ah, ele está bem! – apressou-se a dizer, com um riso ribombando no fundo de sua garganta – Disse para mim que queria ficar por um tempo e então expliquei que não poderia ficar conosco, partimos para o Ferrão em dois dias. O apontei para uma família que cuida de um pequeno negócio perto do mercado da Primavera. Vendem todo tipo de coisa, tudo dentro da lei. Não tenho preconceito com minhas amizades, mas imaginei que não o queria em qualquer lugar.

– Obrigada. – Tentaria convencer Ezra a voltar para Faomagh, mas Mirek tirara um peso de seus ombros ao deixá-lo a salvo.

O mercado da Primavera era um dos maiores mercados de Beltring e recebia este nome por ficar em uma das partes mais bonitas da cidade. Claro, não se comparava às construções das famílias mais prósperas do reino que se amontoavam mais próximas a cidadela, mas tinha canteiros de flores e um simpático poço recoberto por heras que imediatamente fizeram Lyvlin gostar do lugar. Era um bom lugar. Um lugar onde Ezra estava vivendo há menos de dois dias e que a fazia achar que não o vira há anos. Quando o viu surgindo da parte de trás de uma das casas que se imprensavam umas contra as outras teve vontade de abraçá-lo.

– Você poderia ao menos andar vestido. – disse no lugar, cruzando os braços.

– Isso? - Ezra desceu o olhar sobre o torso desnudo – Está quente demais. Não entendo como as pessoas conseguem usar capas e casacos com o sol queimando suas cabeças. – soltou os baldes que levaria para o poço e a abraçou – É bom vê-la quase inteira.

Lyvlin enfiou o cotovelo em sua barriga e fez uma careta.

– Está suado. – e antes que pudesse falar qualquer coisa sobre seu estado acrescentou – Primeiro dia de treinamento.

– Achei que testariam apenas sua magia.

– É, eu também. – indicou o balde – Precisa de ajuda com isso?

– Se insiste. – presenteou-lhe com um de seus sorrisos contagiosos e empurrou um dos baldes em seus braços.

Ele estava bem. A distância do Ligeiro lhe devolvera o sorriso e relaxara seus músculos, por mais que nunca admitiria. Caminharam até o poço onde Ezra se pôs a trabalhar.

– Converse comigo Lyvlin. – falou entre uma puxada e outra – Não achei que me visitaria tão cedo e só posso imaginar que as coisas ou estão indo muito bem ou mal demais. – quando não respondeu parou e a olhou – Mal demais?

Era o único estímulo que precisava para contar tudo. Contou da audiência com o rei, do Conselho, de Firdos e do dia de treinamento. Sobre o que os conselheiros temiam e o rei ansiava que ela fosse e o que isto significaria para o futuro. Ezra ouviu tudo em quase completo silêncio, parando aqui e ali para fazer algumas perguntas e depois mergulhando em seus próprios pensamentos.

– Eles jogaram pedras em você?- perguntou quando atingiu o final da história.

– Eles estavam aterrorizados, eu acho. Eu quase matei o professor.

– Mas ele vai sobreviver, não é? - Ezra pousou o quarto balde diante de seus pés, o trabalho estava quase feito – Lyvlin, há algo errado aqui.

– Eu sei. – mordeu os lábios e pegou dois baldes. Chegavam a seus joelhos e eram mais pesados que esperava, mas conseguiu seguir Ezra com certa dignidade – Mas é minha única chance Ezra.

– Eu não gosto disso, mas deve ser verdade. Não podemos fugir se você corre o risco de matar alguém cada vez que fica furiosa. Ainda mais se levarmos em conta a frequência em que isto acontece.

Deu uma risada diante do xingamento que escapou os lábios da garota e Lyvlin não pôde deixar de se admirar, o fazia todas as vezes. Os seus pensamentos e os de Ezra costumavam ser os mesmos.

– Mas não estava falando apenas do que acontece no Monte do Rei. – corrigiu, assumindo uma expressão séria – As pessoas que me cedem um quarto são ótimas, trabalham o dia inteiro para pôr algo na mesa para os pequenos e são gentis com todos que encontram...

– Mas?

Ezra se assegurou que ninguém estivesse por perto, o que foi difícil porque as ruas já estavam quase que completamente engolidas pela noite. Empurrou Lyvlin para dentro do pequeno estábulo que se erguia na parte de trás da casa e só voltou a falar quando despejava água em grandes bacias de madeira para os animais beberem.

– O problema não são eles. Mas sempre que tento falar sobre o assunto desconversam ou negam, o que quero dizer é que todos em Beltring parecem odiá-los.

– Talvez não sejam tão legais como você acha. –Ezra tinha o hábito terrível de ver o melhor nas pessoas e ser muito bom nisso. Lyvlin começou a se perguntar se Mirek não havia se equivocado com os amigos – Talvez devam dinheiro a alguém, ou o bisavô se envolveu em algum escândalo, as pessoas tem boa memória para isso. O que você está sugerindo?

– Eu não sei Lyvlin – acariciou o pescoço de uma égua malhada, mas sua voz estava pesada de preocupação. Não gostou disso. Imaginava ser a maior fonte de preocupação de Ezra e com isto poderia lidar, de certa forma. Vê-lo mergulhado em inquietação por completos estranhos era tão novo que não sabia como agir.

– Qual o nome deles? Talvez consiga descobrir algo.

A olhadela e hesitação a irritaram.

– Ezra, você acha que colocaria em perigo pessoas que estão lhe dando um teto para morar?

– Não conscientemente. Raoul é confiável, mas você não deveria pôr sua mão no fogo por mais ninguém lá de cima.

Não ponho, disso pode ter certeza.

– Liridon é o nome. – disse a contragosto - Tenha cuidado, os guardas os encaram como se quisessem voar em suas gargantas e mal conseguissem conter o impulso.

Lyvlin afundou seus dedos na crina da égua. A baía era grande e o estábulo estava ocupado por apenas três cavalos. Lembrou-se de Flecha e como Ezra não a havia mencionado desde que se reencontraram. Também por isso se sentia agradecida.

– Deveria voltar para o Monte do Rei. – disse sem entusiasmo – Saber quais as novas que os corvos trouxeram e qual será minha punição.

– Estou curioso. – Ezra a acompanhou para fora do estábulo – Sobre as mensagens, não sua punição. O céu inteiro ficou escuro e crianças choravam, um mendigo começou a gritar sobre o fim do mundo e por alguns momentos acreditei que fosse mesmo.

– Devem ser simples correspondências de guerra.

– Só você para dizer algo assim com tanta leveza.

Lyvlin deu de ombros.

– É o que reinos fazem.

– Sim, gostaria que não fosse este o ciclo que move as regiões.

– São pensamentos bons Ezra, mas que não servem para muita coisa. – atingiam novamente a praça do mercado, o céu se tingia de um azul profundo como tinta na qual o rei mergulhara sua pena para preencher os pergaminhos, pergaminhos que também deviam trazer palavras de guerra – Você deseja paz, eu, liberdade. Nós dois ansiávamos por uma aventura não muito pouco tempo atrás, é essa a aventura que esperávamos ter? As tardes deitadas debaixo da sombra do grande carvalho parecem tão longe agora, como o futuro cheio de perigos que tecíamos.

– Você apenas reclama porque não tem a situação em suas mãos. – disse Ezra e mesmo sabendo que era verdade não deixou de doer. Talvez doesse exatamente por isto – Você não vai ser aprendiz para sempre Lyvlin, tenha paciência.

– E mesmo se sobreviver até ser uma maga Ezra... O rei não vai me deixar escapar entre seus dedos tão facilmente.

– Então é melhor que você seja uma boa maga, forte o suficiente para não deixar outros decidirem sua vida.

Ficou em silêncio e observou a praça, que se tornara completamente vazia.

– Como minha mãe. – sussurrou por fim.

– Como sua mãe. – concordou Ezra e apertou sua mão – Você já convenceu uma pessoa, agora só precisa mostrá-lo para o resto do reino.

– Mais fácil dito que feito. – respondeu e um pequeno sorriso tocou seus lábios – Se não aparecer nos próximos dias não invada a cidadela, os deuses sabem como não tenho mais direito a favores.

– Eu sou a metade que nunca se mete em problemas. – disse com o início de uma risada, mas depois se lembrou – Ou que tenta não fazê-los para que você tenha que consertar tudo depois.

–Desmera está bem. – assegurou Lyvlin – E não o culpa por nada, você sabe disso.

– Sim, sorte minha ter matado a melhor pessoa do grupo, não é? Adisa teria me posto em chamas na primeira respiração que desse depois da sua – parou procurando a palavra certa – intervenção.

– Teria mesmo. – quis ficar, mas sabia que cada momento a mais que passava com Ezra seria cobrado pelo Conselho mais tarde. Tinha uma última coisa para perguntar – Essa família que o acolheu...

O humor começou a brilhar nos olhos de Ezra, mesmo com a penumbra dos lampiões nas ruas.

– Sim?

– Quantos são? - disse por fim, arrependendo-se na mesma hora. Ezra não deixaria algo assim passar despercebido.

E não deixou mesmo.

– Os pais, uma avó, três filhos pequenos...

– Três filhos?

– Eu disse filhos? Na verdade dois meninos e uma garota. – ali estava novamente, o sorriso reservado para momentos como este. Que a fazia querer dar um soco em seu rosto ou admirá-lo. Ou os dois ao mesmo tempo.

– E todos pequenos, realmente pequenos?

– Se há algo que queira perguntar, Lyvlin, tem que fazer a pergunta certa.

– Estou apenas preocupada com o fato de você estar andando desnudo pelos lugares, pode ser alvo de perseguições. Um aviso amigável é claro. – acrescentou e bufou de raiva – Pare de me olhar assim! É uma questão séria.

– Muito séria mesmo. – Ezra escondeu o riso – Mas suas preocupações são infundadas, Gisa é perfeitamente gentil e inofensiva. Na maioria das vezes.

– Gisa?!

O rapaz gargalhou e virou-lhe as costas, acenando um adeus em um andar preguiçoso.

Lyvlin mordeu a língua para não gritar algum insulto. No lugar disso mostrou a língua para as costas de Ezra e se pôs a fazer o caminho da volta.

Era mais difícil que o percurso que fizera algumas horas antes. Não pelo caminho em si, do mercado da Primavera serpenteava uma larga rua até o Morro do Rei, mas por causa da subida íngreme. Arquejava depois de alguns momentos, xingando o calçamento de pedra e quem teve a ideia de construir a sede do governo ali. Sabia que era tolice, porque não havia posição mais defensiva que esta. A baía poderia ser fechada a qualquer momento pelas torres que guardavam sua entrada, duas construções escuras de pedra que apontavam para o céu estrelado como flechas. Um ataque vindo por mar não passaria delas, pois uma corrente pesada e grossa seria estendida entre as duas, barrando qualquer navio que quisesse alcançar a baía Dourada. E a defesa de qualquer lugar é mais bem feita do alto, isso até criancinhas brincando de castelos e cavaleiros sabiam. A cada passada Lyvlin se arrependia por não ter trazido uma capa, pois uma vez que o sol desaparecia no horizonte Beltring parecia soltar qualquer indício de calor por cada pedra do calçamento, casa ou árvore.

Ao menos não encontrou qualquer guarda até atingir o Monte do Rei. A ponte ainda não fora içada, o que a fez suspirar de alívio. Talvez conseguisse se esgueirar para a Academia e fingir que estava dormindo. Ninguém teria mandado procurar por ela na confusão de corvos por todo lado. Foi uma dessas aves que pousou em seu ombro sem aviso e grasnou em seu ouvido de uma maneira que fez o grito morrer em sua garganta. Tentou afastá-la com a mão, mas a ave saltitou para o lado e cravou o bico em sua pele. Dessa vez xingou sem se conter e estava tentando empurrá-la para longe com as duas mãos quando começou a falar.

– Divirta-se. – grasnou e inclinou a cabeça para um dos lados, bicando seus ombros até o tecido ceder.

– O quê?

O animal parou e a encarou.

– Divirta-se – crocitou, deu dois pulinhos para a lateral e enfiou o bico com tanta força em sua pele que a fez gritar.

– Divirta-se – repetiu, estalando a bico e alçando voo – Divirta-se enquanto pode.

Lyvlin levou a mão ao ombro e encontrou sangue. Perfeito. Até onde sabia corvos não deveriam falar, mas da última vez que checara nada costumava ser muito anormal em sua vida de qualquer forma. Cuidaria do ferimento depois, antes teria que encontrar uma maneira de entrar na Academia. Corvos ainda pululavam de um canto da grande praça da cidadela para a outra e Lyvlin segurou Arcturus, jurando que cortaria a próxima ave que quisesse comê-la ao meio. Guardas ainda caminhavam de um lugar para o outro, tentando capturar os corvos que faltavam. Pajens e alguns serviçais também haviam se juntado ao trabalho, o que deu a Lyvlin a oportunidade de alcançar as escadarias sem ser notada por ninguém em especial.

– Veja quem deu as caras. – anunciou Adisa, vindo ao seu encontro – Alguns achavam que estávamos livres de você para sempre.

Havia pessoas piores que podiam encontrá-la, por isso sorriu.

– Não gosto de corvos. Precisei criar alguma distância entre mim e eles, mas vejo que o problema ainda não foi resolvido.

Adisa observou um pajem correr atrás de uma ave especialmente veloz, que parecia se divertir com a perseguição e deu de ombros.

– Não me deixaram tostá-los. Imagino que as mensagens que trazem amarradas às pernas são importantes, mas pela quantidade centenas delas devem ser repetidas. Não faria mal. – depois se lembrou de sua presença - Devo deixá-la saber que você é motivo de uma reunião extraordinária do Conselho, parabéns. Só o consegui depois de uma semana.

– Mestre Alain está bem?

– Quem? Ah, imagino que esteja. É um porco cheio de preconceitos de qualquer forma, não seria uma grande perda. – comentou com pouco interesse, depois a olhou – O que é isso em seu ombro?

– Um desses bichos me atacou. – falou em tom defensivo e o deixou examinar o ferimento pelos fiapos de roupa que o corvo partira.

Quando Adisa tocou o machucado seu semblante ficou sombrio e afastou os dedos segundos depois como se tivesse tocado água fervente. Seus lábios formaram uma palavra que não conhecia, algo que se aproximava ao que ouvira Raoul dizer na noite em que lutara contra os nirnailas. Quando quis saber o que significava no lugar de algo elaborado e poético rattriano respondeu um simples “merda”.

– O que ela disse? - respondeu por fim.

– O quê?

– Não aja tão estúpido como eu acho que é Lyvlin. – cortou-a e apontou para o ferimento em seu ombro – O que a ave disse?

– Então corvos falam? - não sabia quantas vezes alguém poderia ficar aliviado em um dia, mas estava próximo do limite, tinha certeza. Adisa revirou os olhos e pousou a mão em suas costas, guiando-a para dentro da construção.

– Não todos, mas este falou, não foi?

– Bem, sim.

– A reunião do Conselho acaba de ficar ainda mais interessante. – Adisa falou mais para se mesmo que pra ela – Uma pena ter incendiado o vestido de Dechtere daquela vez.

Passaram pelo Corredor da Verdade e as paredes pareciam em chamas quando passavam. Chamas que eram engolidas por uma escuridão devastadora. Falou apenas quando alcançaram o salão das Mil Cores que mergulhado na noite não parecia tão alegre e acolhedor como na primeira vez que o vira.

– O corvo disse que deveria me divertir enquanto posso.

Adisa pensou um pouco sobre as palavras.

– Um conselho válido, imagino. E uma ameaça velada. Acredito que não terás tempos tediosos adiante. – caminharam em silêncio até a entrada do Salão Esmeralda e Adisa a empurrou para dentro – Apenas não ateie fogo em ninguém e acabará bem, eu prometo. – sussurrou e com uma piscadela fechou o portão atrás da garota.

Cena não estava lá. Foi a primeira coisa que notou e não gostou da novidade. Urobe estava com uma das mãos enfiada na comprida barba e a convidou para se aproximar com um pequeno sorriso. Dechtere e Breuse ocupavam seus assentos na comprida mesa escura e não lhe deram mais atenção que dariam a uma mosca. A mulher ao menos voltou o olhar para ela quando se aproximou, um olhar gélido que denunciava o tamanho do problema em que tinha se metido, mas Breuse não se mexeu o que fez Lyvlin imaginar se não estaria dormindo novamente.

Cruzou os braços atrás das costas e encarou os conselheiros o mais confiante que podia parecer.

– Boa noite.

– Boa noite? - Dechtere a fuzilou, as luzes esverdeadas jogando sombras em seu rosto – Ataca um dos mestres no primeiro dia de treinamento, foge por horas e depois volta desejando uma boa noite?

– Educação. – disse Lyvlin e viu a expressão de Urobe se suavizar – E eu não fugi, fugir inclui não voltar e estou aqui, não estou?

– Totalmente apresentável como vejo. – Dechtere lhe lançou um último olhar e pareceu decidir que não era digna de sua atenção.

– Nos deixou muito preocupados Lyvlin. – começou Urobe – As mensagens dos corvos não foram boas e com o seu desaparecimento depois do que aconteceu com mestre Alain nos deixou alarmados.

– Apenas dei um pequeno passeio.

Breuse deu um ronco especialmente alto e se sacudiu, acordando.

– Uma fedelha encrenqueira, isto é o que ela é!

– Foi apenas um passeio. – repetiu – E o que aconteceu hoje é tão minha culpa quanto de vocês.

– Como ousa... ?

– Dechtere, ela tem razão. – o velho pediu para Lyvlin sentar – Agimos mal diante da sua vinda Lyvlin, não sabíamos como resolver o assunto da sua magia. E por tudo isso peço desculpas. Acho que estávamos tão assustados como você quando viu seu dom se manifestando pela primeira vez tão abertamente.

– Não estava assustada, estava com raiva.

– Sim e é ela que você deve conseguir controlar se busca ser a mestre de sua magia e não o contrário. Não vai ter que fazer isto sozinha, é claro, o que nos leva a apresentação que precisamos fazer esta noite. – parecia cansado e mais velho que de costume. Lyvlin achou que deveria saber a verdade.

– O corvo – o interrompeu – Não o corvo, na verdade um dos corvos. Bem, não importa. Um deles me atacou. Aqui – levantou-se e mostrou o ferimento – Bem, ele também disse algumas coisas.

Dechtere levantou-se tão rapidamente que Lyvlin sobressaltou-se. Segurou o seu braço e trouxe mais para perto de si, olhando o ferimento por longos segundos. Depois manteve uma distância entra a mão dela e o ferimento no ombro de Lyvlin e fechou os olhos.

– Urobe. – começou, a testa se franzindo. Breuse ergueu-se e tamborilou até a garota, deixando-a mais alarmada do que com reação de Dechtere. Qualquer coisa que era importante o suficiente para fazer Breuse se levantar de seu assento era algo com o que Lyvlin não queria lidar.

– Não, não depois de tantos anos.

– Faria sentido, não é? - murmurou Dechtere e Lyvlin viu sua pele começar a brilhar. A mulher intensificou o aperto, mas foi a mão de Urobe em seu ombro sadio que a acalmou. O sangue e sujeira desapareciam, deixando apenas os riscos dos cortes que a ave fizera em sua carne. Lyvlin torceu o pescoço tanto quanto podia, mas ainda não conseguia ver todo o desenho. Sim, o que aparecia cada vez mais escuro de encontro à magia de cura da conselheira não eram riscos aleatórios. Formava alguma espécie de símbolo que não conseguia ver por inteiro, mas quando Dechtere terminou o trabalho ainda não sumira.

– Ainda não terminou – disse Lyvlin quando a mulher começou a se afastar – Tem ainda um traço de magia neles, olhe...

– É magia. – confirmou Dechtere mais séria que jamais a vira – Mas não é minha.

Lyvlin a encarou, depois voltou os olhos para o que conseguia ver do símbolo que tinha a aparência de ter sido feito a ferro e fogo. E como a fumaça que subia depois que um cavalo era marcado como propriedade de alguém uma neblina negra dançava sobre as linhas escuras.

– O que nós temos aqui? - soou uma voz estranha atrás de Lyvlin – o Arauto.

Era um homem de estatura mediana com cabelos loiros que lhe batiam na cintura, desgrenhados como se tivesse passado o dia sobre um cavalo. Usava uma capa longa e um capuz que descobriu quando a garota se virou para encará-lo. Fez o gesto com um sorriso displicente no rosto e Lyvlin lembrou-se de um dos homens que assistira à execução daquele rapaz tantos anos antes. Era um sorriso cruel, um sorriso de alguém que sabe que a vida do outro está arruinada e se diverte com isto.

– Uma marca de Vaus. – disse, os olhos claros brilhando de excitação – Fizeram bem em me chamar.

– O que significa? - Lyvlin quis saber, olhando do recém-chegado para os conselheiros e deles para o símbolo.

– Um símbolo antigo que marcava os inimigos do deus. – Urobe respondeu à pergunta mais fácil, ignorando a explicação que a garota queria sobre a presença do estranho.

– Não qualquer inimigo. – corrigiu o homem, lambendo o indicador e o pousando sobre o símbolo – Sim, um Arauto legítimo. Vaus apenas os enviava àqueles que queria matar em pessoa. Grandes heróis caíram em semanas de desespero depois de receber uma carta com um destes e para marcá-lo em sua pele, jogando tão aberto... Realmente fabuloso.

Lyvlin levantou-se e se afastou, ajeitando a camisa.

– Não há nada de fabuloso nisso! – sibilou, sentindo o mundo começar a girar ao seu redor. Mordeu os lábios para sentir dor, a dor a manteria desperta.

– Lyvlin, isso apenas confirma os nossos temores. Você é a linair de Vaus. – disse Urobe como se a condenasse à morte – Não haverá nada que o deterá de alcançá-la.

– Exceto eu. – o recém-chegado deu alguns passos em sua direção, o sorriso nauseante estampado no rosto. Tinha uma cicatriz que atravessava o rosto de cima a baixo no lado esquerdo, mas que de alguma forma não ferira o olho que brilhava tão maldosamente quanto o direito.

A garota se afastou, puxando Arcturus da bainha. Manteve a espada em riste, diretamente apontada para o estranho.

– Quem é você? - exigiu saber, as luzes emitidas pelas esmeraldas se espelhavam no chão escuro como labaredas agitadas.

– Branor. – respondeu o homem – E abaixe essa espada, é bonita, uma ameaça tão grande quanto você. Mas não neste salão.

– Não o anunciamos como devíamos – disse Urobe e depois acrescentou para Lyvlin – É a melhor solução criança, abaixe essa espada.

– Quem é ele? - repetiu Lyvlin, não movendo Arcturus em um centímetro. Sentiu sua voz tremer e suor brotar em sua testa. O sorriso de Branor se alargou e a distância entre os dois diminuía.

– QUEM É VOCÊ?- rugiu e sua magia emergiu de dentro dela como cães de caça sendo atiçados contra uma raposa. Era maior que a onda de energia que conjurara sem querer contra Alain e disparou em direção a Branor numa onda de pressão que fez o piso negro ser coberto por pequenas rachaduras. Esperou que o homem fosse levantado no ar e jogado contra as paredes esverdeadas, mas no lugar disso anda aconteceu. Branor permaneceu de pé, encarando Lyvlin com um pouco mais de curiosidade que antes.

– Muito bom mesmo que tenham me chamado. – foi a única coisa que disse.

Lyvlin sentiu as palavras morrerem em sua garganta. Foi tomada pelo medo e tentou afastar-se ainda mais, mas atrás dela só havia pedra fria. Estava encurralada.

– Nada além do que combinamos Branor – advertiu Urobe e olhou para Dechtere, mas sua expressão estava impassível.

Branor a alcançara e se abaixou ao seu lado, Lyvlin nem ao menos percebera que tinha se encolhido. Afastou os cabelos de seu ouvido direito e sussurrou:

– Deveria saber que magia não funciona contra mim. Magos de verdade costumam saber de longe, sentem que há algo errado. Mas você não, o que é realmente um desperdício. Ao menos tentou lutar, mostrou resistência. A maioria apenas cai de joelhos e chora. Você se encolhe, mas ainda não largou a espada. Eu gosto de você, Lyvlin Tessart.

– Não poderia me importar menos. – sussurrou de volta – Pretende fazer algo ou ficar falando até que eu caia no sono?

Branor abriu a boca, mas foi arrancado do lado de Lyvlin e no lugar dele surgiu Dechtere. Alta e imponente.

– Não ache que somos inofensivos por nossa magia não funcionar em você, rastreador. – proferiu a última palavra como um insulto – Há tempo demais observamos seu tipo fazer o que bem quer e devo lembrá-lo de que está aqui obedecendo a ordens. Faça o que tenha que fazer e nada mais ou descobrirá quanto do treinamento de um mago não se limita a magia.