“E os saudei de braços abertos. Gritei para que buscassem o que caçam sem descanso, já não tenho mais forças tampouco vontade de passar despercebida. Que se cortem profundamente na minha superfície.”



Vassand é um reino no qual magia e seres fantásticos são bem conhecidos, ao menos nas histórias e lendas antigas. Os espíritos que povoam as águas e florestas, os povos antigos que vez ou outra se fazem presentes para algumas poucas almas tocadas pela sorte (ou azar), os liffedas que cortam os céus radiantes ao sul, mas também os nirnailas que assombram os pesadelos das crianças e fazem com que os adultos se certifiquem que as portas de suas casas estejam bem trancadas ao anoitecer. Algo se sabe também sobre os mensageiros dos deuses, seres que tremulam suas formas, passando de animais à plantas e depois a resquícios de uma ventania poderosa ou uma brisa suave e reconfortante. Lyvlin tentou, naquela noite assolada por nevascas e iluminada pela lua cheia, enquadrar a criatura que se erguia a sua frente em alguma dessas categorias que conhecia, sem sucesso.



Encostava-se ao vão da porta da frente do pequeno casebre, buscando apoio para que seu peso não repousasse sobre a perna lesionada. Sentia o sangue passar entre as ataduras improvisadas e descer sua perna lentamente, mas toda a sua atenção estava voltada para a imensa loba que a observava sentada na neve a poucos metros.

O tapete branco e gelado cobria árvores e os velhos caixotes de madeira que no outono estiveram cheios de frutas, agora devidamente transformadas em compotas ou ressecadas. Mas sobre o pêlo negro da loba os flocos de neve se dissolviam assim que a tocavam, seus olhos encaravam Lyvlin com interesse.

“Venho para buscá-la.” novamente, as palavras não vinham até a garota, no lugar disso surgiam e logo desapareciam em sua mente.

–Para devorar-me em teu covil?- gritou em resposta, fechando a mão sobre sua faca de caça. Nunca fora conhecida pela sua sensatez.

“Se esta fosse a minha intenção já estarias a caminho do meu estômago, acredite. Mas és corajosa, tenho que admitir, ou demasiadamente tola. Que o destino não te derrube com tal facilidade que Tengil usufruiu esta manhã.”

–Tengil? O javali?

A resposta demorou alguns segundos e quando veio foi como se saboreasse as palavras.

“Sim, Tengil o javali. Mas tomes cuidado criança, pois chamá-lo de tal é o mesmo que dirigir-se a mim como simples loba e poucos humanos o fizeram e mantiveram suas entranhas. Pois sou Laoviah, a feroz, serva amada da grande e sábia Sydril e a ela ligada em juramento até que Adanna seja destruída ou minha senhora me dispense. Tengil, por sua vez, serve ao Renegado, ao Traiçoeiro e Assassino cujo nome já não é proferido pelos deuses desde antes das eras que os homens recordam.”

–Nos recordamos de muitas coisas e aprendemos a não nos meter em assuntos dos deuses. - Lyvlin tentou soar confiante, mas a menção dos antigos nomes a confundiam.

Histórias eram contadas sobre épocas em que maldições dos deuses moldavam a vida de todas as criaturas a seu bel prazer, dos dias em que foram fortes e gloriosos e seus pés tocavam o chão que criaram dando significado a sua existência. Tais histórias não passavam de sussurros agora, sussurros que eram incansavelmente recontados por todo o reino, venerados e temidos em poucos lugares, sendo tratados com descaso pela maioria. Alguns afirmavam que os deuses estavam morrendo, se era verdade o sofriam em silêncio e se era algo bom ou ruim ninguém sabia ao certo.

–Se não quer me devorar, qual o propósito da sua busca? Por que invoca o nome daqueles que nos abandonaram?

A loba rosnou e se lançou sobre ela. Ambas caíram para trás, a loba apoiou suas enormes patas sobre seu tronco, mostrando os dentes a poucos centímetros de seu rosto.

“É chegada a hora da sua partida criança, agora não esperneie mais ou prometo que não terás língua para responder às perguntas da minha senhora.”

Lyvlin tentou se livrar, mas o peso sobre ela era demais. A perna latejava, impedindo que se movesse para qualquer lado. Fechou os olhos e com toda sua força golpeou o flanco da loba com sua faca, esperando que surtisse qualquer efeito. Não funcionou. O rosnado se tornou mais grave e os olhos da loba a encararam furiosos.

“Muito estúpido.” sua voz cortante veio acompanhada de uma onda de dor na cabeça de Lyvlin “Acha mesmo que essa arma me faz cócegas, humana?”

–Se afaste da minha neta Laoviah!- a voz de Gilbert surgiu acima delas e foi seguido por um pontapé no focinho da loba. O animal saltou para trás com facilidade, seus olhos lampejavam em direção ao senhor que ajudava Lyvlin a se erguer e empunhava uma espada em sua direção. Conhecia aquela espada, sentiu seu toque anos atrás e ainda doía.

–Pronta para um encontro com seu passado loba?-Gilbert gritou em sua direção – Você lembra o nome?

“Arcturus” anunciou Laoviah com desdém depois de um breve silêncio, a loba começou a andar para cima e para baixo, não tirando os olhos selvagens da arma “A severa”.

Gilbert acompanhava seus movimentos com a espada, sua respiração calma formando nuvens de umidade à sua frente. Lyvlin lançou um olhar furtivo para o objeto na mão de seu avô, nunca o vira empunhar uma espada antes. Arcturus possuía uma lâmina de tamanho mediano com dois gumes e era de sua ponta até o ombro negra como uma noite sem estrelas, o punho era de couro velho e a guarda que impedia a mão de quem a segurasse deslizar até a lâmina consistia de um v invertido que se continuava em dois prolongamentos prateados curvados sobre si próprios, formando duas espirais. O único ornamento que possuía estava no pomo, pequenas figuras pareciam encravadas na esfera prateada, figuras que a garota não conseguia distinguir.

–Gilbert... O que ela é?- murmurou, observando a loba que parecia em um conflito interno, ponderando se valeria a pena atacar ou não.

–Uma reles mensageira. – foi a resposta, sem virar o rosto em sua direção – Seu trabalho aqui foi cumprido loba, considere sua proposta recusada e retorne.

Os pêlos do animal se eriçaram, continuava a dar voltas ao redor dos dois e quando sua voz fez-se ouvir em suas mentes parecia quase triste.

“Ela vai morrer Gilbert” seus olhos amarelos fixos em Lyvlin “E ainda assim não enxergas além de teu orgulho. Vês diante de ti a criança que já não existe e estás cego para o perigo que correm cada momento que tentas escondê-la do mundo durante mais alguns dias. Estes dias lhes custarão caro, talvez culminem apenas em sua morte, mas nós dois sabemos que o resultado pode ser infinitamente pior.”

Algo em sua postura mudara e a forma como a voz ressoava em suas mentes era acolhedora e gentil, como se os banhasse com bálsamo. O vento jogava flocos de neve contra seu rosto, mas Lyvlin não os percebia tampouco o frio a incomodava e repentinamente foi como se a deusa falasse apenas para ela.

“Sinto seu medo, criança, o compartilho. Há tantas coisas que você não sabe, tantas que lhe dizem respeito e têm sido guardadas por tempo demais.”

–Não tens o direito! – interrompeu Gilbert alterado – Não tens o direito de quebrar promessas antigas, leve sua marionete e suma da minha casa!

Um longo silêncio se seguiu, quebrado apenas pelos barulhos de galhos nus chocando-se sobre a ventania.

“As circunstâncias mudaram velho amigo e o sabes muito bem, o sentes no ar a cada dia que acorda de mais uma noite perturbada por pesadelos.” a loba voltou seu olhar para o homem e os olhos que o encararam eram humanos “Não são pesadelos Gilbert, são avisos. Avisos de que o tempo é chegado, que a hora é oportuna e de que não podemos vacilar. Você, mais do que todos nós, compreende isso. No fundo do seu coração já aceitastes de que irás perdê-la, a pergunta agora é: para quem?”

–Do que estão falando?- perguntou Lyvlin, sentindo-se terrivelmente impotente. Procurou apoio nos olhos do avô, em vão. –Gilbert, do que vocês estão falando?

O homem ao seu lado baixou o rosto e nada respondeu. Quando levantou a cabeça estava voltada para Laoviah e não para sua neta.

–Deixe que saiba por mim. – implorou com a voz embargada, de repente parecia ter envelhecido anos. A loba assentiu. A garota apenas o encarava em total silêncio.

“Os deixarei, pois é um assunto longo e Lyvlin terá muitas perguntas. A espada não os protegerá do que virá em breve, velho amigo.” Laoviah aproximou-se lentamente dos dois e com um arquejo Lyvlin viu que seu avô baixava a espada, permitindo que a loba encostasse o focinho em sua perna machucada “Ele não é o único que a busca sem descanso, as promessas antigas foram quebradas Gilbert e agora mesmo um grupo de humanos está a caminho, viajando sem parar. Eles vêm do sul e carregam sua bandeira com orgulho e determinação, são incansáveis e não serão detidos por espada alguma. O digo, pois um dos meus filhos os acompanha e sabes como costumam ser.”

As mãos de Gilbert seguraram Lyvlin com tanta força que chegava a doer, mas a garota não reclamou. No lugar disso sentiu que sua perna esquerda começava a ficar mais quente, primeiro com uma agradável sensação morna, depois aumentando a temperatura até que gritou de dor. Então terminou tão bruscamente que imaginou se tudo não fora mais um truque da loba. Quando sentiu seu peso sobre a perna soube que não fora. Afastou-se de seu avô e suas pernas a sustentaram firmes e fortes. A surpresa foi tanta que as palavras lhe faltaram. A loba a olhou por uma última vez.

Não precisam de mais obstáculos em seu caminho. Cuide-se criança, que no nosso próximo encontro estejas pronta para carregar o fardo que lhe foi designado.”

–Involuntariamente. – acrescentou Gilbert. A loba começou a se afastar, enquanto a voz da deusa ainda soava em suas mentes.

“A prepare Gilbert, a prepare da melhor forma que conseguir. Porque sua escolha determinará o futuro e cairá sobre nós com maior força que qualquer golpe inimigo. E Gilbert? Ela nunca o culpou, velho amigo, e quer que saibas disso.”

Lyvlin sentiu o avô estremecer ao seu lado e procurar vacilante apoio no vão da porta, como a própria fizera momentos antes para proteger a perna lesionada. Mas não eram as pernas do senhor que doíam, as palavras da deusa haviam removido a fina crosta de uma antiga ferida, posta de lado durante anos e que agora sangrava novamente. Pensou que a loba ainda se comunicava com ele quando atingiu um pequeno morro que se erguia não muito longe e lá ficou parada durante algum tempo, olhando para Gilbert. Porque enquanto sua figura negra se destacava contra a neve, grossas lágrimas percorriam o rosto marcado pela velhice e caíam no tapete branco aos seus pés.