“Eu odeio este lugar, odeio estas pessoas. Mas mais que tudo odeio a maneira como olham para mim: sorrindo, como se soubessem de algo que não sei.”


A lâmina negra repousava sobre as coxas de Lyvlin e mesmo embainhada parecia ser possível sentir o aço contra a sua pele. Atrás de si ouvia a lareira crepitar enquanto as chamas alegremente envolviam os pedaços de madeira que Gilbert lhes oferecia. Haviam passado a última meia hora em silêncio total e Lyvlin não se sentia à vontade para quebrá-lo. No lugar disso voltou sua atenção para a bainha de madeira que abrigava Arcturus, assim como a lâmina, era coberta por figuras entalhadas e palavras escritas numa língua que não conhecia. Talvez conhecia, mas sua habilidade em leitura e escrita não ia muito além de saber escrever seu próprio nome e compreender o ponto principal de livros que despertavam sua curiosidade. Fora Gilbert quem a ensinara a arte de escrever e reconhecer palavras no papel e mesmo que não fosse de longe sua aluna mais dedicada à medida que crescia compreendia um pouco melhor a paixão que seu avô nutria por pergaminhos e os velhos livros com capas de couro. Mas ler o rosto de Gilbert sempre fora uma das coisas mais fáceis para Lyvlin desde que conseguia se lembrar e vê-lo andar inquieto de um lugar para outro na pequena sala a estava deixando mais nervosa que gostaria de admitir. A loba tinha parte nisso, pensou, a loba com seu estranho poder de fazer nascer as palavras em suas mentes. Nem agora acreditava em tudo que ouvira, na verdade não acreditara em quase nada até que sentiu sua perna inteira novamente. Está ai algo que não se vê todo dia. Passou os dedos por uma proeminência delicada na bainha e quando apertou os olhos conseguiu ver as figuras de um javali, um lobo e uma espécie de leão das montanhas engalfinhando-se enquanto três figuras encapuzadas observavam do alto. Suspirou, já estava decorando cada centímetro da madeira e Gilbert nem ao menos parecia estar perto de responder qualquer uma de suas perguntas.


–Está andando com tanto vigor de cima para baixo que em breve conseguirá ultrapassar a madeira. – observou apoiando os cotovelos na mesa. Nenhuma reação. Suspirou voltando seus olhos para a lareira, que na verdade nada mais era que um monte de pedaços de madeira circulado por pedras para que o fogo não se espalhasse. Normalmente a velha panela de ferro que já vira mais verões que a garota estaria apoiada sobre os suportes e uma sopa de batatas borbulharia alegremente em seu interior, se fosse um dia de sorte teria até pedaços de coelho boiando no líquido. Mas aquele inverno se provara de uma dureza que atingira a todos do pequeno vilarejo da mesma forma, a comida estava escassa e agora se atreviam a comer muito pouco do que tinham separado durante o ano. Gilbert era excepcionalmente rígido em relação a isto e dias haviam se passado desde que comeram algo além de pão ressecado e tão duro que haviam feito o avô perder dois dentes de uma vez. Sentia o estômago vazio se revirando, mas não queria dar a Gilbert a oportunidade de fugir do assunto.

–Apenas me diga se aquilo que vi foi real ou fruto da minha imaginação.

O homem parou como se só agora se desse conta de sua presença. Como ela cresceu, pensou o velho e a constatação de que já não se contentaria com as mesmas desculpas de antes o fez se arrepiar. Quem o encarava por trás dos olhos violetas não era uma criança, mas uma jovem prestes a experimentar os gostos doces e amargos da fase adulta. E como se parecia com sua mãe, sim, era Layil que o prendia. Uma Layil com cabelos mais lisos, sim, mas igualmente escarlates. Indomáveis como as pessoas que os ostentam, percebeu com uma pontada de preocupação. Se ao menos tivesse puxado mais ao pai, talvez as coisas fossem mais fáceis. Pelo menos aceitaria as respostas que estava disposto a dar e com um pouco de sorte pararia de perguntar. Se havia algo que não faltava em sua neta era a teimosia, algo pelo qual não poderia culpá-la quando olhava para as suas próprias ações quando mais jovem. Lyvlin crescera como um garoto, desta forma era natural que carecesse de qualquer delicadeza ou suavidade que apenas uma mulher poderia tê-la ensinado.

Ao menos agora as brigas com os outros garotos do vilarejo haviam cessado para tornarem-se uma disputa silenciosa. Não que reclamasse, pensou, se tivesse que encarar os rostos raivosos das mães mais uma vez teria um ataque de risos. Podia ver na postura da neta o mesmo desafio que ela costumava lançar aos garotos do vilarejo quando tinha menos de dez anos enquanto os segurava pelos cabelos: ou faziam o que queria ou a aguentariam persistir até consegui-lo de qualquer forma. Os meninos aprenderam rápido e logo não mais reclamavam quando aquela menina franzina e com cabelos cor de fogo pedia para entrar em suas brincadeiras pouco amigáveis, a não ser que estivessem a uma distância segura. Ainda a via daquela forma, como a garota que sempre fora a menor do grupo a irromper porta adentro como um vendaval ruivo e mostrar, orgulhosa, as novas manchas roxas que ganhara naquele dia. Gilbert bem que tentara convencê-la de que passar o dia brincando de acertar outros com galhos não era a melhor forma de fazer amigos, mas ela apenas o ignorara. Depois puxou os garotos de lado e pediu para que não fossem tão duros com ela, no dia seguinte Lyvlin o surpreendera enquanto cortava lenha e gritou que não queria ser tratada como fraca. Os garotos, por sua vez, depois de perceberem que mesmo que contivessem suas mãos durante as lutas ela continuaria revidando de uma maneira que não mostrava nenhuma reciprocidade voltaram a seus velhos costumes e devolveram a paz a sua casa. Fora quase um alívio quando cresceram e descobriram novas atividades que não envolviam quebrar pedaços de madeira sobre as suas cabeças. Isso fora há poucos anos demais, sentia Gilbert. Lyvlin ainda era muito nova para enfrentar o que estava por vir e ele se amaldiçoava por não ter conseguido protegê-la de uma forma melhor. O destino, afinal, os havia alcançado. E a visita da maldita loba só fora o começo.

–Lyvlin estou pensando. – tentou ganhar tempo.

A garota puxou uma cadeira para perto de si e indicou o assento, seus olhos brilhando de curiosidade.

–Talvez se partilhasse seus pensamentos não demorasse tanto para chegar a uma conclusão.

A garota viu que funcionara quando o velho sentou-se ao seu lado com alguma relutância. Lançou-lhe um sorriso encorajador. Há tempo demais esperava por alguma explicação e já tinha visto tantas coisas durante sua curta vida que faziam a imensa loba parecer completamente normal. Bem, quase.

Primeiro foram os fantasmas, ou pelo menos era assim que ela os chamara quando os vira pela primeira vez quando tinha sete anos. Quando o vento soprava contra seu rosto era como se pudesse senti-los ainda agora. Ezra não acreditara e a chamara de idiota. Então um dia decidiu levá-lo até eles. Era um dia de primavera e ao redor das duas crianças a floresta se agitava cheio de vida. Esquilos pulavam entre os galhos e às vezes paravam para observar aquela dupla enquanto passavam por eles, seus focinhos erguidos contra o vento. É provável que tivessem diante de si uma cena um tanto quanto peculiar com aquela garota ruiva raivosa a andar na frente, o garoto que era bem maior que ela quase tinha que correr para se manter ao seu lado, vez ou outra interrompendo o silêncio com brincadeiras, que na maioria das vezes não eram bem recebidas. Podiam ouvir o barulho de um pica-pau buscando larvas em algum tronco não muito longe e o canto dos pintassilgos encher o ar. Quando entraram na pequena clareira os pássaros se calaram de súbito e com um pequeno sorriso Lyvlin sentiu o garoto ao seu lado tocar instintivamente sua mão. Veremos quem é o idiota agora, pensou triunfante. Esta sensação não durou muito tempo porque minutos se passavam e os fantasmas não pareciam com pressa. Ezra soltou sua mão e estava prestes a abrir a boca quando acompanhados por uma brisa amena eles surgiram. Eram pequenas esferas translúcidas que flutuavam sobre a grama, emitindo colorações diversas quando o sol tocava suas superfícies. Que na realidade não eram superfícies como Ezra não tardou a descobrir quando uma delas atravessou o seu corpo sem cerimônia. Lyvlin riu ao ver seu rosto assustado e o som ecoou pela clareira quando as pequenas esferas rodopiaram ao seu redor e a acompanharam.

Mesmo tantos anos depois ainda não conseguia esconder o sorriso quando pensava no semblante de Ezra enquanto ouvia as pequenas formas esvoaçantes devolverem o riso de sua amiga. Não demorou muito para que se familiarizasse com elas e aprendesse a gostar de sua companhia e Lyvlin ficava curiosa sobre se aquela também fora sua reação quando fora surpreendida por elas durante um passeio qualquer. Depois daquilo Ezra confiara nela de olhos fechados, confiança que ela própria não demorou a retribuir. Até que com pouco mais que oito anos o garoto cometeu um erro que por pouco não fora fatal.

Para Ezra a ideia de estar entre os fantasmas se transformara em algo comum, já se cansara de visitar a clareira com Lyvlin, queria tentar algo novo. E foi com esse pensamento que adentrou a floresta que cercava o vilarejo e chegou à clareira buscando pelos amigos que ansiava encontrar na ausência da garota. Talvez a ausência dela os fizesse se voltar mais para ele, para que pudesse correr pela clareira acompanhado pela sensação boa que emitiam. Mas não foi recebido com alegria, no lugar disso quando apareceram as esferas já não pareciam tão amistosas, sua natureza translúcida mudou para uma coloração escura que parecia sugar toda vida da área. Formaram um círculo ao seu redor, como imensos pingos de chuva negros a pairar no ar, e emitiam um som parecido com o zumbir de uma colmeia raivosa. O garoto sentiu medo e correu a esmo pela floresta pensando ouvir o barulho ameaçador tornando-se cada vez mais alto. Tropeçou em uma pedra e a terra o envolveu quando caiu dentro da vala de um javali. Ao menos não havia nenhum javali dentro.

Ainda assim torcera a perna e quando o acharam, horas depois estava inchada de uma forma que fazia parecer muito pior que o machucado realmente era. Lyvlin acompanhara os homens que percorreram a floresta em sua busca e quando ouviu o grito de resposta vindo da escuridão quase chorara de felicidade. Bastou que seus olhos fitassem os dela na penumbra provida pelas tochas que os homens seguravam para que soubesse o que acontecera. Sem hesitar pedira a tocha que o pequeno Rorge segurava e bastou encará-lo para que se lembrasse da surra que levara dela na última brincadeira. Ignorou os gritos enquanto corria pela floresta esforçando-se para não tropeçar em galhos e troncos caídos, não parou quando sentiu os pulmões arderem.

Seus passos tornaram-se mais lentos quando adentrou a clareira que parecia sombria e pouco convidativa, tocada apenas pela luz da lua cheia que se erguia majestosamente no céu. Respirou fundo ouvindo o farfalhar de folhas atrás de si, algum animal pequeno parecia desfrutar de um passeio noturno. Quando viu as esferas surgirem à sua frente, pareciam grandes vaga-lumes que dançavam a sua volta. E ainda assim aquela beleza não a tocou, não se importava com a forma que brilhavam entre as árvores. Estava ali apenas para dizer que desaparecessem daquele lugar para sempre e foi o que fez. Por um curto momento temeu que a atacassem como fizeram com Ezra, no lugar disso uma brisa morna tocou seu rosto como se despedisse e uma por uma as luzes se apagaram até deixá-la sozinha agarrada à tocha e cercada pela escuridão. Mesmo muito depois de Ezra ter se recuperado completamente a garota não se sentia à vontade o bastante para contar sobre as outras coisas que ela via e ouvia, coisas que ela não contara para ninguém. Afastou os pensamentos com algum esforço para focar apenas em seu avô, precisava entender o que se passava com ela.

–Pode começar.

–Eu não sei como. – respondeu Gilbert, parecia estar sendo sincero.

–A loba - insistiu, inclinando-se para ele - ela é realmente quem diz ser?

–Sim.

Ótimo. Como se ver esferas tremeluzentes que no momento seguinte poderiam estar te perseguindo rumo à morte não tivesse sido suficiente. Se Laoviah era mensageira de alguma deusa qualquer, não lhe interessava muito. Afinal, crenças como um todo não eram o seu ponto forte. Mas se falou a verdade, estaria metida no maior problema da sua vida. Ter a colheita como época mais empolgante do ano de repente não lhe pareceu tão ruim assim.

–E isto é algo bom ou ruim?

–Eu não sei. Sinceramente eu não sei. – Gilbert segurava o rosto entre as mãos ásperas e parecia estar em seu limite. Lyvlin não sentiu pena, era ela quem tinha passado anos achando que era algum tipo de ser esquisito, talvez até uma das abominações sobre as quais o velho contador de histórias do vilarejo, Mervim, tanto falava. Mas Mervim também tinha rido dela quando contara sobre os fantasmas e obviamente não parecia ser bom em seu passatempo de qualquer forma. No fundo esperava que ele entendesse e lhe dissesse que era normal, no final só lhe restou arrastar Ezra consigo. Não era o contador de histórias que poderia lhe dizer a verdade.

–E o que isto tem a ver comigo?

O homem levantou os olhos e virou-se para o fogo.

–Tudo. – sussurrou enquanto as chamas dançavam diante de si – Que os Deuses me perdoem.

–Pelo quê? – estava farta. Paciência nunca fora uma das suas qualidades e naquela noite Gilbert a estava tirando do sério. – O que você fez para receber visitas de mensageiros dos deuses antigos como se não fosse grande coisa?

–Não foram a mim que vieram visitar Lyvlin e você bem o sabe.

Lutou contra o ímpeto de levantar-se e deixá-lo falando sozinho. Era óbvio que não estava sendo verdadeiro e pior, não fazia o mínimo esforço para escondê-lo. Colocou Arcturus sobre a mesa, ainda que sentisse vontade de jogá-la e o encarou com olhos decididos.

–É sua? – sabia que não era.

Gilbert olhou a lâmina negra durante poucos segundos, as labaredas espelhavam-se no aço frio. Negou com a cabeça.

–Do seu pai. – ao ver que o semblante de Lyvlin se iluminara tratou de cortá-la desviando o olhar - E não, não vou contar-lhe. Não importa muito agora.

A garota cerrou os punhos por debaixo da mesa e mordeu os lábios para impedir que dissesse qualquer tolice, era injusto. Ainda assim, a informação não surpreendera Lyvlin por completo, Gilbert contava que seu pai fora um grande guerreiro e às vezes, enquanto contava histórias sobre os seus feitos, referia-se a ele como herói. Lyvlin aprendeu muito cedo que não poderia tomar aquelas histórias como a verdade. Também nisso Ezra teve um grande papel, esperando Gilbert terminar uma das fabulosas histórias sobre seu filho para depois convencer Lyvlin de que o fruto de um simples carpinteiro não poderia se mostrar tão bom na arte de guerrear. Quando era mais nova batia o pé e ameaçava bater nele se dissesse aquilo novamente, mas com o passar dos anos o deslumbramento se desvaneceu, mas as pequenas pontadas de orgulho permaneciam vivas até agora.

Gilbert às vezes a observava brincar com galhos e mais tarde com espadas de madeira, cujo alvo era sempre o garoto magricela de cabelo marrom avermelhado, com um pequeno sorriso no rosto. Quando Lyvlin corria até ele para que a ajudasse a tirar os cabelos do rosto dizia que lembrava o seu pai quando tinha a mesma idade. Era seu elogio favorito, ainda que tentasse fazer com que Ezra não percebesse. Ao menos menciona meu pai, sobre mamãe nunca falou nada, ainda que perguntasse insistentemente desde que consigo me lembrar. Queria respostas, não se importava muito com as conseqüências delas, afinal se a loba estivesse certa, iria confrontá-las mais cedo ou mais tarde. Que ao menos soubesse o motivo daquilo tudo. Com um rangido contra as tábuas de madeira afastou a cadeira para trás, virou-se para o homem e segurou as mãos de seu avô nas suas. Eram ásperas, a pele grossa era cortada por rugas e pequenas cicatrizes aqui e ali. Lyvlin as segurou com firmeza, tentando deixá-lo mais confortável acariciando com os polegares as costas de suas mãos.

–Gilbert, ouça. – forçou-se a soar o mais calma possível – se a loba é de verdade e não resultado da minha imaginação, então aquele javali que parecia ter acordado com o pé esquerdo...

–Tengil.

–... Tengil. Então ele realmente tem um motivo para me querer morta. A pergunta que eu quero te fazer é a seguinte: o fato de continuar escondendo a verdade de mim vai fazê-lo mudar de idéia?

–Dificilmente. – confessou Gilbert, como se só agora percebesse que toda a muralha de proteção que erguera ao redor de Lyvlin estava desmoronando – Vai continuar caçando-a até atingir seu objetivo, só não está agora diante da nossa porta porque a presença de Laoviah o assustou, talvez conseguiremos despistá-lo se não demorarmos demais.

Estava pronta para ignorar a segunda parte, não deixaria Gilbert arrastá-la para longe, fugindo de algo que a caçava por um motivo que não conhecia. Sustentou seu olhar, tentando perceber alguma coisa que deixara passar antes.

–E os homens que vem do sul. – recordou com certo desagrado – também não me pareceu que venham apenas para uma visita cordial.

As mãos de Gilbert se fecharam sobre as suas. Parecia apavorado, como se preferisse enfrentar um javali de três metros a presenciar aquele encontro.

–Não, eles são muito piores. Tengil apenas a quer morta, eles também a querem morta, veja Lyvlin, nunca se deixe enganar pela fala mansa que eles têm. Pelas palavras doces e gentis que usam para prendê-la. A única diferença entre eles e aquele monstro é que pretendem usá-la como arma antes.

–Receio que não seja tão boa assim com espadas. E com o arco sou um pouco melhor, mas nada demais.

O avô sorriu, um sorriso que estava longe de ser feliz. Quando falou o fez com uma grande dificuldade, como se cada uma das palavras o ferisse.

–Isso porque não estão atrás das suas habilidades como guerreira, filha. Pelo menos não da maneira como você pensa. O que eles procuram em você é a magia.

Por um longo momento a única coisa que se ouviu no pequeno cômodo era o crepitar das chamas, lá fora a nevasca continuava, o vento passava entre as frestas da porta. Não soube se o calafrio que a percorreu era devido ao frio. Soltou as mãos do avô como se elas a queimassem e lhe virou as costas, dando voltas ao redor da mesa enquanto tentava organizar seus pensamentos. Por fim parou perto do fogo, olhando para Gilbert.

–Está falando de uma forma figurada não é? Como uma de suas metáforas?

O homem aproximou-se, pousando as mãos sobre seus ombros magros.

–Confesso que preferiria que fosse esta a realidade Lyvlin. Na verdade, passei tempo demais desejando que os fatos mudassem com o passar do tempo. Mas há certas coisas que não se transformam. Ontem na floresta você quase pagou pela minha negligência e se me permite dizer, fui muito estúpido.

–Se você quiser pôr dessa maneira... – a jovem tentou sorrir, ainda que estivesse grata por Gilbert segurá-la. As suas pernas não pareciam firmes o bastante para sustentar seu peso – Mas mesmo se me tivesse contado que um javali homicida corria solto pela floresta, não teríamos reagido rápido o bastante. Ezra salvou a minha vida. Bem, Laoviah também entrou em ação em um tempo propício. Não que eu goste dela, acho que seus motivos que a levaram a ajudar não são inocentes da maneira como colocou.

–Que você esteja refletindo sobre o que ouve me contenta criança. Vai perceber cedo que a verdade se esconde por trás de gracejos e gestos de boa vontade aparente, você não vai poder confiar em ninguém. Não, não me interrompa, escute. Todos eles, de Laoviah aos homens que se aproximam do sul, todos tem motivos parecidos para querer você por perto. Talvez a queiram para fins diferentes, uma ferramenta para atingir seus objetivos. Não se deixe cegar.

´Lyvlin suspirou, desvencilhando-se de Gilbert. Percebeu subitamente como estava cansada e por um momento precisou se apoiar na mesa. Músculos que nem sabia que existiam estavam doendo, implorando por uma cama quente para descansar por algumas horas.

–Você fala como se fosse importante. Se eu tiver magia ou não, pouco importa. Não consigo usá-la pra nada proveitoso, não serei útil para lobos nem homens. Agora só precisamos fazer com que compreendam isso e convencê-los a partir atrás de outra aventura o mais rápido possível.

–Você não pode colocar as coisas de uma forma tão simples assim. Não cometa o mesmo erro que eu. – a voz de Gilbert era macia e reconfortante – O fato de ter talento natural para a magia pode te tornar a pessoa mais poderosa que você jamais imaginou, ou ser seu fim.

–Considerando a conversa que tivemos hoje e os últimos acontecimentos, acho que será a segunda opção. – retrucou a garota, engolindo o nó que se formava em sua garganta. De que adiantava ter o talento para alguma coisa se não servia para nada? Duvidava que Tengil ou os inimigos que nunca soubera que tinha esperariam pacientes enquanto ela se especializava nas artes da magia. Considerando que arranjasse um lugar para aprender, coisa da qual nunca tinha ouvido falar no norte. Sabia que a grande capital do sul, Beltring, contava com uma espécie de academia que instruía pessoas como ela, na arenosa capital do leste os antigos costumes ainda perduravam, pelo menos era o que Mervim assegurou a ela enquanto contava a história de um grande mago que salvou a pele daquele que chamavam de o Unificador. Não era uma das histórias favoritas da garota, principalmente porque não envolvia grandes batalhas (e também porque o herói acabou comido por um dragão, nenhum herói que se preze termina no estômago de um dragão).

–Você se subestima. – Gilbert a trouxe de volta para o presente com um sorriso encorajador - Não lhe passou pela mente que Laoviah não costuma distribuir visitas a pessoas consideradas comuns? E aqueles homens que estão agora enfrentando uma grande nevasca para chegar até você, pensa que o fariam por alguém de pouco valor?

–Preferiria que não me lembrasse dos meus perseguidores a cada minuto. Gilbert, não posso fazer isso. O que você tem como plano? Amarrar as nossas tralhas nas costas de um burro e fugir sem rumo no meio do inverno?

–Algo muito semelhante a isso, sim. – Lyvlin o encarou como se estivesse fora de si. Depois apenas deu de ombros, cansada demais para discutir qualquer coisa. Já sabia agora que acordaria com a cabeça pesada e dolorida, era sempre assim quando passava por experiências que não se deixavam explicar pelo bom senso. Eram mais freqüentes do que seria o saudável, pensou com desagrado.

–Podemos esperar ao menos até amanhã?

–Ah, sim. – o avô parecia preenchido por uma energia que há muito tempo não mostrava – Você pode ir dormir em paz. Vou cuidar das coisas e partimos junto com o raiar do sol.

“Ótimo” murmurou Lyvlin enquanto se arrastava em direção à cama. Quando estava na soleira da porta parou, lembrando-se do que permanecera inexplicado durante toda a noite. Segurou-se na madeira para inclinar o corpo para trás, o suficiente para que conseguisse enxergar Gilbert mexendo em um dos armários.

–Gilbert? Se eu aparentemente nasci com essa maldição, por que Tengil só me encontrou hoje?

Mesmo estando a alguns metros de distância, percebeu que a postura do avô se tornou tensa. Passou um tempo sem falar nada, o que fez Lyvlin temer que voltasse a seu voto de silêncio. Apenas quando chamou o seu nome uma segunda vez soltou um longo suspiro, como quem fora libertado de uma grande carga.

–Porque ele simplesmente não sabia onde procurar. – respondeu com simplicidade enquanto depositava frascos de vidro sobre a mesa.

–Bem, considerando que ele deve ser algum tipo de animal de estimação celestial, não deveria ser fácil achar o que quer que seja?

–Você não entendeu Lyvlin. – respondeu Gilbert aproximando-se com uma expressão pesarosa no rosto coberto por finas rugas – Ele não a encontrou porque não sabia o lugar, mas porque era impedido de encontrá-la. Coisa que só mudou há pouquíssimo tempo.

–Por quem? –Por algum motivo parecia já conhecer a resposta, como se uma voz suave o sussurrasse contra seu ouvido antes do avô pronunciar as palavras.

–Sua mãe. – apoiou-a quando a garota perdeu o equilíbrio e acariciou o topo da sua cabeça com carinho – Pode chorar criança, por hoje também já tive a minha dose de tristeza.

–Ela estava viva ontem. – murmurou contra o casaco de pêlo de castor que o avô ainda não tirara, de repente sentiu-se fria – Ainda ontem respirava e você NUNCA me contou nem como ela era.

Tentou libertar-se, mas parou quando percebeu que o abraço de Gilbert era a única coisa que a mantinha de pé.