“As palavras ainda têm um gosto estranho na boca. Meu rei. Ele não é meu rei. Não é o rei de qualquer pessoa que mora a algumas passadas de seu precioso monte de mentiras. Vejo o príncipe espiar detrás da capa do rei, se escondendo assim que me vê. Tem três anos e já se parece mais com o pai que Coran jamais será. Darian é seu nome, o príncipe herdeiro me contara cheio de orgulho. Darian. Um bom nome. Se conseguisse de alguma forma crescer protegido da influência do pai, poderia se tornar um bom homem também. ”

Lyvlin conseguia sentir a apreensão no ar. Os gritos e xingamentos haviam silenciado quando Helea ergueu a mão, os olhos semicerrados fixos nas costas de Lyvlin. A garota sabia que a única coisa que mantivera os renegados de trucidarem Darian no mesmo segundo foram as ordens gritadas pela sua líder. O ódio estava estampado em seus rostos e nos punhos fechados. Sentiu-se grata por Sestra ser a única portando uma espada. Com a pequena adaga em sua mão talvez conseguisse manter Helea a distância. Mais certo que matem nós dois.

– Pela bunda peluda de Osric! – exclamou Helea com os olhos brilhando – Se não é a cria maldita do nosso rei!

– Fiquem longe! – Lyvlin ordenou, a voz determinada ecoando na caverna. Precisava de algo melhor que a estupida lamina – Tenho magia! E vou usa-la contra quem se aproximar demais! – vamos morrer.

– Usa-la? – repetiu Helea e seus olhos se voltaram para ela. Parecia se abaixar por um segundo e de repente seu pé esquerdo chutava a adaga da mão de Lyvlin, rápido com o bote de uma cobra – Claro que sim – riu enquanto o metal se chocava contra pedra - com essa luminitsa brilhando no pescoço.

– Não quero te bater de novo. – avisou quando Lyvlin não se moveu – É ele quem eu quero.

– Para que? – talvez conseguisse convencer os renegados de que o príncipe daria um bom refém. Talvez conseguisse manter a cabeça vazia de Darian sobre seu pescoço por mais alguns minutos.

– Eviscera-lo seria um bom começo. – e não esperou pela resposta. Desviou do murro de Lyvlin e no mesmo movimento a atingiu no ombro, fazendo-a tropeçar para trás.

Quando Lyvlin conseguiu se equilibrar Helea observava Darian com as mãos nos quadris estreitos. Eles vão mata-lo. Pensou desesperada, mas quando tentou dar um passo adiante Ezra a impediu. A gargalhada de Helea ricocheteava nas paredes de pedra.

– Darian, seu bastardo esquivo! – puxou o príncipe de pé e o abraçou. Afastou-o de si e o segurou pelos ombros, admirando-o com um sorriso largo no rosto – E parcialmente morto! – acrescentou deliciada.

– Um quarto morto. – corrigiu o príncipe e pousou a mão no ombro da renegada – É bom te ver inteira. Ouvi coisas... perturbadoras quando cheguei.

– Foi por isso que fez todo o caminho da riqueza e luxo para a lama da cidade baixa tão rápido? Você me faz chorar.

– Mas que porcaria é essa? – o homem que se chamava Tim exigiu saber, poupando as palavras de Lyvlin – Helea, ele é o príncipe! Eu o vi com meus próprios olhos quando sua comitiva voltou para a capital!

– Eu bem o sei, Timothy. – disse Helea – Não o chamaria de cria maldita de Osric se não fosse de fato Darian, ou pareceria realmente estupida, não é? Com Nasreen em Lyle e todo o mais. – voltou sua atenção para Darian - Falando nisso, como ela está? Não escreve faz tempo.

– Ocupada. – limitou-se a responder o príncipe e, ciente dos olhares sobre ele, falou aos renegados – Compreendo a desconfiança que possam ter.

– Desconfiança não chega nem perto! – gritou alguém da multidão e Lyvlin ficou tensa.

Helea também o sentiu e se adiantou, sorrindo para seus irmãos e irmãs.

– Queridos e queridas, posso garantir que Darian não representa uma ameaça. Também sei que isso não nos manteria de arrancar sua cabeça mesmo assim, porque seria engraçado, mas lamento que sua sobrevivência seja mais vantajosa para nós que mandar um presente especial para o Monte do Rei. Por mais tentadora que a chance pareça.

– O que você está fazendo aqui? – sibilou Lyvlin alcançando o lado de Darian enquanto Helea respondia aos xingamentos.

Darian estava com um olho roxo e seu lábio inferior era uma coisa sangrenta, mas deu um pequeno sorriso mesmo assim.

– Eu vim visitar amigos. – disse teimoso, o cabelo suado caindo nos olhos.

– Imagino que nem todos seus amigos queiram arrancar sua cabeça nesse momento. – argumentou observando Sestra desembainhar a cimitarra - Helea parece razoavelmente feliz em vê-lo.

– Ela sempre foi mais próxima da minha irmã. – disse e foi interrompido por um acesso de tosse. Lyvlin viu o sangue manchar o chão e sabia que se os renegados não o matassem Raoul terminaria o trabalho.

– Mas claro – a voz de Helea se sobrepôs as demais – não esperava que acreditassem apenas nas minhas palavras, apesar do fato me deixar ligeiramente triste e decepcionada. Mio, por favor.

A menção ao gêmeo silencioso de Sestra calou o último dos homens. A maneira como o caminho se abriu até ele deixou claro que aquelas pessoas não o viam como um igual. Lyvlin havia aprendido a observar as pessoas nas semanas que passara no Monte do Rei. O olhar muitas vezes dizia mais que palavras ou a ausência delas. O homem andou até Helea e enquanto o fazia Lyvlin se lembrou do porte dos lordes que fervilhavam no Monte do Rei, sempre tão orgulhosos e incansáveis. Miomir cruzou os braços atrás das costas, a trança ruiva caindo sobre o ombro.

– Nenhum mal deve acontecer ao príncipe se esperamos ser livres algum dia. – disse em tom monótono e ao ver a confusão nas pessoas deu um suspiro e escolheu palavras mais diretas - Ele é importante.

– Como você é importante, como eu sou importante. Como Timothy e a querida Faye são importantes. Como cada alma nessa caverna é importante. – enumerou Helea – Nos diga o que Darian, e apenas ele, pode nos dar.

O homem lhe lançou um olhar que beirava a irritação.

– Eu o vi. Ele liderava o nosso povo para fora da Caverna. Seremos livres e mais uma vez cidadãos de Beltring. Se o matarmos, pereceremos. Se o matarmos destruiremos nosso futuro.

– Conversa para boi dormir – falou um homem largo e barrigudo – ele é cria do pai, suas promessas não valem nada!

O ruído de lamina contra bainha cortou o ar quando Sestra apontou a cimitarra em sua direção.

– Está dizendo que meu irmão mente?! – rosnou e o braço de Helea bloqueou seu caminho.

– Cador, acredito que Mio já se provou o suficiente – falou com suavidade e o homem ficou vermelho e se calou.

– Não precisam da minha promessa, uma vez que pouco fizemos para merecer sua confiança – falou Darian – Tenho uma dívida com vocês. Beltring tem uma dívida com vocês. E pretendo paga-la. – sua voz se elevou até ser a única que ecoava pelas paredes úmidas da imensa caverna – Por décadas foram condenados por um crime que não cometeram e lhes foram negados julgamentos que não consistissem de xingamentos e cusparadas, ou coisa pior. Mas essa realidade é de vocês e não me cabe falar sobre, apenas de como pretendo remedia-la. Quando for rei me certificarei de que minha primeira ordem seja pagar essa dívida até a última criança. E terão a liberdade que deveria ser de vocês por nascimento!

O silencio que se seguiu foi doloroso. Lyvlin deu uma olhadela em Darian e viu sua confiança desmoronar lentamente. Poderia ter visitado o ringue dos renegados por anos, mas não fazia ideia de como aquelas pessoas viviam. Temia que o pequeno discurso tivesse piorado a situação quando Helea falou a frase que encerraria a questão.

– Eu confio no príncipe com a minha vida e as vidas de todos vocês. – envolveu o ombro de Darian com um braço e usou a outra mão para acariciar seu rosto – Olhem para ele. Não conseguiria fazer mal a uma mosca.

Quando haviam deixado a povoada câmera principal para trás Darian deu sua opinião.

– Me fez parecer uma criança. – disse para Helea que caminhava flanqueada por seus gêmeos – Mais um pouco disso e terão certeza que não serei capaz sequer de ser rei, quanto mais libertar quem quer que seja.

– Não, eu precisei faze-lo algo manipulável e inofensivo para tira-lo de lá vivo. Se quiser pode voltar e mostrar o pescoço nu para qualquer um deles. Garanto que até o mais velho deles tentaria sufoca-lo. – sua expressão se tornou seria – Foi leviano Darian, eles não estavam prontos.

– Preciso conhecer o povo que governei. Todo ele.

– E por mais certo que esteja, se Sestra tivesse que tocar em um deles que fosse para garantir a sua segurança o jogaria morro abaixo. Nu. Coberto de cortes superficiais e direto para dentro da agua salgada. – não havia eco de piada em sua voz.

Lyvlin reprimiu o riso diante da ideia e enfiou o cotovelo na barriga de Ezra, que havia se recolhido aos próprios pensamentos.

– Em quem Helea se transformou quando você a viu pela primeira vez? – quis saber enquanto Darian colocava Helea a par de sua campanha no norte vários passos adiante.

Ezra olhou para o chão e a luz das tochas não era suficiente para ver seu rosto.

– Ninguém. – respondeu.

– Não brinca. Fale a verdade!

– Eu já disse, ninguém!

– Ezra, eu pensei que fossemos amigos...

– Então pare de me irritar e acredite: ninguém.

– Você é um caso perdido. – declarou Lyvlin e apressou o passo para perguntar a Sestra sobre sua cimitarra.

Helea os guiou pelas demais câmeras, mas Lyvlin tinha certeza de que não estavam vendo todo o território dos renegados. E não a culpou, por mais bem intencionado que Darian pudesse ser, seu povo corria um risco considerável deixando que visse o que quer que fosse. Duas das câmeras eram menores e serviam como dormitórios precários, as camas eram pedaços de pano estirados no chão. Olhos arregalados os observavam e quando chegavam em Darian se tornavam desconfiados. Mesmo com vestes simples que poderiam pertencer a qualquer viajante aventureiro o príncipe denunciava seu status a cada passada. Havia coberto o rosto com o capuz de sua longa capa, mas bem poderia estar acompanhado de sua comitiva colorida e um arauto, o impacto seria o mesmo. Lyvlin entendeu que poucos renegados haviam visto o príncipe em pele e osso, já que isso significava estar fora da Caverna durante o dia e fosse passível de morte.

– Sua magia deve ajudar a andar despercebida pela capital. – disse Lyvlin a Helea.

A renegada lhe deu um olhar exausto.

– Por algum tempo. Estar na pele de outras pessoas me deixa cansada e entediada muito rápido. Tenho que evitar rastreadores também. Você já foi pega fingindo ser uma nobre vestindo nada além de um pano puído? É desconcertante, tentei virar metade do Monte do Rei antes de perceber que era inútil. Ao menos acharam que fosse louca e não investigaram a fundo. Fora isso, ainda me serve para trazer comida aos meus irmãos e irmãs. – virou-se para Miomir – Que dia temos hoje?

– Dia de Sydril, lorde Drasko deve doar novas provisões amanhã.

– E depois disso a viúva na semana seguinte e o mercador das docas na que virá depois – enumerou Helea com um sorriso taciturno – Mantemos um intervalo considerável entre as doações e escolhemos as pessoas com cuidado. Apenas aquelas que não perceberão o que está faltando ou tem tanto que não se incomodam de investigar.

– É arriscado. – disse Darian sob o capuz – Achei que estivesse mandando o suficiente.

– O que você e seu pequeno esquema rendem não nos manteria vivos por mais de uma semana e um ano tem um pouco mais que isso. De qualquer forma, não queremos os guardas se perguntando por que temos carne demais sobre os ossos, não é? É de remédios que precisamos.

Por mais forte que sua líder fosse, alguns renegados pareciam apenas estar esperando a visita da morte para descerem aos salões de Mavra. Lyvlin via-os se esgueirarem nas sombras, se contorcendo debaixo dos panos rasgados que usavam para se cobrir. Os que ainda estavam nos leitos não sairiam para trabalhar naquela noite. Estavam doentes demais para isso.

– Isso não é nada. – Helea disse com voz pesarosa – Os que me preocupam estão separados. Temo que meu povo seja melhor com veneno que cataplasmas. Doenças fervem na escuridão, os que veem o sol algumas vezes parecem ser mais fortes. A doença da Caverna, é como a chamamos. Os em melhor estado apenas reclamam de dores nas juntas, os que estão piores e os velhos apodrecem a cada dia. Quando tentamos coloca-los de pé não aguentam o próprio peso e caem. Os ossos quebram como vidro até não se levantarem mais e então simplesmente morrem. Não há nada que posso fazer para aliviar a dor.

– Temos curandeiros no Monte do Rei. – lembrou Lyvlin sem conseguir tirar os olhos de um velho. Estava parado demais em seu leito precário, encarando o teto da caverna com olhos vazios. Se estivessem no Monte do Rei aquele homem estaria a caminho de uma sepultura. Estava prestes a considera-lo morto quando deu uma arfada dolorida e fechou os olhos, grunhindo como se mover as pálpebras fosse suficiente para deixa-lo exausto.

– Mandarei Raoul. – prometeu Darian – Ele recebeu treinamento das mais habilidosas curandeiras de Adrahasis, encontrará uma solução ou ao menos uma forma de amenizar o sofrimento, tenho certeza.

– O rattriano. – Helea pareceu saborear a sugestão por um momento - Sim, suponho que ele possa servir. – ergueu um dedo no ar, lembrando-se - Se ele não tentar me matar novamente. Preferiria não morrer.

– Temos opiniões divergentes, mas eu sou o príncipe. Acabará vindo.

É o que eu quero ver. Pensou Lyvlin, mas ficou em silencio. Aquelas pessoas precisavam de ajuda se Darian esperava ter alguém para salvar no futuro. Se aproximavam da entrada da Caverna, mas havia uma última câmera que se colocava entre eles e a baia Dourada. Para alcançá-la Helea os guiou por um bom tempo por um corredor estreito.

O barulho de luta se tornava mais alto a cada passo e quando atingiram seu destino o que viu fez o queixo de Lyvlin cair e Darian se endireitar ao seu lado.

– O que o faz ter certeza de que esperarão até você ser rei? – Lyvlin sussurrou ao príncipe vendo uma menina ser jogada no chão e ser mantida lá por um pé em sua garganta.

Aos renegados não era permitido empunhar qualquer tipo de arma, nem paus ou pedras. Nada que pudesse ser usado para se sobreporem ao poder do rei. Tinham apenas seus corpos. E não precisam de nada além disso. Lyvlin pensou observando o que deveria ser o pátio de treinamento mais brutal que já vira. Os golpes eram desferidos na maior parte das vezes com as pernas, as vezes as duas de uma vez. Diante de seus olhos cerca de vinte jovens renegados tentavam derrubar suas respectivas duplas. Lyvlin viu uma garotinha escalar o seu oponente duas vezes maior que ela e o derrubar torcendo as pernas ao redor de sua cintura. O atingiu na nuca quando caiu, deixando-o desacordado e simplesmente se enfiou no combate da dupla que treinava ao lado quando terminou. Tinha feito o primeiro deles beijar o chão atingindo ambos calcanhares com um chute rasteiro quando Darian quebrou o silencio do grupo.

– Impressionante. Achei que apenas praticassem a arte sem armas em Lyle.

– Ideia da sua irmã. – disse Helea com orgulho – Nos enviou um mestre alguns anos atrás, se certificou que meu povo pudesse se defender quando chegasse a hora. Casiro era interessante... Me deu algumas aulas particulares depois de alguma insistência. Ele me disse que em Lyle é uma arte de nobres, mais como proteção que luta. O que é uma pena. Se algo pode ser usado como arma é o que pretendo fazer.

– Nasreen sempre foi selvagem e direta em seus protestos contra meu pai. – Darian disse e pela maneira como falara Lyvlin soube que não aprovava – Eu espero que consiga controlar isso Helea, mestres são conhecidos por poderem enfrentar um cavaleiro de igual para igual. Se meu pai soubesse...

– Ele não saberá. Esses jovens são toda a força que temos. Para ele seremos os escravos obedientes até o dia em que morrer. – riu ao ver um combate se transformar em briga – Oh, escravos são alimentados por seus mestres, não é? Imagino que estejamos ainda abaixo deles, mas não por muito tempo. Pelos deuses, pare de me olhar assim. Se quisesse Osric morto ele o estaria no dia em que meu pai morreu. Não queremos confusão agora, temos boas semanas pela frente. Em tempos de guerra os olhos do rei devem se voltar para o norte e suas mãos soltam os nossos pescoços finos.

– Se a guerra piorar todos sofrerão. – lembrou Lyvlin.

Helea lhe sorriu.

– Eu sei, não é formidável?

–x-x-x-

– Ela é louca. – Lyvlin saltou o ultimo metro do pequeno morro e alcançou Darian – A primeira coisa que fará quando sair daquela caverna é matar quem trouxe dor sobre os seus.

– Talvez o mereceríamos. – respondeu o príncipe, mas a visita aos renegados deixara marcas que iam além do rosto arruinado. Observara mais que falara e a garota vira seu cenho se franzir diversas vezes – Não temos escolha. Tenho uma dívida de sangue com aquele povo, salvaram a minha vida.

– Com a maneira que se comporta, alteza, temo que esse seja o caso com muitas pessoas.

Darian lhe deu um sorriso triste.

– Aprecio o que fez, não tinha ideia de que Helea e eu nos conhecíamos e mesmo assim... Obrigado. Poucos cavaleiros do Monte do Rei se colocariam entre mim e dezenas de renegados.

– Tem certeza que eram dezenas? Tenho certeza que contei ao menos trezentos.

– Dois, quinhentos, não faz diferença. – mudou o assunto - É o certo a se fazer.

– E o que os nobres senhores e senhoras dirão quando abrir as portas da Caverna?

– Você fala como Raoul e lhe darei a mesma resposta: eu não me importo. Terão que se acostumar a ser um povo novamente. Podem berrar e bradar insultos, talvez até tentar transformar ameaças em ação. As tentativas serão controladas, paz é o único fim aceitável nessa questão. Helea o sabe, ela ajudará seu povo a se reajustar.

Tinha dúvidas de que seria assim tão fácil, mas as guardou para si. O príncipe já parecia provar o gosto de suas ambições. E talvez estava certo e um decreto real seria suficiente para remover os problemas, como magia.

– Helea sabia da minha luminitsa. – mencionou enquanto cruzavam Caminho das Luzes. A agua se retraíra ainda mais para a baía. Em breve seria a hora dos renegados andarem pelas ruas.

– Magia não é algo incomum entre os renegados. Por vezes rastreadores são enviados para a Caverna, para procurar quaisquer pessoas que tenham o dom.

– Se não podem ir para a Academia, qual seu fim? – perguntou Lyvlin, certa de que não gostaria da resposta.

– Honestamente, não sei. Alguns dizem que são mortos, Helea apenas diz que arrancam as crianças do colo das mães para nunca mais retornarem. – puxou a bota da lama – Miomir disse que jamais as encontraremos. Vamos ver.

Lyvlin lançou um olhar para trás, onde Faye e Ezra estavam entretidos em alguma conversa. E entendeu a raiva contida que a maga carregava dentro de si. Teve medo de que saltasse sobre Darian e arrancasse seu coração uma vez que estavam longe da influência de Helea, mas a garota apenas mantivera a maior distância possível. Seguiram o restante do caminho em silencio, perdidos em seus próprios pensamentos. Era obvio que o futuro não seria assim tão simples quanto Darian desejava, mas também não conseguia se livrar da sensação de que agora era parte dele. Deveria ter me negado a ver Helea. Pensou desgostosa, assim não teria se jogado na frente de Darian e dormiria na ilusão de que Beltring era uma cidade decente. Tinha problemas o suficiente para lidar sem perder o sono sobre uma possível revolta dos renegados ou da expectativa de vida de Darian cair drasticamente quando lançasse seu primeiro decreto. A assustou o quanto se importava.

Quando alcançaram os muros de Beltring o príncipe se voltou para a dupla que os seguia.

– Eu preciso de um pequeno favor. – disse a Ezra e Faye – Há uma taverna a oeste do Mercado da Primavera, imagino que talvez a conheçam, sua fama a precede...

Faye cuspiu no chão.

– Desembuche alteza, não temos a noite toda.

Darian levantou uma sobrancelha, mas não se incomodou.

– O Barril Sempre-cheio. – continuou – Um dos integrantes da minha guarda pessoal ainda deve estar lá, preciso que entreguem a mensagem de que estou bem e que deve voltar ao Monte do Rei de imediato. Se trata de Raoul – acrescentou voltando os olhos cinzentos para Ezra – imagino que deve se lembrar dele.

Ezra assentiu e se despediu de Lyvlin, arrastando Faye atrás de si.

Lyvlin viu o amigo se afastar com um aperto no peito. A noite não havia saído como pretendia, mal tivera tempo de perguntar como estava. Mas quando alcançou o príncipe um sorriso havia surgido em seu rosto.

– Está com medo de Raoul. – acusou tapando a boca para não gargalhar. Metade de Beltring estava adormecida e a outra se preparava para dormir. Com ela munida apenas de uma adaga e acompanhada pelo herdeiro do trono não queria atrair atenção indesejada.

– Claro que estou e você também deveria estar.

– Não fiz nada de errado.

– Ah, é? – desdenhou o príncipe – Andar por Beltring depois do anoitecer, quebrando grande parte das regras da Academia e depois se enfiando na caverna dos renegados? Doce Lyvlin, minha ruína será a sua.

Lyvlin pensou sobre aquilo e bufou, arrancando um riso do príncipe.

– Eu não conto se você não contar. – propôs a garota enquanto subiam a ladeira para o Monte do Rei, haviam encontrado poucas pessoas no caminho, apenas guardas e um bêbado que parecia toma-la como sua mãe. Convence-lo da verdade havia sido difícil e no fim Lyvlin lhe dera um murro, para o desprazer de Darian.

O príncipe havia caído em silencio depois disso, mas ergueu o olhar diante de suas palavras.

– Posso dizer agora que não vai funcionar, mas uma tentativa não matará ninguém. Temos que dar a volta – falou quando cruzaram a ponte – Evitar o portão principal.

Lyvlin ficou grata de ter alguém para guia-la até a passagem secreta. Casimir lhe dera a chave e havia descrito como encontra-la, mas do lado de fora dos muros todas as pedras pareciam iguais. A luz da lua cheia banhava os muros da muralha externa do Monte do Rei, fazendo as pedras reluzirem em um tom leitoso nas partes em que não era coberta por musgos. Darian não hesitou e a levou até a extremidade leste, onde o penhasco era lambido pelas ondas da Baía Dourada dezenas de metros abaixo. A agua espumava e batia contra as rochas, mas com menos intensidade que estava acostumada. Dali poderia ver a parte da baía que pertencia aos renegados, agora que sabia onde olhar. Deu as costas para Darian por alguns segundos para observar as figuras minúsculas deixarem a Caverna. Um imenso êxodo lento em direção aos muros da cidade. Era difícil imaginar como não sabia de sua existência, a janela de seu quarto era voltada para a baía e costumava encostar em seu apoio e observar o mar quando não conseguia dormir.

– Temos que ir. – veio a voz de Darian atrás de si e quando se virou uma passagem se abrira na parede coberta de musgo salgado – Depressa, a lua está clara hoje.

Um corredor pedregoso atravessava os largos muros diante da dupla. Era desprovido de tochas nas paredes e Lyvlin encarou o buraco vazio. Parecia a boca de um imenso monstro.

– Está escuro. – disse, pensando que já tivera toneladas de pedra o suficiente sobre sua cabeça para um dia.

Darian fechou a mão sobre a dela e a puxou.

– São apenas vinte passadas. – garantiu e juntos mergulharam na escuridão.

O príncipe andara aquela passagem diversas vezes, seus passos eram firmes enquanto Lyvlin vacilava e mantinha a mão livre correndo pela parede fria. Cinco, seis, sete, oito...

– Agora que sabe do meu segredo imagino que deve querer algo em troca. – a voz de Darian ecoou pelo corredor vazio – “O príncipe de Vassand andando com renegados, pior, auxiliando renegados. ” – resmungou numa voz grave, para depois se explicar –Valras, nosso primeiro intendente. Em toda reunião ele sugere decapitar os renegados, para a irritação do meu tio.

– Sobremesa todos os dias seria um começo. – sugeriu Lyvlin – Um dia livre por semana, talvez o direito de espancar Lamar a cada dois...

– Você é uma mulher estranha Lyvlin. – observou o príncipe – Vai manter o meu segredo guardado?

– Até o momento em que poderei dizer “eu te avisei”. Tem a minha palavra. – viu uma luz tênue se intensificar adiante e seu coração voltou a bater no ritmo correto.

Darian deu um suspiro aliviado.

– Bom, então tenho um convite a fazer.

– Eu não vou a lugar algum com você. – disse rápido demais e acrescentou – Com todo respeito, alteza.

– Meus amigos me chamam de Darian. – a lembrou - Raoul e Everett me acompanharão, assim como uma pequena comitiva escolhida pelo rei. Não estaria sozinha tentando me manter longe de problemas. Apesar de se mostrar mais que capaz. – o príncipe empurrou a chave que trazia consigo para dentro da fechadura na primeira tentativa e abriu a porta para a armoria, revelando-a vazia exceto pelas lamparinas que queimavam solitárias – Batedores de Wodan foram vistos na costa de Ciandail e vilarejos de pescadores tem sido alvo de saques de piratas. Meu pai quer se certificar de que essas duas coisas não estão relacionadas. Uma tarefa simples, mas que terá seus momentos de aventura se tivermos sorte. – a olhou com os olhos cinzentos cheios de expectativa - O que me diz?