As Crônicas dos Três Reinos: Ciandail

O banquete e o que aconteceu depois (parte 1)


“Não gosto da maneira como me olha. Os olhos sorriem mais que seus lábios e não escondem o fato de que ele sabe. Sabe como atinge os generais e comandantes. Sabe que seriam capazes de qualquer coisa por uma palavra de elogio vindo de sua boca. Sabe como sua voz sussurra nos sonhos das jovens, lhes contando coisas que nem elas sabiam que seus corpos exigissem. E sabe que um dia também irei até ele. Mas estou disposta a provar que nem o príncipe está livre de erros. Estou disposta a fazê-lo vir até mim.”


Poeira voava em espirais contra a luz que adentrava o corredor de pedra. Parecia grãos de ouro determinados a tornar aquela cena algo muito próximo do surreal. O cobre no cabelo de Alec brilhava como as pontas de seu próprio cabelo que Lyvlin segurava, não sabendo bem por que. Havia libertado suas mãos do aperto daquele estranho e não soube o que fazer a seguir. Apenas percebia o olhar superior de Valdrin que parecia bastante entretido e o desconforto com que Alec deu um passo para trás, entrelaçando os dedos diante do colo.


Não se importou em quebrar o silêncio. Também não poderia fingir que se importava com Alec quando qualquer pessoa que conhecera até agora, com exceção de Lamar, lhe era mais próximo de um irmão que aquele rapaz desengonçado. Parecia doente também, com as veias aparecendo debaixo das bolsas escuras que emolduravam a parte de baixo de seus olhos. E acima de tudo estava ao lado de Valdrin e parecia lhe dever grande respeito, talvez até gratidão. Valdrin que quisera submetê-la a uma viagem forçada a Ciandail, que sussurrava as reuniões do conselho aos ouvidos do rei. Que ela não gostou de imediato de uma forma que acontece apenas quando estamos diante de um grande inimigo. Foi isso que sentiu ao pôr os olhos no homem de porte erguido e modos tão polidos quanto a melhor adaga do reino. Que seu irmão estivesse tão próximo de alguém assim a alarmou.

Irmão porque nem sequer passou pela sua cabeça duvidar daquelas palavras. A linhagem de Alec não estava impressa em seus cabelos ou qualquer outro aspecto de sua aparência, mas na forma como tudo havia se orquestrado para chegar a esse ponto. Raoul não lhe mentiria, nem o conselho. Não sobre isso. Lyvlin apenas teria preferido que lhe tivessem contado de imediato para não se expor a situação em que, novamente, alguém sabia algo sobre ela que lhe era desconhecido. Imagino se algum dia as surpresas encontrarão um fim.

– Se realmente é meu irmão. – falou em tom de exigência – Imagino que temos muito a conversar.

Alec deu um pequeno sorriso e seus ombros pareciam relaxar.

– Compreendo que tem muito a pôr em dia. – Valdrin comentou, pousando uma mão sobre o ombro de Alec – E eu tenho um pequeno passeio a fazer. Havia quase me esquecido de como Beltring é bonita nessa época do ano. Faz-me pensar se não deveríamos adquirir uma morada permanente para passar o verão, certamente o atrativo de usufruir de alguns momentos preciosos com sua irmã adorável é bastante apelativo.

– Ser adorável não é uma das minhas qualidades. E imagino que algumas pessoas não concordarão que seus momentos comigo tenham sido preciosos. – a garota respondeu, puxando a luminitsa para fora da camisa – Me deram uma coleira e tudo.

– Uma luminitsa, muito interessante. – falou Valdrin ainda que parecesse pouco impressionado – Parece que enfim encontramos a linair de Vaus. – olhou para Alec e lhe deu um sorriso – Acho que é seguro dizer que não te atormentarão agora.

Mais tarde enquanto caminhavam para nenhum lugar em especial Alec lhe explicou o que aquelas palavras significavam.

– O conselho estava bastante determinado a encontrar um linair quando o rei percebeu que Casimir não seria suficiente. – contou, caminhando com as mãos cruzadas atrás das costas e cabeça virada para frente. Não parecia ansioso para olhá-la, agora que estavam sozinhos.

– Achei que Casimir sempre seria suficiente.

– E ele será, mas entenda que por mais poderoso que seja, Casimir é apenas um. Isso quer dizer que sua presença seria garantia de resolução para grande parte dos conflitos, mas não se o conflito deixasse de ser um. Agora temos guerra civil no norte, Wodan espreitando as nossas fronteiras marítimas e rumores sobre um exército imenso se erguendo das dunas de Alkaid nos lembram de que Namtar ainda se mantém firme e forte apesar das condições inóspitas. E podemos ter desferido um bom golpe em Kerdis com a campanha do príncipe, mas não deve ser suficiente para garantir que nos deixem em paz.

Caminhavam sobre o paredão rochoso voltado para os jardins da rainha que rodeava a fortaleza. A muralha deveria ter cinco homens grandes de altura e era largo o suficiente para três soldados caminharem lado a lado sem que se tocassem na passagem entre os pedaços de pedra que fortificavam a parte superior da construção. O mar verde era coberto pela brisa salgada do cais e as últimas árvores começavam a florescer, o que as fazia parecerem atrasadas em relação a todo o resto. O labirinto de arbustos cuidadosamente cortados estava cheio de crianças de nascimento nobre e filhos de serviçais, que serviam tanto como companhia quanto como saco de pancadas, em alguns casos. Famílias que haviam se reunido com a volta da campanha de Darian aproveitavam a tarde antes do banquete festivo que fora anunciado para preencher a noite de celebração. Viu uma mulher com armadura completa abrir os braços para uma garotinha com tranças que voaram no vento quando esta começou a correr para alcançar a mãe. A guerreira a levantou no ar e a fez rir com rodopios até um homem surgir e dar as boas vindas de sua própria maneira. Não parecia se importar de ser observando enquanto enchia o rosto da mulher de beijos. Reencontros assim seriam cada vez mais raros se a situação piorasse, lembrou Lyvlin e desviou o olhar.

– Mas isso é a situação atual. – continuou Alec que parecia ter uma forte tendência a falar demais e gostar do ar de parecer importante enquanto o fazia. Nem parecia perceber as pessoas ao seu redor – O que aconteceu comigo foi há muito tempo. Deveria ter cinco anos quando começaram a me treinar em magia e levaram três anos para aceitarem que não tinha o mínimo talento para tal. E não era muito bom em aprender também. De qualquer forma, pela mãe que tivemos consideraram que talvez a minha magia estivesse adormecida e que era necessário apenas um estímulo grande o suficiente para acordá-la.

Lyvlin se lembrou da discussão do conselho quando tentavam decidir o que fariam com ela.

– Fizeram com passasse pela Provação. – ela disse e encarou o irmão em busca de sinais que o comprovassem.

Mais tarde saberia que estavam em todos os lugares. Na maneira que falava, cravada em sua pele, em seus gestos e em seus sonhos, principalmente em seus sonhos. Mas agora via apenas um garoto pálido demais, com olhos fundos e que fez uma careta diante da menção da prova pela qual os aprendizes passavam no caminho de se tornarem magos.

– Sim, ainda que eu não tivesse muito a provar. Sabia apenas os feitiços mais básicos e estava a anos do ponto em que aprendizes costumam ser submetidos. Fui um desastre, naturalmente. – falou em tom monótono.

– Deve ser uma série de testes um tanto quanto severos. – Lyvlin havia visto aprendizes chorarem diante da simples menção do evento. Muitas vezes não era nem eles que a enfrentariam. Outros ignoravam o medo ao redor e tentavam se focar e confiar nas habilidades. O que no final não lhes dava vantagem alguma.

Por não ter começado seu treinamento com magia Lyvlin imaginou que estava longe da Provação, mas isso não a alentava muito. Ninguém falava sobre o que realmente acontecia dentro da câmera localizada nas masmorras mais profundas da academia. Alguns diziam que a localização ajudava a abafar o grito dos candidatos e era a única coisa que possibilitava uma boa noite de sono quando um grupo era testado. Normalmente era iam em grupo, mas apenas uma pessoa por vez poderia entrar. Lyvlin havia prometido a si mesma que seria a primeira quando o momento chegasse depois de ouvir que tiveram que arrastar o corpo de uma garota para fora depois de horas sem sinal de vida e que entre o restante houve quem desmaiasse e vomitasse diante do estado em que seu corpo se encontrara. Urobe lhe dissera que isso era uma absoluta exceção, que a maioria passava pelo teste sem grandes problemas, mas não tinha muita certeza disso. Os aprendizes que passavam pelo teste se recusavam a dizer uma palavra sobre o que acontecera dentro da câmera e muitos começavam a tremer e arregalar os olhos quando insistiam no assunto. Holly, uma menina de quinze anos que passara pela Provação em tempo recorde e que Lyvlin conhecia apenas de vista, ainda acordava duas semanas depois de tropeçar para fora dos portões negros banhada em suor, gritando até que enfiassem a ponta do lençol em sua boca porque do contrário não descansaria até sua garganta estar em carne viva.

– É diferente para cada pessoa. Quando os mestres entram para iniciar a cerimônia é como uma grande caverna, mas é tocada pela magia. Transforma-se dependendo de quem pisa nela. Para alguns são monstros terríveis que sugam suas energias e te deixam de punhos vazios, para outros fantasmas que os atormentam até flertarem com a loucura. Todos enfrentam situações em que tem que usar sua aprendizagem arrecadada ao longo dos anos e usar astúcia e sabedoria mais que a magia propriamente dita. – explicou Alec – Não é por acaso que chamam de teste de coragem e resistência mental.

Lyvlin chutou uma pequena pedra do caminho. Não parecia muito animador.

– E o que foi para você?

– Dor. – disse com simplicidade e pela primeira vez lhe faltou saliva para falar. Ou coragem.

Haviam alcançado a torre do portão. Os estandartes com os símbolos das casas mais poderosas do reino balançavam com tanta força com o vento que era impossível ouvir qualquer coisa que fosse. Decidiram por descer e continuar em direção aos jardins, Lyvlin ainda tentava tirar os cabelos do rosto quando fez a pergunta que estivera presa na garganta desde que pisara em Beltring.

– O que você sabe sobre nossos pais? - “nossos” teve uma sensação estranha em seus lábios depois de proferi-lo. Não se lembrava de nenhum deles, mas também não queria dividi-los com ninguém. Ainda menos com um completo estranho.

– Somos gêmeos, minhas lembranças não se estendem muito além das suas.

Lyvlin parou de andar e o encarou.

– Se pretende me convencer de que todos esses anos morando aqui não lhe deram nenhuma ideia sobre como eles eram, deve achar mesmo que sou muito estúpida. Tenho pouca paciência para quem tenta manter meus olhos fechados. Imaginei que seu amor fraternal recém-descoberto poderia lhe aconselhar o que fazer.

– Eu não morei aqui todos esses anos. – falou Alec que parecia ter levado uma tapa no rosto com cada palavra que ela proferira – Fui criado nos vales de Yldûn, onde Valdrin possui terras. Quando a academia achou que estava pronto para ser iniciado nos treinamentos com magia fui arrastado para cá e acredite, não foram anos bons. Quando sucumbi na Provação Valdrin me libertou e finalmente pude voltar para casa. Não imagine por um momento que foi fácil ou agradável. O que você enfrentou nessas poucas semanas consistiu boa parte da minha vida.

– Então sabe o que estou sentindo. – murmurou Lyvlin e se retraiu. O tamanho de sua solidão era tão grande que a encobria por inteiro e a fez ver que Alec não sabia. Alec pertencia a algum lugar, pertencia às terras do vale e sempre poderia voltar. Não pertenço a lugar algum. Pensou enquanto tentava ver nos olhos escuros de seu irmão algo que reconhecesse. Mas não havia nada lá, como também não havia nada para ela em Evion. E como jamais haveria naquela capital.

– Sei que não quero esconder nada de você. – Alec olhou para os estandartes que lutavam contra o vento no topo da muralha – Às vezes tento imaginar se viram as mesmas coisas. Se também achavam o galo de campina dos Syrma um tanto quanto mal desenhado ou se gostavam das cores dos Mizar. – deu um pequeno sorriso e olhou para o chão – Sei que parece muito estúpido, mas vê-los como pessoas comuns foi a única coisa que me permitiu respirar enquanto o peso de sua fama comprimia meus ombros. Thomas Ersekine, esse era o nome do nosso pai. Valdrin me disse que nasceu e cresceu em Rattra. Ouvi dizer que sua família era rica e próspera, mas que lhe viraram as costas quando não quis se tornar sacerdote em um dos maiores templos dedicados a Sydril. Foi uma afronta tão grande que o expulsaram de suas terras. Imagino como reagiram quando o burburinho sobre a nossa mãe e ele estarem juntos se tornou tão alto que alcançou as terras arenosas do norte.

“Vendeu uma joia com o emblema da família e comprou sua passagem a bordo de uma galé mercantil. Ainda falam hoje que era apenas um rapaz coberto de poeira, exausto e faminto quando desembarcou no cais depois de semanas de viagem. Mas sua perícia com armas logo lhe garantiu um lugar como novato no exército do rei. Dizem que apenas voltou a pisar em terras rattrianas durante a campanha que aprisionou Layil e se perguntar a qualquer moça que carrega água nas praças da cidade vão lhe dizer que se apaixonaram na primeira vez que se viram. Não acredito que seja verdade, dadas às circunstâncias em que o encontro se deu e conhecendo o pouco que sei sobre Layil. De certo apenas que era um guerreiro exímio e possuía a fama de ser justo e correto com aqueles que conhecia, o que lhe rendeu uma rápida ascensão. Não lhe cansarei com as batalhas que conseguiu virar para o nosso lado apenas pela astúcia e coragem, o cargo que recebeu como homem de confiança de Coran deve ser suficiente para lhe dar um pouco do que ele era para Vassand e para seu povo. Alguns dizem até hoje que se não tivessem morrido, Coran o teria nomeado como seu segundo e trabalhando juntos teriam posto fim a todos os males do reino.”

Lyvlin escutou tudo aquilo em silêncio. Gilbert não contara apenas mentiras para ela, então. Tinha um sentimento misto quanto a isso, metade raiva, metade saudade. Então seus pais tinham se sobressaído nos dois lados. Thomas como estrategista, líder e combatente. Layil como maga que desafiara não apenas o rei, mas também a academia. Layil que nunca deixara ninguém lhe dizer o que fazer. Era uma realização tão bonita que quis correr para o alto da muralha e se jogar. Alec tinha razão, talvez ter sido criada longe daquelas sombras gigantescas havia sido mais saudável. Também parecia mais saudável que o irmão, por assim dizer. Quantas vezes teria passado por um grupo que ria, apontando que aquele não poderia ser o filho de Layil e Thomas?

– Como morreu? - quis saber. Porque a forma como um guerreiro morre importa tanto quanto seus grandes feitos, havia ouvido Dardan gritar para uns recrutas receosos alguns dias antes. “Se não segurar essa espada direito vai acabar se cortando, sua carne vai ficar podre e vai morrer numa cama gemendo como um bebê!” gritara, aterrorizando o rapaz de uma forma que largara o pedaço de aço no chão.

– Você não viu o que restou da nossa casa. – retrucou Alec, sem responder nada – Não tiveram coragem de derrubá-la por inteiro. Acho que é, além das constantes crises existenciais, a única herança que temos.

– Ninguém me falou sobre ela.

– Porque não há muito que falar. É apenas um monte de cinzas, madeira enegrecida pelo toque das chamas e mais cinzas. Queimou quase que completamente e nosso pai queimou com ela. Parvana diz que não viu quando Layil saiu com você no colo, montou no cavalo mais próximo e desapareceu no meio da noite. Teve que se certificar de que tudo estava bem, também não sabia que eu estava nos braços da serviçal e que nada além das chamas o aguardavam no interior daquela casa.

Um incêndio. O velho lunático que visitara com Cenna também falara de um lugar tomado pelo fogo. Agora suas palavras não pareciam tão enlouquecidas.

– Enquanto nossa mãe te carregava para longe fui deixado aos cuidados de uma velha que servia em nossa casa. – Lyvlin ouviu o rancor em sua voz, mas nada disse – Uma vez que foi comprovado que Thomas estava morto não restava ninguém para olhar por mim a não ser Parvana com seus acessos de choro e cuidados excessivos. Talvez deva apresentá-las algum dia, aposto que adoraria chorar um pouco sobre seus ombros depois de tantos anos sem notícia. Uma pena ter deixado-a no vale.

– Obrigada por me contar. – a figura de Thomas se tornara um pouco mais nítida em sua cabeça. Como também o rancor que Alec tinha guardado em relação à Layil por todos estes anos. Não lhe contaria que passara todo esse tempo impedindo que chegassem perto dela, sejam servos de Vaus ou enviados do rei. Era bastante claro que o rapaz se sentira completamente abandonado. Ainda assim, tivera um pedaço de sua antiga vida por perto a todo o momento. Queria conhecer Parvana, porque imaginava que teria muitas coisas para lhe contar sobre seus patrões e sobre como tudo costumava ser. Tentava não pensar em como as coisas teriam sido se Layil não a tivesse levado para o norte. O que te assustou tanto, mãe?

– É algo que deveria saber. Os tempos não parecem bons para o futuro de Vassand, imagino que as pessoas tenham se esquecido de como é importante contar o passado. – a olhou- Especialmente quando é o nosso passado. Parece que já criou um nome para si nessa sua curta estadia no Monte do Rei.

– Não me chamam de idiota, não é? Ou tormentadora de mestres ou pirralha malcriada? Tenho tido muitos nomes desde que cheguei. Pode escolher qualquer um de sua preferência.

Alec deu um riso rouco que se transformou em um acesso de tosse.

– Asseguro que não seja nada dessa natureza. – ele falou - Dizem que Layil voltou a andar pelos corredores da academia.

– Isso não é verdade. Layil está morta.

– Sim, está. – Alec concordou – E você não é e nem deve almejar ser igual ao que ela foi.

– Porque seria impossível. – suspirou Lyvlin, olhando para um grupo que descarregava verduras para o banquete. Os serviçais carregavam sacos e mais sacos para dentro da fortaleza – Ela é inalcançável.

Alec pousou a mão sobre seu ombro, chamando sua atenção.

– E o é por um motivo. Você não deve querer ser nossa mãe Lyvlin, porque ela não foi de longe uma pessoa sem falhas. No fim do dia vai querer poder deitar sua cabeça no travesseiro e ter uma noite de sonhos sem tormentos.

– Do que está falando?

– Que nem os gigantes estão livres de cometer erros. E que não haverá pedra grande o suficiente para se esconder atrás quando chegar a hora de pagar por eles. – Alec lhe deu um abraço e acariciou o topo de sua cabeça – Devo ir e você deve ter algumas horas de descanso antes do banquete.

– Não imagino que seja convidada. Insultar metade da academia, o rei e alguns guardas não parece ser o caminho mais curto para entrar nas grandes festas. – a verdade é que esperava não ser convidada. Tinha planejado aproveitar o tumulto ao redor do príncipe e sua comitiva recém-chegada para escapar para a cidade e encontrar Ezra.

– Aposto que conseguimos pôr algumas boas palavras sobre você na roda. Esteja pronta antes do anoitecer, parece que teremos algumas boas performances antes do banquete. Foi bom revê-la irmãzinha, fazia tempo demais.

Observou Alec dar as costas antes de suspirar. Então nada de escapada para a cidade. Queria saber o que Ezra acharia disso tudo. Algumas horas antes escapara da morte certa, agora havia ganhado um irmão. Eram duas coisas com as quais esperava não ter que lidar ao amanhecer e mais uma prova de que Beltring ainda escondia segredos que não se revelariam sozinhos. No caminho para a academia decidiu que apertaria Alec durante o banquete para que lhe contasse o que quisera dizer com as últimas frases. Parecia ser do tipo que tinha a irritante mania de deixar no ar que sabia muito mais do que estava disposto a contar, mas também não era de todo mal. Se não tivesse sido criado por Valdrin seria capaz de gostar dele de imediato.

Passava pelas duas estátuas erguidas diante da grande construção quando viu Casimir descer as escadas. Estava decidindo se fingiria uma cegueira instantânea ou se balbuciaria qualquer coisa quando passariam um pelo outro quando ouviu o bater de asas e um chamado conhecido acima de sua cabeça.

Astaroth pousou em seu ombro no momento que Casimir a viu e Lyvlin havia se decidido pela cegueira quando o homem veio em sua direção.

– Seu pássaro gosta de mim. – disse, decidindo-se por algo que não soasse tão leviano.

Astaroth piou alegremente e quase arrancou metade de sua orelha em resposta.

– Ele não é meu pássaro. E sempre teve mau gosto. – disse Casimir. Havia se livrado das roupas de viagem e voltara a uma de suas túnicas sóbrias. Usava uma ajustada ao corpo, de tom marrom escura com pequenos adornos prateados nas mangas e na gola. As calças tinham sido tingidos da mesma cor e partilhavam do mesmo tecido nobre. Deveria ser o que estivera fazendo enquanto Darian enfrentava a ira do pai – Não mentirei, imaginava que tivesse conseguido morrer a esta altura.

– Não foi um dia sem surpresas para todos então. Alguns descobrem irmãos perdidos, outros têm suas expectativas frustradas. – tentou afastar Astaroth e recebeu uma bicada nos dedos em resposta – Você poderia tê-lo adestrado melhor.

– É um falcão selvagem, não precisa ser adestrado. – Casimir estava com os cabelos soltos e seus olhos castanhos estavam menos severos quanto da última vez em que o viu. Quando tivera que interrompê-la antes que causasse uma destruição maior, lembrou quase envergonhada. E um tanto orgulhosa também.

– Mas me entendeu errado. – continuou - Não esperava que morresse, apenas imaginei que não conseguiria controlar sua magia.

– Nada que um rastreador e uma pedra mágica não conseguissem resolver.

– Sim, o conselho me contou sobre a luminitsa. E lhes falei que era perda de tempo. O rei não ficará satisfeito até vê-la em batalha e isso será impossível sem o treinamento adequado.

– É o que tentei dizer também, em meio a acessos de raiva e ataques de magia sem grande finalidade. Não consigo compreender os motivos que os faz pensar que seria boa ideia me soltar em meio a crianças e mestres idio – pouco pacientes.

Um pequeno sorriso brincou nos lábios de Casimir.

– Mestre Alain nunca me agradou muito. Mas jamais o joguei pelos ares, por mais tentado que estivesse. Quanto aos seus questionamentos, o conselho simplesmente é orgulhoso demais para se voltar às pessoas necessárias para sua instrução. – sua expressão se fechou - Ou não desesperado o bastante.

– O rei não parece disposto a esperar até que decidam tomar uma iniciativa.

– Não está. E pela primeira vez isso pode significar algo bom. Venha – falou dirigindo-se a Astaroth – Sabe que não pode entrar na academia.

O falcão piou indignado, depois saltitou para o braço estendido do homem.

– Parece ter desenvolvido um apego por você. – notou em tom de dúvida – Precisei de semanas para fazê-lo confiar em mim.

– Só lhe dei alguns petiscos e antes que pudesse perceber já tentava arrancar alguma parte do meu corpo quando demorava a fazê-lo.

– Espero que não o tenha acostumado mal.

– Está vivo, não está?

– Certamente o parece. – falou acariciando a cabeça do animal com o indicador.

Astaroth fechou os olhos diante do carinho e a dupla se afastou.

A academia estava fervilhando por causa dos magos recém-chegados. Grupos se amontoavam pelos corredores exigindo saber todos os detalhes do que se passara no norte, mas a garota não se sentiu bem-vinda a nenhum deles e por isso subiu as escadarias até seu dormitório individual.

Não sentia como se aquela fosse sua casa, mas também se surpreendia como o sentido por trás da palavra poderia mudar. Às vezes casa era para onde se volta para dormir, às vezes é o amontoado de algumas pessoas específicas. Ezra costumava significar casa depois que deixara Evion, mas agora parecia estar se adaptando a nova realidade e se saindo muito bem sem ela. Uma parte se irritava com isso, outra ficava envergonhada por sequer pensar algo assim. Queria que o rapaz se sentisse bem depois de deixar sua família para trás pelo que quer que Gilbert tivesse falado a ele, mas também queria que dependesse dela de alguma forma. Pensava sobre isso e sobre se o sorriso de Alec assemelhava-se ao dela quando as pálpebras ficaram pesadas. Deitou-se na cama, lembrando-se das palavras do irmão. Deitar a cabeça no travesseiro e ter uma noite de sonhos sem tormentos. Estava aí algo que estava conseguindo fazer. Talvez não estivesse completamente relacionado a uma consciência limpa, mas com treinamentos puxados que a faziam desmaiar sobre os lençóis todas as noites. E a isso ela era muito grata.