As Crônicas dos Três Reinos: Ciandail

O banquete e o que aconteceu depois (parte 2)


“Não gosto da maneira como me olha. Os olhos sorriem mais que seus lábios e não escondem o fato de que ele sabe. Sabe como atinge os generais e comandantes. Sabe que seriam capazes de qualquer coisa por uma palavra de elogio vindo de sua boca. Sabe como sua voz sussurra nos sonhos das jovens, lhes contando coisas que nem elas sabiam que seus corpos exigissem. E sabe que um dia também irei até ele. Mas estou disposta a provar que nem o príncipe está livre de erros. Estou disposta a fazê-lo vir até mim.”


– Não vou vestir isso.

Lyvlin se afastou o máximo que podia do vestido estendido em sua cama como se fosse pegar fogo a qualquer momento. Puxou a cadeira velha que havia arranjado para combinar com a mesa torta e raquítica de seu quarto e a colocou diante de si. Apenas para ter certeza.

Desmera suspirou.

– Você sabe que não pode ir ao banquete com roupas de treino.

– Por que não?!

– Porque não é educado. Porque Raoul me mataria. Porque as pessoas comentariam por semanas como não tem a mínima ideia de como se portar em festejos.

– E elas estariam certas! Não faça isso comigo Desmera, por favor! – implorou depois seu rosto se iluminou – Você conta a Raoul que estou doente e eu faço meu melhor para parecer próximo à morte se alguém vier checar. E todos saem felizes e sem traumas.

A jovem ergueu uma sobrancelha. Seus longos cabelos estavam meio trançados, meio amarrados e meio soltos. Uma confusão muito bonita que deveria ter levado horas para ficar pronta e que Lyvlin nunca queria experimentar. Também usava um vestido, porque para ela aquilo era tão natural quanto caminhar com algo comprimindo a cintura por debaixo das vestes. Era de um tom de vinho que fazia a cor morena de sua pele saltar aos olhos, justo na cintura e fluía esvoaçante para baixo. O tecido sozinho era um tanto quanto transparente e precisava de algumas camadas onde era necessário, sendo amarrado nos ombros por nós que pareciam em risco imediato de se abrirem e revelavam todo o corpo da jovem. Um broche com o falcão dourado de Rattra emoldurado por uma peça de ouro dava a ilusão de estar mantendo tudo no devido lugar. Claro que era fácil para ela, qualquer vestido que Lyvlin usaria a faria parecer como se usasse um saco de batatas.

A opção que a jovem escolhera para ela parecia completamente amedrontadora. O tecido fora tingido de lilás, em um tom tão claro que jamais havia visto antes. E também parecia ter duas camadas, a primeira num tom tão pálido que se assemelhava ao branco, o segundo em um lilás profundo. Ambos eram tão leves que com certeza a fariam sentir frio e pareciam desconfortáveis. Preferiria correr trinta voltas ao redor do pátio de treinamento a se enfiar dentro daqueles vestidos.

– Mas tem detalhes na parte de baixo, vê? - perguntou, levantando o vestido e revelando algumas linhas púrpuras que formavam rosas e espirais – É adorável. É um tipo de costura muito apreciado em Rattra, nem Atyia poderá falar mal da sua escolha.

– Não é minha escolha. – segurou um pedaço do tecido entre o dedão e o indicador – Como isso vai ficar preso? Sou muito menos favorecida que você nesta área.

Desmera deu uma risada.

– Fala quase como um menino teimoso. Vamos, tire essas roupas porque o tempo para se banhar você passou dormindo. – e antes que pudesse se afastar segurou a sua camisa e a puxou por cima de sua cabeça.

– Por que tenho que colocar todas essas roupas por baixo? – Lyvlin quis saber fazendo o possível para não se mexer enquanto a jovem a vestia com um leve vestido que tinha uma sensação boa sobre a pele. Uma pena que não poderia ir assim sem que toda a corte visse os bicos de seus seios.

– Porque não quer sentir frio. Nem chamar a atenção dos rapazes além do desejado. – deu uma piscadela, amarrando o traje nas costas e já pegando a parte interior do vestido propriamente dito.

– A única atenção que eu quero de um rapaz é a de ver que está perto da morte. – respondeu Lyvlin se lembrando de Lamar. Se o encontrasse teria dificuldade para se controlar, armas eram provavelmente proibidas em eventos assim. Talvez fosse melhor. Não pretendia roubar a noite gloriosa do príncipe com um assassinato diante de toda a corte.

Desmera deu um novo risinho.

– É assim que as coisas costumam começar. – comentou em tom distante.

– Não quero que comece, quero que termine. – levantou os braços com obediência – Pronto, acabou?

Desmera deu um último nó que fez suas costelas doerem e se afastou para inspecionar seu trabalho.

– Ainda não. Temos que fazer algo com seu cabelo.

– Podemos penteá-lo. – sugeriu Lyvlin esperançosa. Isso levaria apenas meia hora.

– Sim, suponho que deveríamos.

Acabou fazendo muito mais que isso. Quando tirou as mãos os cabelos de Lyvlin estavam trançados de lado, de uma forma que lhe era estranha, mas deveria estar razoável porque quando se distanciou os olhos de Desmera brilhavam.

– Está linda. – disse – O vestido combina tanto com seus olhos Lyvlin.

– Imagino que sim. – Lyvlin respondeu em tom duvidoso. Para ela já era suficiente por tirar as mechas de seu rosto.

O vestido a fazia se sentir errado. Apertava em lugares que normalmente eram livres, revelava pele que estaria coberta em outras ocasiões. Também não a deixava se mover direito.

– Ah, mas como sou tola. – comentou Desmera e se adiantou para tocar a sua testa com o indicador.

Lyvlin quase perdeu o equilíbrio quando se viu através dos olhos de Desmera. Tentou mudar a direção de seu olhar, mas a imagem permaneceu fixa.

Não se incomode, estou lhe emprestando meus olhos para que veja como está bonita. A voz de Desmera ecoou em sua cabeça com gentileza. Ou talvez na cabeça dela. Todos os demais sentidos lhe estão obscuros, para não atordoá-la. Não tente mudar nada, apenas observe. Lyvlin arregalou os olhos e seu reflexo diante de Desmera a imitava. Grandes olhos violeta brilhavam a luz da lamparina em cima da mesa.

– Estou bonita. – conseguiu dizer e experimentou uma sensação atordoante ao se observar falando – Meu cabelo está diferente. – disse, tentando tocar a trança elaborada e errando por mais de um palmo.

Desmera afastou seus dedos com delicadeza, depois afastou a mão da garota para longe de seu ouvido.

– Não pode mexer Lyvlin, ou a trança se desfaz.

– Ah. – murmurou, em transe. Vira a cena através dos olhos de outra pessoa, mas caso se tratasse de um espelho sabia que não seria assim tão diferente. Quase não se reconhecera. O tecido fluía de seus ombros e percorria seu corpo tão próximo a sua pele que a fez corar.

– Nunca vesti algo tão apertado.

– Não é apertado. – explicou Desmera – Apenas não é do tamanho que um homem crescido usaria.

Lyvlin deu uma pequena risada e a escondeu por trás das mãos.

– Não, imagino que não usaria. – concordou – Isso de entrar na mente dos outros...

– Entrar na mente dos outros é estritamente proibido para todos os magos de Sydril. Em tempos de guerra essa regra pode mudar, caso seja para arrancar a verdade de um espião ou desestabilizar um batalhão inimigo. Mas isso quem decide é o conselho e se tivesse entrado na sua mente teria reservado uma cela pouco confortável para o resto da minha vida. – afastou um fio que insistia em cair em seu rosto - Eu lhe permiti enxergar através dos meus olhos e lhe emprestei meus pensamentos. É algo que nem todos os magos sabem fazer e exige muito autocontrole isso – Desmera apontou para seu colar – me poupou grande trabalho. Não sei se me arriscaria a fazê-lo com sua magia liberta porque a experiência pode ser um tanto estranha para quem está do outro lado. Talvez sem querer liberasse sua magia diante da aparente ameaça e as coisas não ficariam bonitas.

– É um pouco nauseante. – admitiu a garota – Mas útil. Não tivemos que roubar o espelho de algum outro dormitório e isso é uma pequena vitória. – levou a mão ao ombro direito e nada sentiu, mas sabia que debaixo de seus dedos estava a marca de Vaus – Talvez isso não seja algo muito agradável aos olhos. – disse em tom sério.

Não dava muita atenção aos pensamentos sobre o dia em que recebera sua luminista. A sensação de ter o deus bloqueando qualquer rota escapatória ainda a perseguia todas as noites, quando as coisas ficavam tão escuras quanto a própria Anwar. E quando acordava a primeira coisa que fazia era levar os dedos de encontro à marca e fazer o melhor para conseguir vê-la torcendo o pescoço o máximo que conseguia. Sempre estava lá, claro, esperando para ser inspecionada com olhos esperançosos. Não sabia o que esperava, mas o desenho negro como piche debochava dela e lhe dava bom dia todas as manhãs. Ela o calava com camisas e gibões de couro desgastados. Agora estava livre e cada momento que estava bebendo ar parecia mais escuro.

– Pensei nisso também. – Desmera falou, revelando uma capa de seda em um tom azul profundo – Aqui – ela disse, cobrindo os seus ombros com o tecido e amarrando o cordão prateado com seus dedos ligeiros – É bonita o suficiente para manter durante todo o banquete e encobertará certas inconveniências da forma como preferir.

Assentiu, sentindo que agora estava um pouco mais preparada para lidar com os olhares curiosos da corte. Aquela capa seria seu escudo e era agradecida a Desmera pela sensibilidade.

Convencer a maga de que não usaria o calçado especial que separara para ela fora mais fácil que imaginava e pode ter sido alcançado pelo curto tempo que tinham antes de estarem oficialmente atrasadas. Mesmo com o suspiro derrotado da amiga Lyvlin não voltou atrás. Nada a faria enfiar os pés naquela coisa branca alta demais na parte posterior. Nada. E a verdade era que o tecido lilás cobria seus pés, deixando apenas as pontas de suas botas à mostra quando andava. Que estivessem sujas de lama e gastas pelo tempo não importava para ela. Estava abrindo mão de seu conforto naquela noite, mas seus dedos dos pés precisavam ter espaço suficiente para se mexerem.

Lyvlin percebeu no momento que adentraram o salão que não teria que se preocupar com atrair atenção indesejada. Na verdade as pessoas não poderiam notá-las nem se quisessem, pois o lugar estava emerso na escuridão. Escuridão que era apenas interrompida por feixes de luz que ziguezagueavam pelo ar, formando curvas, explodindo em cores e desenhando no breu como se este fosse um imenso pergaminho em branco. Desmera a puxou para o lado e ficaram em pé ao lado dos portões, que era a posição mais segura já que não queriam cair por cima de ninguém. Os feitiços das mais diversas cores passavam iluminando as pessoas por curtos momentos, fazendo curvas ao redor delas para então se espalhar sobre o teto formando figuras que batalhavam, sangravam e faziam as pazes.

– É a história do Unificador. – sussurrou Desmera ao ouvido de Lyvlin - Ele vai unir os três exércitos para expulsar a ameaça sombria de uma vez por todas.

E assim a imagem luminosa do guerreiro em armadura e cabelos longos fez. No teto do salão começavam a surgir criaturas que se juntaram em um gigante que investiu contra o herói. O Unificador fez uma finta e assoprou um corno. O som se propagou por todo o salão e fez Lyvlin tapar os ouvidos. Em resposta ao chamado surgiram três figuras altas, que se ajoelharam diante do Unificador para então se separarem em milhares de pequenos pontos que atacaram o gigante por todos os lados. O Unificador deu o golpe final, fazendo o gigante desparecer em uma poeira luminosa, cujo pó voou de encontro ao público abaixo que começou a gritar e aplaudir. O Unificador recebeu como recompensa uma coroa e a bela Melara que se materializou ao seu lado em tons prateados, régia e imponente. O seu vestido era névoa azul e prateada e brilhava como o céu estrelado. A dupla na abóboda do salão se tornou cada vez maior, até explodir em partículas luminosas que varreram o salão e deixaram para trás um jorro de luz que iluminou todos os candelabros.

– Isso foi bonito. – comentou Lyvlin com o coração batendo descontrolado. Queria que alguém a tivesse alterado, porque por um momento acreditou que estava realmente sob ataque. Agradeceu mentalmente pela sua magia estar selada.

Desmera anuiu.

– Apenas queria que mudassem o espetáculo. Sei que se requer algum tempo para estar pronto, mas era de se esperar que depois de tantos anos mudassem o repertório. Ou contassem alguma versão mais realista. O Unificador foi um grande herói, não por ter expulsado os atacantes e ter dado fim a uma guerra de séculos, mas por ter conseguido unir três reinos por uma causa comum. Que tenha se consagrado como primeiro rei de Vassand não foi pela perícia com que manejava uma espada, mas por ter conquistado o respeito e confiança de pessoas que não viam nada além de inimigos em terras vizinhas. Ele lhes ofereceu uma visão diferente, o reino foi uma consequência.

Para Lyvlin aquilo havia sido a coisa mais bela que vira na vida, por isso não entendeu a reclamação da jovem. As pessoas começaram a se imprensar umas contra as outras e o burburinho que se instaurara depois do espetáculo cessou. Imaginou se algo estaria errado, quando Desmera segurou a sua mão e, pedindo desculpas a cada pessoa que empurrava para o lado, a levou mais para frente. Quando tinham apenas crianças diante de si parou, deixando Lyvlin contemplar o círculo vazio que se formara no meio do salão.

O rei Osric estava em uma posição elevada, ao seu lado estavam Lorde Harlas e a rainha Aiyanna. Alguns degraus abaixo Darian estava de pé com Everett murmurando qualquer coisa ao seu ouvido e Raoul com semblante impassível ao seu lado. O que quer que tenha sido, fez o príncipe rir sem jeito e o rattriano revirar os olhos.

– Ah – ouviu Desmera dizer – Acho que Mehalia vai fazer uma apresentação.

– Lady Mehalia?

– Em Rattra é costume – começou Desmera, mas então mudou de ideia – Você verá. Será melhor que a lenda do Unificador, isso eu prometo.

Um corredor se abriu em meio às pessoas e por um longo momento nada aconteceu. Quando o menino diante dela começou a reclamar para sua mãe Lyvlin ouviu o barulho de sinos. O leve tilintar se tornou maior até tomar todo o salão. Mulheres vestidas com os trajes mais ricos que Lyvlin já vira irromperam no círculo vazio, enchendo-o de cores. Todas pareciam ser damas de companhia de Mehalia, até que a própria apareceu e ocupou a posição do meio. Vestiam dourado e prata, vermelho e azul, verde e púrpura. Mas todas as suas roupas deixavam a região da barriga descoberta, onde pequenas pedras preciosas desciam em fios que chacoalhavam com o movimento de seus corpos, compondo suas próprias melodias. A pele negra das dançarinas estava coberta com desenhos e símbolos dourados.

– Isso é...?

– Ouro, sim. – sussurrou Desmera – Rattra põe muito valor em expor a sua riqueza. Ainda mais em tempos difíceis. Vê todas as cores nas pálpebras e lábios? Pó de rubi e esmeralda. E de diamante, safira, aquarmarina, opala... É mantido sobre a pele por uma mistura de mel e água. Temos grandes simbolismos para cada pedra, é uma dança de batalha e ostentação. De morte e vida. Bom, você entende.

E como entendia. As aplicações das gemas cintilantes faziam os corpos das mulheres brilharem. Os lábios de Mehalia estavam tão vermelhos quanto um rubi lapidado por semanas quando o sol incide sobre suas faces lisas e fica preso em seu interior. Seus corpos se mexiam como se fossem um só. O tilintar vinha das pedras em suas vestes e dos pequeninos sinos amarrados em seus calcanhares e pulsos. O que mais impressionou Lyvlin é que às vezes seus braços se moviam ou rodopiavam sem que um só sino denunciasse seu movimento. Mehlia parecia a própria Melara enquanto girava sorrindo para a plateia, conseguindo a atenção até do rei que parecia mergulhado em tédio alguns momentos antes. Sorria, mas era um sorriso desafiador. Ela era a rainha, era a heroína da história que contava com seus passos ligeiros. Os pés descalços encontravam o chão de pedra e os cabelos brancos tinham fios de prata e ouro trançados em seu interior. Alguns fios terminavam com pérolas negras, outros com gemas lapidadas em esferas. As capas ornadas voavam como asas ao redor delas, as envolviam e soltavam em um frenesi que acompanhava o arfar do público. Como se fossem um só ser seus pés se fincaram no chão pela última vez, fazendo os sinos tilintar em uníssono como despedida.

Quando as dançarinas ergueram as cabeças um estrondoso aplauso preencheu o salão. As pessoas queriam um pedaço de Mehalia, queriam preservar alguma memória daquela apresentação para sempre. Ela lhes sorriu, deixou que a tocassem enquanto fazia o caminho de volta e desapareceu em meio à multidão.

– Faria o Unificador chorar em comparação. – comentou Lyvlin.

Desmera ainda batia palmas e precisou que repetisse a frase.

– Ah, completamente! – respondeu animada – Em Rattra dançar é tão natural quanto andar. Todas as meninas aprendem e garotos também. Mas a sua forma mais pura, em que os sinos não emitem som algum quando não se quer, é rara e tão apreciada quanto o diamante mais valioso.

– Então você também dança? – perguntou Lyvlin com um sorriso nos lábios.

– Perto do que elas fazem temo que pareça um andar desengonçado. – estava em completo êxtase – Preciso congratulá-la depois, foi simplesmente maravilhoso!

Osric levantou-se de sua cadeira ampla, fazendo o silêncio voltar ao salão.

– Depois desta adorável apresentação – ele disse, com os olhos fixos em um lugar do salão. Provavelmente onde Mehalia estava de pé – Servimos o nosso banquete festivo. Que todos tenham uma noite agradável! Que nossos bravos guerreiros e guerreiras sejam recompensados!

– Eu esperava que fizesse algum discurso sobre a campanha do príncipe. – falou Lyvlin enquanto ela e Desmera eram levadas pelo jorro de pessoas para a parte mais posterior do salão onde longas mesas estavam montadas.

Desmera franziu o cenho.

– Imagino que não tenha gostado muito das palavras de Darian e sentisse que qualquer palavra de elogio que saísse de sua boca fosse uma aprovação à sua atitude. Que não tenha falado nada contra Darian e seu comando deve se dever à senhora Aiyanna.

Lyvlin esperava ficar em meio aos aprendizes ou ao lado de Alec e Valdrin, o que lhe pareceu bem pior. Mas Desmera notou sua apreensão ao ver as pessoas tomarem seus lugares e a arrastou para uma das mesas afastadas. Ao ver Cenna tomando lugar diante de Desmera e Adisa se acotovelar ao seu lado percebeu que aquele deveria ser a mesa dos membros da Academia que haviam sido convidados.

– Você está passável. – elogiou o rapaz quando a viu – Desmera fez um bom trabalho. Imagino como deve ter sido árduo.

Adisa usava uma túnica celeste que fazia seu cabelo brilhar ainda mais (felizmente estavam apagados). Cenna ostentava seu vestido de cota de malha, mas havia acrescentado uma capa em tom marinho ornamentada com arabescos brancos. No topo de sua cabeça uma tiara prateada estava aninhada em meio aos fios claros. Desmera comentou que estava muito bonita e era verdade. Parecia uma deusa guerreira que se perdera no caminho para casa.

Casimir surgiu em meio às pessoas que começavam a conversar em uma confusão de vozes. Everett e Raoul estavam com ele. Raoul sorriu para Lyvlin, o que ela tomou como aprovação por não parecer uma mendiga, e Everett cumprimentou o grupo estrondosamente. Os dois não sentariam com eles, claro. Ficariam na mesa mais prestigiada ao lado de Darian, com o rei e a rainha e suas famílias. Lyvlin estranhou ver Valdrin e Alec sentados a poucos lugares de Osric. Valdrin estava com o cabelo e barba tão lustrados que deve ter besuntado a cabeça inteira, o que fez Lyvlin rir.

– Parece estar tendo um bom momento. – observou Casimir que parecia inseguro ao lugar que ocuparia. Não parecia querer se juntar à mesa superior, mesmo que tivesse status para tal. Cenna também não estava oferecendo companhia aos outros membros do conselho, que pareciam peixes fora d’água em meio à corte.

Adisa quase derrubou o pequeno homem que estava sentado ao seu lado para abrir espaço entre ele e Lyvlin.

– Sente-se Casimir, sente-se – convidou o rapaz.

E Casimir sentou. Sem antes deixar de se certificar de que o restante da mesa estava ocupada.

– Apenas acho engraçada a forma como se vestem para esses banquetes. – respondeu Lyvlin – Se vão sujar as roupas com respingos de molhos, gordura e vinho para que estragá-las?

Adisa deu uma gargalhada. Casimir arqueou ligeiramente as sobrancelhas e pareceu decidir que não socializaria com indigentes.

– Meu irmão parece bastante ocupado – comentou Lyvlin olhando para Alec. Para alguém tão preocupado em garantir a sua presença na festança mostrava pouco interesse nela. Quando seus olhares se cruzaram um pequeno sorriso passou pelo seu rosto, mas logo voltou a conversar com Valdrin e seus companheiros de mesa.

Adisa acompanhou seu olhar.

– Se pretende usufruir a mui nobre presença de Valdrin e Alec deve ir até eles. Não há qualquer coisa que o faria se aproximar dessa mesa, não com Cenna aqui. Ela não fazia parte do conselho quando o fizeram passar pela Provação, mas isso não parece importar muito. – voltou sua atenção a Lyvlin – Não fazia ideia de que era seu irmão. Temo que deva prestar condolências.

– Ele pareceu muito inteligente. – retrucou Lyvlin, vendo-o se inclinar para que Valdrin lhe falasse algo – Ele contou o que passou por todos esses anos, como foi injustiçado pela Academia.

– Há alguns males que vem para o bem. Quase entendo porque sua mãe a enfiou debaixo do braço e saiu correndo. Talvez pressentisse o desgosto que lhe traria.

– Adisa. – chamou Desmera em tom alarmado – Está sendo rude. Alec não merece todo esse ressentimento, nada fez para prejudicar quem quer que fosse.

O rapaz cruzou os braços.

– Ainda não. Os conselheiros e a corte podem remoer a culpa o quanto quiserem, mas eu sei reconhecer uma fruta podre quando vejo uma. Ou acha que Valdrin criaria coisa alguma, senão uma víbora?

Os serviçais comaçaram a trazer a comida, poupando Lyvlin de uma resposta.

É mal-educado falar de boca cheia. Foi a esse pensamento que Lyvlin se agarrou durante boa parte da noite. Enquanto estivesse mastigando não precisaria conversar com Casimir ou responder as questões pouco sensíveis de Adisa, por isso fez seu melhor para comer o máximo que aguentava.

Não que precisasse se esforçar muito. Cenna e Desmera passaram a noite enroladas em conversas particulares e Adisa fazia o possível para arrancar todas as palavras que Casimir conhecia. O que era engraçado porque com o passar do tempo Casimir também passou a manter uma quantidade razoável de comida na boca. Havia leitões com molho de ervas, faisões temperados com especiarias de Rattra e tantos cozidos diferentes que Lyvlin parou de contar depois de provar o de cogumelos. Havia tantos tipos diferentes de pães que alguns não tinham gosto de pão e tampouco se pareciam com um. Toneladas de frutas deveriam ter sido servidas naquela noite, frutas com diferentes tipos de peixe, pudins, bolos e mingaus doces. E vinho, muito vinho e cerveja. Toda a comida vinha servida de um jeito tão bonito que Lyvlin tinha pena por tanto esforço ser destruído tão rápido. Depois de uma sopa de mexilhões e o que deveria ser a quarta porção de pudim de carne da noite percebeu que precisava de ar para não vomitar.

Desculpou-se com Desmera e reprimiu um sorriso diante da narrativa exagerada de Adisa de como havia derrotado um grupo de bandidos certa vez. Parecia começar a afetar Casimir. Ou isso ou a taça de vinho de pêssego estava aguado demais.

Aquele não era o salão do trono, por isso teve alguns problemas para se orientar. Mas sabia muito bem o que procurava. O lugar mais distante das gargalhadas e barulheira possível e com nada além do céu estrelado sobre sua cabeça. Imaginou o que faria se encontrasse Lamar naqueles corredores desertos. Não estivera em nenhum lugar visível durante o banquete, o que significava que teria que frustrar a sua certeza de que havia morrido no dia seguinte.

Acabou encontrando uma espécie de terraço que era tão grande que contava com um pequeno jardim cujos arbustos balançavam com o vento vindo do oceano. O balcão era da altura de sua cintura e dava para a baía Dourada. Lyvlin cruzou os braços em cima da pedra branca e fechou os olhos, se concentrando para manter o pudim de carne em sua barriga estufada.

O rosnar a fez sobressaltar-se. Uma sombra escura se aproximava com postura agressiva. Quando se aproximou o bastante viu que os pelos do cão estavam eriçados. Arregalava os dentes que brilhavam na escuridão em uma ameaça velada. Quando a segunda sombra saltou para se juntar à primeira Lyvlin deu um passo para trás. Mas a única saída era se jogar na baía, cair algumas dezenas de metros e rezar para não mergulhar sobre uma pedra.

– Nanga! Amur! – chamou uma voz e os animais pararam.

Darian surgiu em meio ao jardim e deu pequenas palmadas em suas coxas, ao que os cães responderam indo até ele para que acariciasse suas enormes cabeças.

– Sinto muito. – desculpou-se o príncipe – Minha mãe proibiu que tivessem treinamento porque temia que os levasse para as batalhas e agora estão um tanto mal-educados.

– Não foi nada. – mentiu Lyvlin, sentindo seu coração bater na garganta – Deveria olhar melhor por onde ando.

– Talvez seja porque passaram muito tempo sem mim. – comentou, com as mãos enfiadas no pelo denso dos animais – E agora temem que alguém possa roubar minha atenção.

– Não é minha intenção. – falou para o príncipe e para os cães – Apenas precisava sair daquele salão abafado, acho que se comesse mais uma colherada explodiria em um milhão de pedacinhos.

Aquilo não deveria ser bem o que se esperava de uma conversa com o herdeiro do trono e Lyvlin o percebeu um pouco tarde demais. O pulo no abismo parecia mais tentador agora. As pedras debaixo da lua cheia eram superfícies brancas ora encobertas pelas ondas, ora resplandecendo com o luar.

Darian levantou a cabeça e deu um sorriso triste.

– Eu entendo. Comigo foi a mesma coisa.

Lyvlin cruzou os braços acima da murada, dando as costas para os cães com um pouco de receio. Eram maiores que o tamanho de cachorros com o qual estava confortável e um deles parecia ter um olho faltando. Talvez o tivesse perdido em uma briga.

Imaginou que o príncipe voltaria a fazer o que quer que estivesse fazendo antes dela chegar. No lugar disso se juntou a ela na observação da baía.

– É de se pensar que uma vez em casa os pensamentos fossem embora. – ele falou e como não se dirigiu a ela Lyvlin nada falou – É uma esperança vã, eles sempre me alcançam. Tanta morte, tanta dor. Festejamos em grandes salões repletos pela fartura enquanto esperamos o momento de sermos engolidos pela matança novamente. Diga-me, acha que sou um tolo por propor uma trégua com Kerdis?

Não esperava aconselhar o príncipe naquela noite, mas não teve que pensar muito até que a resposta chegasse.

– Não. Mas é um tolo se acha que tudo pode se resolver com palavras e abraços.

Darian considerou aquilo por tempo suficiente para fazê-la perceber que não fizera a pergunta por nada. Ele queria saber o que ela estava pensando sobre aquilo, de verdade. Não como efeito do vinho de Lyle ou uma sopa de mariscos que pesava na barriga, mas por genuína curiosidade.

– E o que faria se tivesse o poder de decisão sobre as ações do reino?

Lyvlin juntou as mãos sobre a pedra fria e apertou os dedos. Sentiu-se libertada de suas preocupações pequenas diante de um questionamento como aquele. O que eu faria?

– Eu faria um tratado com Kerdis em troca de uma aliança que garantisse a derrota de Namtar. Depois velejaria até a baía tempestuosa e destruiria Wodan antes mesmo que colocasse os pés em Vassand.

Darian deixou suas palavras serem levadas pela brisa salgada.

– Parece um plano consistente. Se Kerdis aceitasse marchar contra Namtar e se nossos navios sobrevivessem às águas incertas da baía tempestuosa. E se pelo caminho Vassand não fosse engolida pelo levante dos hemeristas ou Rattra não declarasse guerra contra Ciandail por se sentir excluída de todo o processo.

– Oh. – lembrou-se – Esqueça, é um plano de merda.

Darian riu.

– É sim. – concordou com voz leve – Mas ainda melhor do que certos conselheiros estão propondo.

Debaixo do luar e do céu livre de nuvens parecia uma pessoa comum. Uma pessoa comum com uma rica túnica carmesim e botas eximiamente polidas, mas longe da aura que projetava quando era o príncipe rodeado pela corte ou por soldados. E desse príncipe, Lyvlin pensou, ela poderia gostar.

– Então, isso de perguntar sobre as ideias alheias quanto à situação política atual... É um costume de herdeiros?

– Não... É um hábito adquirido recentemente. Altos conselheiros da corte se gabam tanto do valor de suas contribuições, mas os melhores conselhos que já tive partiram de pessoas que jamais seriam permitidas de pisarem na câmera do conselho para começar.

– Não imagino que esteja errado. – disse Lyvlin. Um dos cachorros pressionava a cabeça contra a perna da garota e só parou quando acariciou o seu pelo – Muitas vezes não descobrimos o que quer que seja com conselheiros. Talvez seja algum tipo de costume. Falar por metáforas ou não falar coisa alguma.

– Está falando da sua mãe, não está? - quis saber e diante da confirmação continuou – Eu era pouco mais que uma criança pequena quando ela partiu para o norte. Mas sempre houve algo de estranho sobre ela. Não sobre quem havia sido, mas sobre as circunstâncias em que desapareceu. Meus pais nunca me falaram nada, nem meu tio ou qualquer conselheiro que pude importunar. Imagino que Alec tenha te contado o que ele sabe?

– Sim e insinuou que sabia mais do que estava disposto a contar.

Darian permaneceu em silêncio por um tempo.

– Raoul e eu achamos que há algo errado. Casimir não fala no nome de Layil desde que desapareceu e depois de vê-lo envolvido em sua busca achamos melhor não pressioná-lo porque estava passando por uma fase realmente ruim. A verdade é que nunca tivemos uma ideia concreta, apenas sabemos que algo está errado na história toda e depois de algumas tentativas de descobrir mais largamos o assunto. Até agora. – por um momento a única coisa que se ouvia era o barulho das ondas contra o cais, mas então Darian continuou – Há um velho mago, o líder do conselho de magia na época que tudo aquilo aconteceu. Firdos é seu nome.

– Eu o conheci. Rapidamente com Cenna. Parecia ter os dois pés dentro da loucura.

– Sim, foi o que me pareceu quando acidentalmente encontrei sua cela enquanto explorava o castelo. Não era sua cela na verdade, mas a pequena janela com grades que permitia a passagem de luz. Devia ter por volta dos oito anos, mas a maneira como tagarelava sobre um imenso incêndio e Layil nunca me saíram da cabeça. Lembro-me de compartilhar a descoberta com meu pai cheio de orgulho e quando quis visitá-lo novamente haviam mudado seu aposento. E perdi qualquer contato. Ou quase.

– O que quer dizer?

– Argo, o guarda que costuma cuidar dele, é um velho amigo de justas. Caiu do cavalo certa vez, quebrou a perna e desde então não pôde servir nos campos de batalha. Até que ouvi que a Academia precisava de um guarda novo e o sugeri por ser de confiança absoluta do meu pai. E assim foi feito. Não esperava ter a oportunidade de conversar com você esta noite, mas agora vejo que é uma coincidência maravilhosa.

“Como não pude vê-lo desde que cheguei me certifiquei que recebesse uma das melhores cervejas do banquete. Uma jarra inteira de seu tipo favorito. Fermentada por meses. Um agrado por não poder comparecer às festividades. A esta altura deve estar com a mente leve como há muito não sentia. Agora, com o Monte do Rei em um banquete que promete entrar até tarde da noite pode ser a oportunidade ideal para uma pequena visita.”

– Simples assim? Eu entro, descubro o que quer que seja que Firdos tenha para me falar. Filtro o que é completa loucura do que pode ser indícios de realidade e descubro o que o conselho e o rei escondem sobre minha mãe?

– Não acha que é uma boa oportunidade? – quis saber o príncipe.

– Acredito. Apenas não sei o que você ganharia com isso.

– E se fizermos assim: caso descubra algo e queira me contar, estarei esperando com ouvidos bem abertos.

Se eu quiser contar?

Darian anuiu.

Se você quiser contar. Acredito que inverdades são de pouca serventia. Se nossas desconfianças estiverem certas você descobre a verdade sobre sua mãe e caso se sinta confortável para compartilhar comigo e Raoul nossa curiosidade será saciada. Isso se Firdos tiver algum lampejo de consciência. A chance parece boa demais para se perder.

Lyvlin estendeu a mão para o rapaz.

– Eu gosto mais de você a cada momento que passa vossa alteza. – ela falou quando o príncipe a apertou com firmeza.

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Jamais o admitiria, mas enquanto caminhava nos corredores subterrâneos da Academia com uma tocha iluminando o seu caminho ponderava se o príncipe não havia mentido. Meio esperava que o que a aguardasse diante da cela bem mobiliada de Firdos fosse um grupo de guardas preparado para poder finalmente colocar as mãos nela. Sabia que estaria em sérios problemas se fosse apanhada, mas a possibilidade de descobrir o que quer que estivessem lhe escondendo era uma isca da qual não estava disposta a resistir. Um rato a acompanhou por algum tempo, correndo paralelo aos seus passos e soltando pequenos guinchos quando suas botas chegavam perto demais. Lyvlin não saberia dizer qual dos dois estava com o coração palpitando com maior rapidez.

Quase se perdeu. Teve que voltar quando chegou às cozinhas e apenas quando ouviu o ressoar alto de um ronco ritmado conseguiu se guiar até a cela especial. Argo estava sentado em uma cadeira que parecia próximo de cair a qualquer momento, suas pernas estavam cruzadas diante da mesa onde tomava suas refeições. Ao lado das botas estava uma jarra de barro e quando Lyvlin se aproximou pôde sentir o cheiro forte da fermentação. O mesmo cheiro deixava o corpo do carcereiro a cada respiração. Seus olhos estavam fechados e seu peito largo descia e subia, descia e subia.

Lyvlin foi de encontro à porta da cela e puxou a placa que fechava a pequena janela que dava para sei interior. Firdos estava de costas, sentado à escrivaninha. Parecia cantarolar alguma melodia enquanto fazia a pena encharcada em tinta voar pelo pergaminho. Lyvlin pensou em como podia se tratar de um velho comum e desapareceu quando levou a pena ao tinteiro. As chaves estavam penduradas ao lado da porta, o que parecia um bom sinal. Não estava ansiosa para tentar desprender o molho de chaves do cinto de Argos.

A segunda chave girou liberando o trinco e Lyvlin fez uma careta enquanto se movia para o lado, rangendo de uma maneira que seria bastante para acordar um batalhão inteiro. Argos deu uma fungada, depois cruzou os braços diante da barriga e voltou a roncar.

Mergulhou para dentro da cela antes que mudasse de ideia e fechou a porta atrás de si.

Firdos foi alheio a tudo aquilo. Não parou para pousar a pena e nem ao menos se virou. Lyvlin entrelaçou as mãos, sentindo que estava prestes a invadir um espaço íntimo. Levantou a voz antes de ter certeza do que falaria, o que a forçou a um pigarreio.

O velho congelou e quando se virou foi com tamanha violência que quase derrubou a lamparina que junto com os castiçais de ferro davam uma iluminação precária ao aposento frio. Quando seus olhos encontraram os de Lyvlin cruzou as pernas e apoiou as mãos franzinas no colo.

– Imaginei quando visitaria novamente. – disse, convidando-a a se sentar na cama com um gesto vago – Mas não sei quantos dias isso faz, talvez um mês, talvez algumas semanas. De qualquer maneira, sinto muito pelo estado em que essa cela está. Não tive como me desculpar na primeira vez em que nos vimos.

– Você não é louco. – acusou com voz trêmula. Levara um susto tão grande que toda cor tinha escapado de seu rosto.

– Não teria tanta certeza disso. – falou Firdos – Quando fingimos ser algo por tempo suficiente a barreira que nos separa da mentira se torna tão borrada que por vezes não a enxergamos. Mas eu a enxerguei naquele dia Lyvlin. A enxerguei e me lembrei de quem era. Foi como um chamado, por assim dizer.

– Por que fingiu por todos esses anos?

– Porque um louco pode gritar verdades aos quatro ventos. Ninguém acreditará em qualquer palavra que deixa seus lábios. Mas eu tive que repeti-la, a verdade. Todos os dias, todas as noites ou a esqueceria. Minha mente estava – seus olhos se semicerraram com o esforço de tentar trazer de volta as memórias – quebrada. Ainda está. Talvez seja. Ou a tornaram assim. São coisas a se considerar em minhas longas horas de exílio.

– Os rastreadores tomaram sua magia – Lyvlin recordou – e por ser um mago de Sydril sua mente deveria tê-la acompanhado. Cenna me falou que –

– Cenna! Sabia que ela é o único membro do conselho que me visita? E a única que não me viu em dias melhores. Há uma relação direta entre essas duas coisas, não se engane. Os outros não teriam coragem de vir, talvez até lhes embrulhasse o sensível estômago assistir ao que me reduziram. Talvez lhes doesse fechar os olhos e ouvidos enquanto os cães do rei me arrastavam para interrogatório. Não foi um interrogatório, você vê, mas eles sabiam. E sabiam que eu merecia. Não sei como Urobe conseguiu convencer o rei de que eu daria um hóspede vitalício comportado e se é afeiçoada a sinceridade, eu não me importava. A vergonha e a inutilidade são cantigas de ninar ferrenhas e por muitos anos não escutei nada diferente – ergueu o olhar para Lyvlin e deu um sorriso ausente da maioria dos dentes – então me perdoe se minhas palavras não são tão cheio de pompa quanto as que têm ouvido.

– Palavras complicadas mascaram verdades. – disse Lyvlin.

– Isso e boas intenções. – Firdos concordou – Urobe cresceu comigo, éramos irmãos, mas a verdade o destruiu. Talvez me quisesse ver negando. Se tivesse ficado calado sobre minha participação na fuga de Layil seria eu a recebê-la no salão Esmeralda. Mas eu não mentiria. Era orgulhoso demais para isso. Sabe o que somos sem orgulho? Escravos. Os escravos de Kerdis tem o orgulho arrancado de si, surra após surra até não restar nada em suas peles ensanguentadas além da obediência. Obediência cega.

– Deve ter sabido que a ajudando estaria se condenando.

– Não me condenando, salvando-a. – Firdos suspirou e de repente parecia prestes a perder a consciência. Não para um desmaio, mas porque a fortaleza de loucura lhe parecia um lugar melhor de se estar.

Lyvlin não perguntou. Sabia que Firdos contaria quando estivesse pronto. E sabia que depois de tantos anos sem uma conversa de verdade o estaria logo. Tentou imaginar aquele velho como um homem orgulhoso, o mago mais poderoso de sua época. Era difícil e frustrante, logo desistiu. O que quer que Firdos tivesse sido havia deixado escapar entre os dedos ao facilitar a fuga de sua mãe. Perguntava-se o tamanho da afeição que deve ter vitimado a ela quando o velho afastou o silêncio com voz rouca, mas desprovida de qualquer vacilação.

– Eu tinha sido seu mestre. – e algo em como o dissera a preparou para o que se seguiu – E ela matou o herdeiro do trono. O que esperava que eu fizesse?