“Quando os portões se abrem o cheiro de Beltring me sufoca em seu abraço. Havia me esquecido de como era densa. E de como seus habitantes podiam ser implacáveis. Minha espada se aconchegou no pomo-de-adão do guarda e lá ficou até que soltasse a garotinha suja. Ela caiu no chão, pernas mais semelhantes a gravetos que carne e osso. “Senhora Tessart, ela é uma renegada!” diz o homem, perolas de suor surgindo em sua testa. Vejo a marca em seu rosto e minha espada se abaixa. “Perdoe-me senhor, ao que parece minha vista anda cansada depois de tanto tempo fora.” Vejo as lagrimas se formando nos olhos cinzentos da garota e dou de ombros, pondo minha égua a caminho do Monte do Rei. Mais dois homens tinham se aproximado, como abutres sobre carcaça. Não podem ver? Ela não está morta ainda. Penso, mas aos homens do rei digo outra coisa. Eu digo “Minha vista pode piorar a qualquer momento de novo, senhores, aconselho que não ponham as mãos nela se pretendem mantê-las”.”

Um cachorro perseguia um gato e a dupla quase os atropelou quando saiu de um beco numa confusão de sibilos e latidos. Lyvlin se sobressaltou, não sabia se por causa do susto ou pelo fato de seu corpo inteiro estar mais tenso que a corda de um arco enquanto acompanhava Faye e Ezra pelas ruelas da cidade baixa. Meio que esperava serem atacados a qualquer momento, tão sombria Beltring se mostrava naquela noite. Haviam deixado os postes iluminados para trás há muito tempo e se Faye não os guiasse provavelmente se perderiam no labirinto de ruas sem saídas e becos estreitos. O ar cheirava diferente também, mais salgado, mais azedo. Lyvlin podia ouvir as ondas no quebra mar, barulhentas, furiosas e se perguntou por quanto tempo ainda andariam. Ezra andava ao seu lado e não lhe dirigira nenhuma palavra desde que haviam deixado o mercado da Primavera e a garota já não aguentava o silencio.

– Eles desistiram de me treinar. – ela falou, deixando a luminitsa brilhar a luz tênue da lua. Se escondia por trás das nuvens escuras, mas a pedra resplandecia mesmo assim. Um interior negro com superfície brilhante. Ezra deu uma olhadela e voltou seu rosto para frente, onde Faye meio andava, meio saltitava pelo chão asfaltado.

– Confiam que Casimir seja o suficiente por enquanto – respondeu escondendo a raiva sem sucesso – O rei não deve concordar com o que o Conselho está fazendo.

Seu tom se agravou quando falara do Conselho e Lyvlin se pegou querendo saber o quanto Faye tinha a ver com aquilo. Chutou uma lasca de madeira em seu caminho e viu uma ratazana correr nas sombras.

– O rei está de mãos atadas. Por mais que o Conselho pareça querer atrasar minhas lições, lhe faltam mestres adequados.

– Imagino que qualquer mago de Vaus que tenham a disposição esteja morando nas masmorras. – disse Faye sobre o ombro, fazendo pouco caso da expressão dos dois – Ou pior. Acho que nascer com o dom do deus traidor é ainda mais danoso à saúde que nascer como renegado. Mas não muito.

– A não ser que você seja um linair – lembrou Lyvlin com rancor – Se esse for o caso você torna-se útil.

– Sim – concordou Faye se virando para o caminho que tinham pela frente – Mas a quem?

– Ao reino, quem mais? – Lyvlin mantinha os olhos no chão a procura de mais ratos. Admitir seu proposito a deixara incomodada. Sentia o olhar de Ezra sobre si, mas não queria encara-lo.

Faye se virou, sem parar de andar. Â

– Que triste e confusa sua vida deve ser, reduzida a servir sem ser ensinada como. – e quando estava prestes a retrucar rodopiou para frente e abriu os braços – Mas isso deve ser deixado para trás agora, chegamos ao Caminho das Luzes.

Quando a alcançou Lyvlin olhou o que a garota indicava e franziu o cenho.

– Parece o caminho pelo pântano, isso sim. – a paisagem que se abria diante de seus olhos parecia traiçoeira e perigosa. Se não fossem pelas luzes, poderiam muito bem dar meia-volta. Se perderiam na lama e grama seca mesclada com as aguas salgadas que se entranhava vindo da baía. Um pântano salgado Lyvlin pensou sem grande animação. A vegetação de grama áspera e arbustos raquíticos não era alta, mas os ramos dos arbustos maiores raspavam sua cintura como mãos cadavéricas, dificultando o progresso.

As lanternas de pergaminho coloridas estavam por toda a parte e indicavam o percurso que tinham que fazer chapinhando na lama salgada. Lyvlin observou uma purpura enquanto tentava se desvencilhar de um galho insistente. Acabou partindo-o quando a paciência lhe faltou.

– Devem desaparecer com a cheia da manhã – Lyvlin apontou, observando a haste de ferro que se fincava no chão e apoiava a lanterna. Estava muito próxima do chão e aquela era a região mais baixa de toda a cidade. A cheia cobriria toda aquela parte com o amanhecer do sol. Passou os dedos pelo metal enferrujado – Mas isso está aqui há muito tempo. As recolhem antes do mar vir?

– Todos os dias. – Faye disse – Na primeira luz do sol, antes dos animais acordarem. – seus olhos se voltaram para a muralha de pedras que se levantava a sua esquerda – Em algum lugar lá em cima está acontecendo um banquete farto no Monte do Rei. Os dejetos jogados devem lembrar aos renegados que existem pessoas afortunadas nesse mundo, apenas estão fora de seu alcance.

Lyvlin correu os olhos pela planície lamacenta. Eram os únicos ali e o Caminho luminoso se estendia por uma boa caminhada. Os pontos de luz eram de todas as cores e pareciam estrelas em um céu invertido. Um céu cheio de algas, arbustos finos e sal. A baía se estendia a sua direita e conseguia ver os contornos das montanhas que a separavam do mar, centenas de metros adiante. Se fosse uma noite clara, poderia ver o corredor líquido que serpenteava do norte e se derramava na baía. O caminho que haviam feito n’O Ligeiro tantas semanas atrás. Havia sido há tanto tempo que Lyvlin teve dificuldade para se lembrar como havia se sentido, pondo os olhos em Beltring e sua baía Dourada pela primeira vez. Depois de lutar com a lama e as algas trazidas pela última mare cheia sabia que jamais seria capaz de vê-la da mesma forma. Estava tentando decidir se aquilo era algo bom ou ruim quando Faye fechou a mão sobre seu braço.

– Talvez queira colocar o capuz sobre a cabeça agora. – falou – Ainda é cedo para os renegados andarem livres, mas não são eles que deve temer.

– Guardas – explicou Ezra diante de seu olhar interrogador, seu rosto laranja por causa da lanterna ao seu lado – apesar de que devemos ter sorte hoje, com Fardan e Dramar no expediente.

– Eles são meio idiotas. – foi a vez de Faye de responder – Killas não nos quis deixar entrar da última vez. Ele é um pé no meu saco imaginário.

Lyvlin se apressou para acompanha-la. O caminho agora era monte acima e Ezra teve que apoia-la quando o arenito debaixo de sua mão se desfez em lascas menores.

– Posso fazer isso sozinha – disse entre os dentes, se içando para o alto. Era uma escalada curta e fácil para os dois que conheciam o caminho. Lyvlin parecia escolher os piores lugares para buscar impulso – “Da ultima vez”? – ela repetiu quando Ezra passava por ela na banca rochosa.

Mesmo na penumbra pode vê-lo abrir um sorriso.

– O quê? Acha que só você vive aventuras?

Queria dizer que não eram aventuras boas, mas Ezra já se levantava no bloco de pedra acima dela e lhe estendia a mão.

– Não são divertidas sem você – ela disse aceitando sua ajuda.

Quando se pôs de pé deu uma olhadela para baixo. Deveriam ser um pouco mais de seis metros de escalada, mas estava feliz em deixar a lama para trás. Seus pés estavam molhados dentro de suas botas e o couro molhado começava a machuca-los a cada passada. Teria reclamando se a lufada de vento que alcançou não a tivesse feito querer tapar o nariz, quando se virou o sorriso que dera ao amigo se desmanchou em seu rosto.

A plataforma pedregosa em que estavam tinha pouco mais de vinte metros e terminava em uma grande caverna, cuja boca enorme se erguia muitos metros acima dos elmos dos dois guardas que flanqueavam sua entrada. Lyvlin puxou o capuz para cobrir o rosto, mas o pouco que vira a deixara alarmada. Eram homens jovens e cobertos de aço da cabeça aos pés, as cotas de malha feitas de aros grossos e lanças tremulando negras na luz das tochas. Faye e Ezra se aproximaram sem demonstrar medo.

– Quem vem lá? – veio a voz profunda de um deles – Acesso aos renegados é proibido.

– Mas não para uma deles, não é Pate? – Faye se adiantou, deixando a luz das tochas alcançá-la – Eu trago remédios para meus irmãos e irmãs.

Lyvlin lançou um olhar duvidoso para os pequenos sacos de linho que balançavam na cintura da garota. Havia ouvido o tilintar das moedas, se os guardas resolvessem revista-la teriam problemas.

– Não queremos que Beltring fique sem seus fiéis ajudantes – interveio Ezra – Ouvimos rumores de um surto, dizem que nenhuma criança está conseguindo manter comida dentro da barriga.

– Aquelas criaturinhas feias não são nada além de pele e ossos de qualquer maneira. – o segundo guarda falou – Muito bem, passem.

Estava a meio metro de alcança-los quando o caminho de Lyvlin foi bloqueado por uma lança.

– Quem é você? – exigiu saber o mesmo homem e a garota estava considerando uma corrida morro abaixo quando a voz de Faye os alcançou.

– Essa pobre moça? – ronronou, como se apenas percebesse Lyvlin agora – Ela veio nos seguindo dos mercados. Disse que tem alguma doença incurável que fez seus senhores a jogarem para fora de casa. Imaginei que Helea pudesse ajudar.

A lança desapareceu de imediato e o homem se distanciou.

– Espero que a ajude a se livrar de sua cabeça antes que passe para mais alguém.

– Por que teve que inventar que sou doente? – Lyvlin sibilou quando deixaram a dupla para trás, tentando ignorar o odor que se tornava cada vez mais forte.

– Porque Helea é misericordiosa e acolhe todos que Beltring não tolera em seus muros. Espaço não falta.

Nisso Faye falava a verdade. Lyvlin jamais havia visto uma caverna tão grande. Se estendia num imenso corredor pedregoso para dentro do rochedo e parecia ter muitas câmeras julgando pelas entradas laterais que Faye ignorava. Nas paredes as tochas banhadas em gordura de baleia queimavam, tornando o ar pesado e esfumaçado. Parecia a Lyvlin que a cada passo o calor aumentava, ele e o cheiro azedo típico de aglomerações humanas.

– Não se preocupe com o cheiro – assegurou Faye diante de seu nariz torcido – Você se acostuma com o tempo.

Espero muito. Pensou Lyvlin. Estava fazendo o máximo para não parecer afetada, mas as olhadas de Faye e Ezra denunciavam o quanto estava falhando. Quando fez menção de afastar o capuz o amigo a deteve.

– Os renegados não nutrem amor por forasteiros. Melhor se revelar apenas diante de Helea.

Lyvlin soltou o seu manto e se voltou para Faye.

– Você disse que os renegados existem há décadas.

– Há oitenta e sete anos, para ser mais exata. Nascemos renegados, não nos tornamos. – fez uma pausa para roer as unhas – A não ser que tenha feito algo realmente ruim e não seja de família importante o suficiente para encoberta-lo. E não valha uma cela de prisão. Esses não costumam durar muito. Deve se lembrar que há noventa anos os homens das terras geladas invadiram Beltring. Acredito que o líder deles agora seja Wodan? – não esperou pela confirmação para continuar - Ciandail faz bem em mandar toda a ajuda possível para Adrahasis porque se for metade do que sua bisavó foi o rei tem motivos para sujar os calções. De qualquer forma, pouco sabemos sobre os costumes desse povo, além de que são ferrenhos como o inverno em suas terras, duros em seus julgamentos e implacáveis em batalhas. Também se consideram melhores que os habitantes deste continente. Ou talvez apenas nos considerem todos renegados. – o pensamento parecia diverti-la, até o sorriso morrer em seu rosto – Sabe que estupro em Vassand significa pena de morte Lyvlin? Sabe o que significa estupro?

Lyvlin se lembrou do chefe dos bárbaros que ela e Raoul enfrentaram em Faolmagh. Suas palavras ainda a alcançavam em pesadelos. Ela anuiu.

– Em Rattra você pode ser rei, se pôr as mãos em uma mulher e ignorar sua vontade perdera a cabeça depois de um breve julgamento. Os homens das terras geladas desconhecem essas leis, desconhecem as regras sagradas que fundaram Vassand. E junto com a ruína de Beltring trouxeram seu desejo por sangue. Se as tropas de Faolmagh não tivessem se juntado aos esforços de Rattra a história teria sido bem diferente e não estaríamos aqui hoje. Mas o estrago estava feito quando o ultimo navio foi escorraçado da baía Dourada. Porque muralhas podem ser reparadas e casas reerguidas, mas o que fazer diante da teimosia da vida?

– Os renegados são filhos dos atacantes. – entendeu Lyvlin, observando as sombras projetadas nas paredes. Tremulavam como fantasmas do passado. Â

– Filhos da violência. – corrigiu Faye – Os primeiros foram filhos e filhas de reles soldados ou grandes senhores, no fim não importava porque todos foram abandonados. O rei quis cortar o pescoço de todos os bebes e de suas mães, mas a rainha Liana foi gentil o suficiente para lhes poupar a vida e condena-los a servidão eterna. Beltring tinha que ser reconstruída e se encontrava sem mãos suficientes para fazê-lo.

– Se o reino condena tal violência, por que virar as costas as mulheres violentadas? – Lyvlin quis saber, os olhos atentos em Faye.

– A guerra parecia perdida, os homens do norte lhes roubaram o direito sobre o próprio corpo, mas lhe prometeram a sobrevivência. Rei Gillas era muito direto em determinar seus inimigos, não importando o que as havia levado para aquela posição.Â

– Rei Gillas era um idiota. – disse Ezra, que havia permanecido com seus próprios pensamentos durante toda a caminhada – Como pode ter sido tão cego?

O som de vozes se tornava cada vez mais alto. Isso e o grupo que passou conversando mostrava que estavam se aproximando da câmera principal. Lyvlin não gostava de pensar quantas toneladas de pedra estavam sobre sua cabeça, mas quando os rapazes passaram por eles não pode deixar de encara-los debaixo do capuz.

Usavam vestes de linho gastas. Um deles tinha um buraco tão grande na camisa que a tornava inútil como propósito de vestimenta. Eram todos esguios e, como os guardas haviam dito, magros demais para sua altura. Mas nem de longe miseráveis como estivera se preparando para ver. O relance também lhe rendeu uma boa olhada nas queimaduras em seus rostos. Um dos garotos tinha uma listra reta debaixo de cada olho, o mais baixo linhas que pareciam formar espirais em suas bochechas que se entrelaçavam como gavinhas de vinhedos. Não pareciam horrendos como a de Faye, o que denunciava que sua ascensão a população tolerada em Beltring não fora feita de bom grado.

– As queimaduras em seus rostos – ela sussurrou quando o grupo havia passado – Não parecem com a sua.

Faye não tomou aquilo como uma ofensa.

– Sim. As tribos do continente do outro lado da baía Tempestuosa costumam se pintar quando vão a guerra. Carvão, ao que parece. E foi assim que seus rostos estavam marcados quando deixaram seus navios e caíram sobre Beltring. Seus descendentes em Vassand recebem a mesma honra, são marcados a ferro e fogo e o orgulho de seus pais se transforma em um selo que permite que sejam reconhecidos em qualquer lugar. E que sejam tratados com a bondade que os renegados merecem.

– A forma como fala não é respeitosa. – Lyvlin se pegou dizendo, não sabendo exatamente o motivo.

– Desculpe se minhas palavras a ofendem. – e não soube dizer se estava sendo sarcástica – Mas aprendemos desde o nascimento que palavras não tem o poder de nos ferir. A não ser que venham do rei.

Lyvlin estava prestes a retrucar quando o barulho se tornou ainda maior. O corredor de pedra deu uma guinada para a direita e deixou de existir. Diante do trio se erguia a câmera principal da caverna e Lyvlin logo percebeu de que era duas vezes maior que o salão principal no Monte do Rei. O ar estava impregnado com o cheiro azedo de sujeira e fumaça de tochas. Lyvlin viu riso e cantorias em grupos pequenos, mas também fome estampada no rosto de muitas crianças que andavam para cima e para baixo, entretidas em suas próprias brincadeiras. Algumas pareciam magras demais para sequer correrem, mas não pareciam cientes disso. O som de risadas, gritaria e canções sendo urradas a plenos pulmões a deixou confusa e se não fosse Ezra segurando sua mão e a arrastando atrás de si teria ficado parada na entrada sem saber o que fazer. Enquanto se espremia entre as pessoas o cheiro imundo se tornava cada vez mais forte e ficou claro que aquelas pessoas não tinham posse alguma, metade nem deveria ter tomado café da manhã. E mesmo assim conversavam animadamente, o maior motivo da alegria parecia ser a iminente partida para o trabalho que faziam quando Beltring dormia. Ouviu planos de revirar lixo em busca de comida entre uma rua e a seguinte, mas também conversas mais preocupantes. Uma dupla de meninas magricelas discutia o saque a uma dispensa de uma família que dormia profundamente demais com a mesma empolgação que garotas na corte falariam sobre um rapaz bonito. Fome, determinação e ferocidade. Seriam as palavras que usaria para designar os renegados. Quando Ezra se desviou de uma roda em que uma dupla de homens encapuzados se enfrentavam em uma espécie de luta livre violenta Lyvlin acrescentou “perigosos” a lista. Muitos dos renegados viravam os rostos em direção as sombras ou usavam mantos que encobriam suas cabeças. Era o lugar perfeito para alguém se perder e nunca ser encontrado. Será que Osric sabia o que se passava no interior daquela caverna? Seus guardas se atreveriam a entrar? Não pareciam ter armas à vista, mas seu próprio número era uma força. Tentou contar todas aquelas pessoas e desistiu logo depois. Centenas, talvez milhares se contasse todas as câmeras que desconhecia. Quando bateu contra as costas de Ezra por ter parado sem aviso estava imaginando por que não simplesmente fugiam daquela vida.

Haviam alcançado o fim do imenso salão de pedra. Lyvlin esperava que a líder dos renegados estivesse em alguma posição privilegiada, nem que fosse para reforçar seu papel sobre aquelas pessoas. Era como seria no Monte do Rei. No lugar disso observou Faye se aproximar de uma dupla que parecia jogar damas em uma mesa pequena. Moveis eram raros na caverna e Lyvlin tomara o salão por vazio até avistar as cadeiras que pareciam corroídas por cupim. A mulher da dupla ergueu os olhos das peças improvisadas com pequenas pedras ao ouvir o que Faye dizia e lançou um olhar para Lyvlin. Olhos claros como gelo. A garota pensou e empurrou o capuz mais para baixo. De repente se sentia sufocada e não queria conhecer Helea nem saber de renegados. Quando um largo sorriso se espalhou nos lábios finos da mulher Lyvlin quis desaparecer. Ezra pôs a mão sobre seu ombro.

– Está tudo bem. – encorajou.

– Ela quer me matar. – Lyvlin sussurrou e se forçou a sorrir de volta. Se sentia uma completa idiota.

A mulher se levantou fazendo um gracejo para o homem que jogara com ela e voltou sua atenção para Lyvlin. Era mais alta que ela e magra como as varetas que costumava usar para bater em Ezra quando eram pequenos. A pele era clara e parecia doente, os olhos cinzentos eram fundos e cheios de piadas não ditas. Cabelos negros sujos emolduravam o rosto, o nariz adunco ajudava sua aparência rapina, com o rosto triangular e maças do rosto altas. As pernas longas alcançaram Lyvlin em poucos passos e a garota precisou de todas as suas forças para não desviar quando seus dedos finos se estenderam em sua direção.

– Oh – disse com uma voz cheia de malicia. Os dedos se fecharam sobre seu capuz e o puxaram para trás – Quem temos aqui?

O movimento de Helea trouxe silencio aos grupos próximos. Em todos os cantos os renegados paravam o que faziam e olhavam para a dupla, com exceção do grupo entretido na luta. Lyvlin imaginou que era fácil não perceber o que acontecia quando tinha que se desviar de um murro.

Helea usava as melhores roupas dos renegados. Sua camisa era de linho e tinha as mangas cortadas, por cima vinha uma cota de malha curta. Seus calções de couro pareciam de boa qualidade. Os braços desnudos eram fortes e apesar da magreza Lyvlin soube de imediato que sabia pô-los em bom uso. As botas de couro arranharam o chão quando se inclinou em direção a Ezra.

– É essa a garota sobre a qual não consegue parar de falar? – quis saber e estudou Lyvlin da cabeça aos pés – Entendo.

– Meu nome é Lyvlin. – a garota entoou para a caverna vazia de sons e tentou não olhar para o rosto vermelho de Ezra – Não imaginei que a líder dos renegados tivesse um rosto tão limpo.

Olhos claros se voltaram para ela e sorriram.

– Como posso ter esquecido? – Helea disse, passando a mão pelo rosto imaculado – Se me permitem, me deixe corrigir esse erro.

A mulher pousou o dedo sobre sua bochecha e debaixo do seu toque a pele começou a mudar. Linhas finas se tornaram mais firmes, mais fortes. O tom também mudou, de branco para vermelho e depois para um tom mais efêmero, desbotado. Com um toque havia feito surgir uma queimadura que se desenhava por todo o lado esquerdo do seu rosto, do queixo até a raiz dos cabelos negros que emolduravam sua testa. Ao ver a reação de Lyvlin o sorriso se alargou.

– Mas eu posso fazer muito mais. – falou e quando deu um passo para trás não era a mulher de antes e sim Ezra.

Lyvlin olhou para o amigo ao seu lado e viu seu gêmeo que pouco antes fora Helea.

– Que tipo de magia é essa? – Lyvlin perguntou, sua mão indo instintivamente para a adaga presa ao cinto.

– Não tinham te contado? – sua voz satisfeita era um pouco mais que um sussurro, aveludada demais para pertencer a Ezra – Sou Helea Roscoe e eu sou muitas.

Quando pronunciou a última palavra voltou a ser a mulher que a recebera.

– Ninguém é capaz de mudar a própria aparência dessa forma. O que você é? – a garota exigiu saber, ignorando o peso da mão de Ezra sobre o cabo da adaga.

– A líder do meu povo. Uma amiga, uma amante. Uma assassina e uma vítima. Espada e escudo. Sou muitas coisas, mas maga não é uma delas. Não há magia. – ela declarou, dando de ombros – Apenas eu. O quanto mais cedo aceita-lo menos dor de cabeça vai ter.

– Abaixe essa mão. – avisou Ezra e Lyvlin acompanhou o seu olhar para duas figuras que se destacavam da multidão que os observava – Estão te observando desde que chegou, se apenas pensarem que pode ser uma ameaça você estará morta.

Eram um homem e uma mulher que também poderiam se passar por gêmeos não fossem os cabelos diferentes. O homem era ruivo enquanto os cabelos longos da mulher eram platinados. Ambos deveriam ter quase dois metros de altura e partilhavam os mesmos lábios sérios, nariz reto e olhos azuis profundos. As laterais de suas cabeças estavam raspadas, deixando apenas uma tênue sombra do que as cabeleiras haviam sido. O homem usava o restante dos seus presos em uma grossa trança que ia até abaixo de sua cintura enquanto a mulher simplesmente o prendera próximo a nuca com um fio de couro. Ambos se vestiam de forma semelhante, com couro e largos calções de linho. A mulher usava um justilho negro por cima da camisa larga branca. Lyvlin viu que estava salpicada de vermelho.

– Astrid e Ivar. – sussurrou Ezra enquanto Helea se afastou para encher sua caneca de cerveja – São irmãos ou amantes, ou os dois. – não pode esconder a aversão as últimas palavras - Não tenho certeza. O que sei é que são os favoritos de Helea. Ela vai aniquilar qualquer ameaça em um piscar de olhos enquanto ele a percebeu antes de sequer ser tramada. Dizem que é algum tipo de vidente. Â

Lyvlin observava a longa cimitarra presa as ancas de Astrid. A mulher levantou uma sobrancelha clara, encarando-a de volta como quem torcia para que fosse um problema.

– São pessoas boas, na maior parte do tempo. – Ezra assegurou, mesmo que não parecesse muito convicto. Se endireitou quando a atenção de Helea caiu sobre os dois novamente.

– Então, Lyvlin. O que a trás para cá? Sei que não deve ser a promessa de bom abrigo. Ou de um banquete, temo que já comemos. Ainda temos alguns barris de cerveja, foram difíceis de arranjar, mas por favor, sirva-se. Ou pretende fugir de Beltring? Estaríamos mais que contentes em recebe-la, se esse for o caso. Meu coração é grande.

Os olhos da garota foram das queimaduras dos gêmeos para a líder dos renegados. Deveria ser um pouco mais velha que Raoul, imaginou. Jovem demais para lidar com toda aquela gente.

– Perguntas. – ela respondeu – Apesar de que muitas já foram respondidas.

– A nossa Faye gosta de uma boa conversa – disse Helea com alegria e se aproximou da menina para beijar o topo da sua cabeça – então deve saber quem e o que somos para Beltring.

– Sei como surgiram, mas não como foram exilados para essa caverna. – olhou para o menino que a encarava com grandes olhos verdes atrás de Helea – Não imaginei que tanta injustiça poderia existir no sul.

– Faolmagh parecia mais agradável a você? Isso diz muito. Wodan está espreitando as costas paradisíacas de Rattra enquanto conversamos, mas doze anos atrás seus navios patrulhavam a baía Dourada. Nós morávamos na cidade baixa naquela época, os mais miseráveis dos miseráveis. Com o dever de fazer o trabalho que ninguém naqueles muros queria fazer em troca de não morrermos de fome. Sobrevivíamos, mas quando espiões de Wodan cantaram promessas de vidas melhores descobrimos que a vida é mais que limpar a merda dos outros. Abrimos os portões por dentro, Beltring se transformou no inferno que nossas vidas sempre foram e por pouco não caiu por completo, graças ao nobre príncipe Coran. – Helea sacou uma faca e começou a limpar a sujeira de suas unhas - Que o inferno o tenha. O importante é que Beltring resistiu, Wodan foi mandado de volta com o rabo entre as pernas e no meio disso tudo, o segundo filho de Osric foi salvo por um casal de renegados. O que lhes rendeu boas recompensas.

– Meus pais não sabiam que se tratava do príncipe Darian – assegurou Faye – Se soubessem o teriam deixado para a morte.

– Não os culpo minha querida – falou Helea – Ana e Hadok podem muito bem terem salvo as nossas vidas também. Depois de descobrir que éramos traidores, além de filhas e netos do inimigo, Osric quis passar a cidade baixa inteira pelo fogo. Mas pensou melhor e percebeu que mais perderia com a nossa morte que ganharia e apenas nos tirou de suas vistas. Aqui passamos fome e apodrecemos, mas somos de alguma utilidade. Somos cães dispostos a morder a mão que nos alimenta. – levantou os olhos das unhas e observou Lyvlin – E você?

– Sou filha de Layil Tessart – não pode deixar de perceber que a menção a sua mãe causou alguma inquietação na multidão. No fundo do salão alguém gritara alguma coisa, mas foi abafado – E sou a linair de Vaus sem ensinamentos em magia. Osric me quer para defender Vassand, o Conselho me quer, mas não sabe bem como me usar, acho que os amedronto. Vaus me quer para pôr fim a minha vida e ter seus poderes inteiros novamente.

Helea foi a primeira pessoa que não esboçara reação ao ouvir quem ela era. Seus olhos assumiram um tom entediado e voltou ao seu trabalho de livrar suas longas unhas de resquícios de sujeira.

– O rei, o Conselho, Vaus... – enumerou se livrando da sujeira e limpando a faca em sua calça, guardando-a – O que você quer?

– Não sei.

– Quer que eu te mostre? – ela sugeriu, aproximando-se – Eu posso ser qualquer coisa que deseje – sussurrou em seu ouvido enquanto brincava com uma mecha de seu cabelo. Lyvlin encarou aqueles olhos claros e se pegou imaginando como seria ser Helea, com a habilidade de ser quem ela desejasse. Já teria escorregado para dentro do corpo do rei, comandado servos enquanto o verdadeiro Osric estava caçando com sua comitiva? Ou se enfiado dentro da Academia, apenas para ver de perto os ensinamentos que eram negados a Faye? E no fim, como conseguia ficar em sua própria pele por mais de dez segundos? Se tivesse escolha, Lyvlin jamais voltaria a ser quem ela era.

Uma confusão no fundo do salão fez Helea se afastar, o sorriso se manteve enquanto vasculhava a caverna em busca de sua origem. Â

– O que falei sobre comportamento quando temos visitas? – disse com uma pontada de decepção maternal e Lyvlin viu Astrid se mover em direção ao grupo que disputava brigas.

Quando Helea também desapareceu Lyvlin fechou a mão sobre a de Ezra e o puxou atrás de si.

Mesmo com as palavras de Helea o grupo não se desmanchara. O semicírculo que rodeava os dois oponentes torcia com gritos e cusparadas, empurrando os dois para o meio quando se afastavam demais um do outro. Lyvlin os viu trocando murros, desviando de golpes e dançando um ao redor do outro enquanto se estudavam. Também percebeu ao chegar mais perto que não usavam capuzes e sim grossos sacos de linho tingidos de negro sobre as cabeças.

– Esmaga-cabeças! – urravam os renegados em uníssono – Esmaga-cabeças!

– Você permite que se matem em lutas? – Lyvlin quis saber ao lado de Helea.

A mulher observava a movimentação com olhos brilhantes e um leve rubor nas bochechas.

– Claro que não. Mas você sabe como homens são. Cinco minutos sem nada pra fazer e começam a ter ideias estupidas. – mesmo assim, deteve Astrid quando fez menção de acabar com aquilo – Esmaga-cabeças não perde há semanas. Deixe eu ver como termina.

O homem a quem se referia como Esmaga-cabeças era o maior dos dois. Não parecia ter gordura no corpo, apenas músculos e ira. Batia com a ferocidade de um touro e não se dava o trabalho de desviar. O seu oponente perto dele parecia perder em tamanho e força.

– Por que estão com sacos na cabeça? – Lyvlin perguntou, tentando imaginar como conseguiam lutar.

– Os renegados usam os sacos para simular lutas na completa escuridão. – Ezra disse e não precisava falar mais nada para Lyvlin entender, mas mesmo assim o fez – Para o caso de terem que se defender durante o trabalho.

Ou enquanto saqueiam casas. Pensou Lyvlin, mas o guardou para si.

Debaixo dos sacos negros respirar deveria ser difícil, antecipar o golpe do inimigo ou acerta-lo impossível, mas aqueles homens pareciam poder enxergar cada passo que o oponente dava. O menor fez uma finta para o lado e deixou Esmaga-cabeças passar reto, acertando um golpe em suas costas que o fez cair de joelhos.

– Esmaga-cabeças é o maior. – a garota repetiu, acompanhando-o se levantar antes do oponente conseguir imobiliza-lo no chão – Quem é o outro?

– Não sei. – falou Ezra e Helea se juntara aos gritos de “Esmaga-cabeças!” e não ouviu sua pergunta.

Não que precisasse mais da resposta. Quando Esmaga-cabeças investiu contra ele o outro homem saltou para o lado, ligeiro como uma cobra. No mesmo movimento sua mão desceu do alto, acertando o maior através do saco. Se afastou, os pés rápidos como os de um dançarino treinado e esperou o próximo ataque enquanto recobrava o folego. Lyvlin arregalou os olhos e congelou. Pelos deuses.

– Temos que parar a luta! – ela falou insistente – Agora! – Como alguém poderia ser tão estupido?

 - Por que? – Ezra encarava a mão que se fechava sobre seu braço em confusão completa – O que há de errado?

Tudo. Quis dizer, no lugar disso procurou rostos conhecidos na multidão. Ninguém. No semicírculo Esmaga-cabeças acertou um gancho de esquerda e enfiou o joelho na barriga do oponente, fazendo-o se curvar. Antes que pudesse se recuperar o maior já estava acertando-o novamente, o que o levou de encontro ao chão. Esmaga-cabeças estava se preparando para chutar o homem caído quando Lyvlin se mexeu e Helea abriu os braços.

– Chega Tim, já fizeram bagunça demais por hoje.

Esmaga-cabeças estava diante de Lyvlin quando puxou o saco de sua cabeça. O homem por baixo dele era caolho e tinha perdido um dente na briga e alguns outros em disputas anteriores. Seus olhos pequenos fuzilaram Lyvlin, até dar uma olhada em quem tinha acabado de vencer. Lyvlin sentiu os ânimos se acalorarem ao seu redor enquanto as pessoas assimilavam de quem se tratava. Porque a força do último golpe havia livrado sua cabeça do saco de linho e revelado a todos quem se escondia debaixo dele.

Lyvlin não precisava se virar para ter certeza de que quem se levantava trôpego atrás dela era o príncipe de Vassand.