Capítulo I


“A primavera chegou e pintou os campos de Beltring com as mais diversas cores. Que os deuses me perdoem, mas a única cor que tinge minhas mãos é o vermelho.”



A neve cobria Aberdeen com seu suave manto branco, os galhos das árvores pendiam em direção ao chão, pesados com a carga que se depositava. A floresta estava em silêncio e talvez assim estivesse para não incomodar a loba imensa que enterrava suas esguias pernas na neve e se impulsionava sobre chão, troncos caídos e pedras sem descanso. Seu caminho percorrido ia muito além, ao leste onde árvores já não ocupam a paisagem e dão lugar ao deserto hostil de Alkaid. Seu corpo delgado ostentava pêlos cor de piche e como piche brilhava. Corria, corria e o rosnar no fundo de sua garganta aumentava, seus olhos cintilavam selvagemente decididos a cumprir sua tarefa naquelas terras. Jogou a cabeça para trás e uivou. Um aviso certeiro àqueles que ousavam se colocar entre ela e seu alvo.



A lebre mordiscava a gramínea retorcida como se tivesse encontrado a grande sorte naquele dia branco. Sem que soubesse a alguns metros para dentro da floresta um arco era esticado cuidadosamente e a flecha ajustada em sua direção. Quando o destino do pequeno roedor parecia certo um leve estalar de galhos o fez levantar nas pernas traseiras, o focinho cheirou o ar e um segundo depois saltou para longe da clareira e desapareceu entre as árvores. A garota relaxou os ombros e revirou os olhos.



–Ezra, juro pelos deuses que da próxima vez ficará em casa. – falou, guardando a flecha na aljava presa às suas costas.


–Você fala como se não ficasse completamente perdida sem a minha ilustre presença. – o rapaz retrucou. Apertava o cinto no qual estavam pendurados algumas lebres que não tiveram a mesma sorte enquanto a encarava sorridente. Lyvlin, a garota que as havia caçado nas últimas horas deu de ombros, os cabelos ruivos se desprendiam do coque justo e sua voz soou quase ressentida:

– As duplas deveriam aumentar nosso sucesso – voltou sua atenção para o rapaz – dessa maneira vamos ser os últimos novamente.

–Sabe que essa competição só existe pelo seu lado. – a mão de Ezra fechou-se sobre seu ombro e o apertou de leve. – Você não deve nada a eles, pequena.

Lyvlin o chacoalhou para longe, tentando parecer confiante.

–Eu sei. - começou a andar e fez uma careta ao sentir a neve entrar em suas botas. – Mas não é necessário que o diga todo dia. Faz com que me sinta ainda pior.

Mesmo sendo duas cabeças maiores Ezra teve que apressar-se para acompanhá-la.

–Não precisa se lamuriar tanto, sabe que as portas de Ciandail estão abertas para aqueles com determinação suficiente, ou nada a perder.

–Gilbert jamais permitiria que partisse e receber ordens não me agrada. – pequenos flocos flutuavam pelos céus se deixando levar pela brisa, polvilhando suas vestes – você mais que todos já deveria estar se acostumando.

Ezra se limitou a segui-la e mordeu a língua para manter para si qualquer comentário mais ácido. Compartilhava com aquela garota a vontade de deixar o minúsculo e quase tão monótono vilarejo de Evion e levar uma vida na qual a época da colheita e a preparação das terras para o plantio não fossem as maiores emoções. Mas agora os dois eram jovens e o espaço para aventuras parecia cada vez menor, se não inexistente. Lyvlin apenas não havia constituído matrimônio com um homem cujo estilo de vida fosse relativamente passável porque seu avô lhe dava liberdade para tal. Ezra também não conseguia imaginar sua amiga realizando algo a que fosse obrigada, o que frustrava as intenções de qualquer pretendente ainda mais. Frustrava a si próprio, silenciosamente.

–Você ouviu? – sussurrou a garota, suas ágeis mãos já colocando uma nova flecha no arco. –Ali, à direita.

Ezra já abria a boca para negar, quando o barulho chegou aos seus ouvidos. Imediatamente puxou a faca que trazia na cintura. Os arbustos a quinze metros de distância farfalharam, derrubando toda a neve que os cobria. Essa também estava presente sobre o gigantesco javali que surgiu através dos galhos retorcidos e pelo seu tamanho os dois jovens se amaldiçoavam por não o terem notado antes. Suas presas eram do tamanho dos braços estendidos de Lyvlin e negros como seus olhos. O restante do corpo do animal, porém, era alvo próximo a neve que os cercava. Os cascos eram mais afiados que os de javalis selvagens o que, em conjunto com seu porte cinco vezes maior que qualquer exemplar que já vira, foi suficiente para que Lyvlin sentisse como se suas pernas já não conseguissem sustentar o corpo. Quando seus olhos se encontraram, aconteceu.

Lyvlin não esqueceria aquela sensação durante toda sua existência, por mais que tentasse ocupar sua mente acordaria muitas noites de sobressalto apenas com a lembrança. Sentiu que seu corpo queimava e sua mente era espremida como a neve que o gigantesco javali pisava. O animal parecia experimentar situação semelhante, porque gritou como nenhum ser mundano o faria e seus pêlos das costas se eriçaram. Já Lyvlin teria caído na neve se Ezra não a tivesse amparado e deixado seu corpo deslizar lentamente até o chão. O javali gritou mais uma vez e seus cascos roçaram a neve, duas, três, quatro vezes. Ezra apontou a faca em sua direção, era sensato o suficiente para saber que sua resistência se provaria inútil, mas não se moveu da frente da garota. O animal o percebeu e jogou seu corpo para frente, fazendo a neve ser espalhada para todos os lados antes de atingi-lo. O rapaz foi arremessado contra uma árvore e sua protegida não teve igual sorte. As presas do javali enterraram-se fundo em sua perna e ele a arrastou sacudindo a cabeça até que com um horrendo barulho seus ossos se partiram. Lyvlin gritava.

Um rosnado fez-se ouvir ao seu lado e numa velocidade superior ao que os olhos humanos estão acostumados uma loba negra saltou sobre o javali afundando seus dentes na carne do pescoço do animal com toda a força que seu corpo continha. O javali guinchou de dor e suas presas ensangüentadas soltaram Lyvlin imediatamente. A garota tentou se afastar da luta que se seguiu, mas sua perna esquerda sangrava tornando a neve ao seu redor rubra e já não obedecia a seus comandos. Seus olhos marejaram e o desespero a tomou quando o javali rodopiou pateticamente numa tentativa de se livrar de sua oponente, se as patas do animal a pisoteassem não haveria ajuda que a salvasse. Foi então que sentiu duas mãos passando por debaixo de seus braços e a arrastando para trás. A voz arquejante de Ezra vinha de suas costas:

–Lyvlin - ele chamou, sem esperar sua resposta – Lyvlin, preciso te tirar daqui, certo? – seu aperto tornou-se mais forte – Mesmo que doa um pouco, ainda é melhor que ser macerado por aqueles cascos.

Num movimento rápido que a fez gritar de dor como nunca antes virou seu corpo e o ergueu sobre as costas, passando os braços da garota pelos seus ombros e os agarrando com as suas mãos. Por um momento o corpo do jovem falhou, fazendo seus joelhos dobrarem e quase os derrubando, mas então seus ombros largos se enrijeceram e seus passos eram decididos e firmes. Lyvlin esforçou-se para virar a cabeça em direção aos dois animais que pareciam não notar sua partida. O javali imprensara a loba contra algumas árvores, mas ela apenas mostrou seus dentes e investiu mais uma vez com ferocidade ainda maior. Sentiu o frio cortante entranhar seu corpo pelo ferimento e enterrou o rosto nas costas de Ezra, agradecendo por suas vestes serem espessas o suficiente para tragarem suas lágrimas.

Recordou muito pouco do que se seguiu até alcançarem Evion e Gilbert os acolhesse apressadamente. Os flocos de neve eram jogados cada vez mais forte em seus rostos e sua perna latejava de uma maneira pensou ser possível morrer de dor. Talvez estivesse de fato morrendo, porque sua visão vacilou até borrar e finalmente Lyvlin caía de encontro ao vazio.

Sua audição voltou primeiro. Ouvia a palha remexer sobre seu peso quando tentou virar-se para o lado. Um choque partiu da sua perna e a garota praguejou. Uma cadeira de balanço rangia e quando seus olhos se acostumaram com a penumbra do cômodo reconheceu seu avô cochilando pesadamente. Um punhado de ervas negras repousava sobre seu colo, algumas estavam caídas ao seu redor no chão e Lyvlin forçou-se a sorrir. A erva negra era conhecida por sua propriedade útil de causar sonolência quando macerada por mãos hábeis e depois largada sobre brasas crepitantes. Constatou que o pedaço de linho que cobria a palha do lugar onde dormia estava manchado de sangue onde sua perna esquerda deitava, agora enrolada em panos que estiveram à mão quando o ferimento foi tratado. A garota reconheceu o tecido de uma camisa adorada pelo seu avô. Aparentemente não “pinicava” como o restante de suas vestes, dizia. Não pinicava porque era tecida com caros fios de seda. Tais vestimentas eram, diziam, comuns de se ver no corpo de pessoas importantes da Grande Beltring e o motivo de seu avô guardar uma daquelas em seus velhos baús nunca fizera sentido para Lyvlin. De qualquer modo tivera um fim não muito glorioso, pensou. Por baixo dos pedaços de pano havia uma pele de ovelha amarrada à sua perna por cordas de couro, enfaixando toda a área lesionada (o que significava toda a parte inferior ao joelho). Dois pedaços de madeira mantinham a perna estendida. De alguma forma Gilbert havia conseguido reunir todas as coisas que poderiam de alguma forma amenizar o frio que adentrava no casebre pelas frestas na madeira e Lyvlin o lembraria disso assim que acordasse. O barulho repentino a fez sobressaltar.

Suas costas se ergueram como um raio da cama de palha. O coração batia tão alto que achou ridículo não despertar seu avô de seus sonhos e pérolas de suor se formavam em sua testa, escorregando pelo rosto. Porque algo ou alguém raspava com insistência a porta da frente, se sobrepondo ao uivar do vento e o ranger dos galhos nus das macieiras. Mas era a voz que a fizera congelar. A voz que parecia retumbar não nas paredes do aposento, mas fundo em sua mente.

“Abra a porta, linair. Abra a porta ou a derrubarei.”